A Ilusão da Realidade

Entre Imitações e Medos


O meu corpo sempre foi leve assim? Eu nem sentia o piso debaixo dos meus pés. Será que flutuar era parecido com essa coisa estranha? Aonde estávamos indo? Que música era aquela? A batida repetida me confundia, e a voz que cantava era tão robótica e eletrônica que eu não sabia dizer que língua era aquela. Talvez nem fosse a nossa. Por que isso me fazia querer rir?

Olívia segurava a minha mão e me puxava pelo caminho. Tinha tanta gente por perto que sempre estávamos esbarrando em alguém, e eu não queria acabar soltando e me perdendo, então me agarrei à mão dela. Estar com aquela garota ainda me intimidava, mas o que mais eu podia fazer? Ficar sozinha no meio daquelas pessoas? Eu mal conseguia reconhecer ninguém naquela luz baixa. O que eu faria se conseguisse? Mesmo agora, eu ainda não me sentia como se fizesse mesmo parte daquilo ali, ou como se devesse estar entre eles. Simplesmente não fazia sentido. Eu não pertencia àquele mundo e isso nunca foi tão claro.

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Todos ao meu redor dançavam, riam, cantavam e bebiam sem pensar no que estavam fazendo. Parecia ser tão simples. Por que eu não conseguia parar de me fazer perguntas mesmo depois de todo aquele uísque? Droga, eu já estava falhando de novo. Não pensar, não pensar, não pensar. Por que isso era tão difícil?

Eu precisava parar de pensar em mim. Talvez fosse melhor observar os outros e imitar o que eles estavam fazendo. Roy ria e me cutucava, nos seguindo logo atrás de mim, e isso também não ajudava nem um pouco.

— E aí, que tal essa festa? Você já está se divertindo? A Lizzie parece mais perdida do que de costume…

Ele apontou para o canto da sala e, mesmo no meio daquela confusão e entre tantas sombras, eu podia claramente visualizar Liesel encostada contra a parede, olhando para baixo e batendo a ponta do pé no chão repetidamente para tentar aliviar a ansiedade. No fundo, eu queria poder fazer o mesmo, só que a mão firme de Olívia me trouxe de volta para o que estava acontecendo ao meu redor.

Nós estávamos completamente cercadas por adolescentes bêbados e animados. Alguém cantou alto junto com a música e todos comemoraram. Tentei fazer o mesmo, porém logo percebi que não tinha ninguém gritando junto comigo quando eu terminei. Eu até consegui reconhecer mais algumas pessoas da nossa turma olhando mais de perto, mas ainda me via cercada por rostos borrados a maior parte do tempo. E, sem que eu pudesse perceber ou me defender, um rapaz alto e de cabelos escuros tropeçou por cima de mim, respingou bebida na minha calça e derrubou uma cadeira que havia sido deixada de canto. O estrondo foi mais alto que a música e um dos pés da cadeira derrapou pelo chão até o lado oposto da sala.

Eu pensei que Olívia fosse ficar brava, reclamar, talvez até chamar aquele garoto de alguma coisa, mas ela riu como se tivesse ouvido a piada mais engraçada do mundo e continuou gargalhando alto por algum tempo. Depois, quando o riso parou, ela murmurou para mim:

— Nossa, a minha mãe vai ficar muito puta. Eu quero só ver a cara dela!

Então, ela riu de novo. Eu não sabia o que pensar daquilo e desviei o olhar para o garoto que estava se levantando. Caramba, ele era tão mais alto assim há cinco segundos? Aqueles cabelos escondendo os olhos... será que era...

Ele ergueu a cabeça e me encarou com olhos castanhos e bêbados demais para realmente estarem me vendo. Eu não tinha percebido que o meu estômago tinha gelado, nem que eu tinha ficado tão tensa e rígida, mas, de repente, respirar voltou a ser mais fácil.

— Foi mal, Liv! — ele exclamou e riu de uma forma que deixou claro que não havia sinceridade alguma naquelas palavras. — Pede desculpas para a sua mãe por mim!

— Ah, foda-se, Gabriel! Quero só ver se ela ainda decidir reclamar!

Eles riram mais uma vez e Olívia voltou a me puxar. A relação dela com a mãe também não devia ser muito fácil. Pela primeira vez, eu não soube o que entender de nada daquilo e, da mesma forma que aconteceu, eu não sabia mais no que estava pensando. Tinha muita gente ali e a minha mão escorregava demais. Por que eu tinha que transpirar pelas palmas quando ficava nervosa assim?

E foi aí que tudo perdeu o sentido de vez. Eu virei a cabeça para tentar acompanhar o caminho de Olívia e, sem aviso algum, me deparei com Emily dançando em cima da mesa, chegando perto de um garoto que estava no chão e não parava de olhar para o seu corpo. Daquele jeito, alguém logo ia ter que limpar a baba da boca dele, porque ele nem disfarçava. Ela o chamava com o dedo, rebolava e mordia o lábio, e ele visivelmente estava gostando bastante disso. Talvez fosse de se esperar, e não foi o que me chocou tanto. O problema era que aquele garoto não era Dan. Ela não tinha vindo comemorar o mês que passou com ele? Onde ele estava, então? O que era aquilo? O que estava acontecendo?

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O olhar de Emily me encontrou. Foi só por um segundo, porém foi o bastante para eu perceber que ela parou. E, se eu consegui perceber mesmo depois de ter bebido aquilo tudo, deve ter sido bem óbvio mesmo.

— Lissa, aqui! Vem cá!

Olívia me puxou pelo braço e, assim que virei, vi o garoto da foto que elas tinham me mostrado ao lado dela. Era tanta coisa acontecendo rápido e ao mesmo tempo que eu nem sabia por onde começar a absorver tudo aquilo. Pensando bem, talvez fosse melhor assim. Eu não podia me deixar pensar em nada. Era melhor não ter tempo para entrar em pânico.

— Esse é o Jonas, ele queria te conhecer. Aqui... — Olívia me ofereceu um copo e eu nem parei para pensar. Eu precisava de uma recarga depois de tanta informação. — Boa sorte! Se solta, Lissa!

E, simples assim, ela se virou e saiu enquanto também bebia de um copo vermelho de plástico igual ao que eu segurava. Eu não sabia o que falar e achei melhor ocupar a boca com mais um gole, também. De perto, ele não me pareceu muito diferente assim da foto. Eu só não achei que ele fosse tão alto, mas acho que qualquer um pareceria alto perto de mim.

Ah, isso não estava me ajudando em nada.

Jonas passou a mão pela minha bochecha e colocou uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.

— Sua foto engana, sabia? — ele sussurrou ao meu ouvido. —Você é ainda mais gata ao vivo.

— O-ob-obrigada — eu me fiz responder e tentei fingir que não sentia as minhas bochechas queimarem. Que bom que estava escuro e ele não ia ver a minha vergonha estampada de vermelho no meu rosto.

— Vamos dançar?

Eu respondi balançando a cabeça e ele me guiou até o meio do espaço. A música alta, por incrível que pareça, agora era uma ajuda. Não precisávamos falar nada.

O problema era que eu simplesmente não sabia dançar.

Prendi a respiração e tomei um bom gole daquela bebida. Eu não sabia o que era, mas não importava. Eu ainda precisava de muito mais álcool para dar conta daquilo.

Jonas dançava perto de mim. Ele se mexia de um lado para o outro, aproximava o corpo do meu e dava um passo para trás. Eu também tentei me mexer para os lados, mas o que eu estava fazendo era apenas dar passos para lá e para cá, não era dançar. Puxei mais um gole do meu copo e, para a minha surpresa, ele já estava quase vazio. Eu ainda precisava de muito mais ajuda.

— Jonas? — Tentei chamar.

Minha voz foi completamente abafada pela música que estava começando a tocar, mas Jonas percebeu o meu “problema”. Ele pegou o meu copo, sorriu e fez sinal para que eu esperasse.

Finalmente, uma chance para respirar em paz. Eu continuei fingindo dançar sem sair do lugar e olhei ao meu redor mais uma vez. O clima da festa continuava o mesmo— não que eu esperasse alguma mudança. Muita gente dançava e mexia o corpo todo, enquanto outros dançavam junto com alguém e não prestavam atenção em mais nada. Algumas pessoas dançavam e cantavam juntas em grupo, e meu cérebro alcoolizado não me poupou de sentir uma inveja tão forte que me consumia por inteiro e eu não conseguia ignorar. Eu não queria sentir aquilo. Esse sentimento vergonhoso era algo que me corroía, que queimava de dentro para fora mais até do que quando eu sentia vergonha. Eu não conseguia calar a voz gritante na minha cabeça que me dizia que eu nunca ia saber ser normal me vendo cercada por tantas pessoas livres, felizes. Eu definitivamente não estava no lugar certo, aquilo nunca seria algo que para uma estranha sem jeito e inútil como eu. Eu não devia estar ali, não merecia estar ali. Tentei imaginar a mão de Roy pousando levemente sobre o meu ombro, mas nem isso ajudou. Eu precisava começar outra vez e não sabia como.

A curiosidade estava me vencendo. Tentei evitar até ali, até que finalmente me deixei olhar na direção de Emily mesmo que eu não quisesse encontrar os seus olhos. Dessa vez, nem precisava ter medo disso. Ela estava abraçada ao rapaz com quem dançava antes, os braços jogados por trás do seu pescoço, o rosto colado e os corpos juntos. Era como se não houvesse mais nada e nem ninguém ao redor. Como ela conseguia ficar tão calma assim sabendo que tinha tanta gente olhando aquela cena e a julgando das formas mais cruéis e rígidas do mundo nesse exato momento?

Ela veio, de novo. “Ela”. A merda da inveja. Eu não sabia se queria dançar daquele jeito com alguém, e isso provavelmente não importava. Emily fazia o que tivesse vontade. Era isso que eu admirava. Era isso que eu queria poder fazer.

Senti uma mão no meu ombro. Dessa vez, uma mão real e corpórea, com peso de verdade e capaz de realmente me tocar. Jonas se aproximou sorrindo como na foto e me ofereceu um copo cheio da mesma bebida misteriosa de antes.

Eu não ia me deixar pensar de novo. Bebi com vontade, puxei Jonas pelo braço para o meio daquela pista de dança aglomerada e comecei a me mexer. Não pensar, não pensar, não pensar, eu precisava parar de pensar. Olhar para os lados não ia me ajudar em nada. Eu não precisava entrar em pânico, ainda mais naquele momento.

Virei a cabeça e tentei jogar o cabelo para trás. Será que tinha sido tão legal como quando Roy fazia aquilo? Não! Merda! Eu não podia pensar. Mexi o quadril e tentei rebolar seguindo o ritmo da batida. Aquele não era meu tipo de música favorito, mas era algo que eu podia tentar seguir. Balancei para um lado e para o outro, tentando acompanhar os passos com o tronco, e Jonas de se aproximou de mim. Agora, havia apenas milímetros entre nós, e perceber isso fez com que eu simplesmente precisasse de mais um gole. Há quanto tempo estávamos ali? Isso estava acontecendo tão rápido assim, ou eu que não estava conseguindo acompanhar o tempo?

O meu copo estava vazio. Como isso aconteceu? Eu ainda estava dançando? A minha imitação idiota estava dando certo, ou eu já estava passando vergonha?

Senti as mãos quentes e firmes de Jonas na minha cintura, segurando com força e sem nenhum aviso. Ele me puxou para perto e colou o corpo ao meu no mesmo instante em que a música mudou. Seus olhos encaravam o meu sem piscar, o sorriso discreto de canto de boca transbordando toda a confiança que eu desejava ter um dia. Eu não sabia o que fazer com as minhas mãos inúteis e suadas, e o meu copo caiu no chão enquanto eu tentava decidir o que fazer com elas. Merda, merda, merda, eu já estava estragando tudo de novo. Eu não fazia nada direito mesmo. Quem eu achei que ia enganar? Por que eu achei que isso tinha sido uma boa ideia?

Jonas continuava dançando colado no meu corpo, o rosto perto do meu. Eu não sabia se ele não tinha percebido o quanto eu era burra e desastrada ou se isso realmente não importava. Senti o meu estômago começar a gelar de nervoso e forcei um sorriso para tentar fingir que estava tudo bem. Talvez fosse melhor continuar como se não tivesse acontecido nada, ou eu ia piorar tudo de vez. A música que estava tocando não era muito diferente da que estávamos dançando antes, então eu voltei a dançar com o ritmo da batida.

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O corpo dele estava próximo do meu. Muito próximo. Eu nunca tinha ficado tão perto assim de um garoto antes; pelo menos, não nesse cenário. Não havia espaço para dúvidas. Eu precisava aprender a ser normal para ontem.

Joguei meus braços ao redor do pescoço de Jonas e diminuí a distância entre nós ainda mais. Se aquilo funcionou com Emily, também tinha que funcionar comigo. A batida da música ainda me guiava, agora com a respiração morna e pesada de Jonas contra a minha pele. Ele correu uma mão pelas minhas costas, desenhando a minha espinha com leveza enquanto ainda me segurava pela cintura com a outra mão, e então voltou a brincar com a mecha do meu cabelo que escorregava por trás da minha orelha. De alguma forma, a distância entre nós era ínfima e infinita ao mesmo tempo e eu mal conseguia respirar.

Era assim que Emily se sentia quando encontrava alguém de quem gostava? Era isso que Olívia e Ariana procuravam nas festas que davam? Era isso que eu devia estar sentindo agora? Porque eu ainda não me sentia à vontade, e também não me sentia normal. Eu sentia que não estava pronta para aquilo. Talvez eu fosse toda errada mesmo e isso não ia ter conserto nunca.

Eu precisava respirar. Eu tinha que sair dali.

Dei um passo para trás e a surpresa fez Jonas levantar os olhos.

— Eu já volto!

Eu não sabia se ele tinha me ouvido ou não e torci para que os meus gestos ajudassem. Tinha muita gente ali e não havia oxigênio suficiente no mundo para todos nós. Eu não sabia mais onde estava, se ainda estava na sala, se alguém que eu conhecia estava por perto ou não. Eu só precisava sair dali, daquele mar de gente, e respirar ar fresco.

Tentei procurar os espaços menos cheios e fiz meu caminho até a cozinha. Para minha sorte, havia uma porta de vidro aberta nos fundos. Eu corri na direção daquela saída sem pensar duas vezes e enchi os pulmões de ar assim que me vi fora daquela casa sufocante e ensurdecedora. Havia alguns casais de abraçando pelos cantos, apoiados contra o muro, e eu também senti um cheiro bem estranho, mas não havia quase ninguém por perto e eu conseguia me considerar relativamente sozinha. Ninguém estava prestando atenção em mim e isso ia ter que bastar.

E foi aí que a minha incapacidade de ser uma pessoa normal me atingiu com tudo. Jonas provavelmente estava achando que eu era louca, assim como todo mundo que me viu sair correndo. Eu sabia que isso nunca tinha como dar certo. Eu não devia estar naquela festa idiota. Não, a idiota era eu. A grande idiota, burra e inútil que nunca ia conseguir agir como uma pessoa certa, como todos os outros. E a coisa devia ter sido feia mesmo, porque até Roy estava quieto e sem fazer provocações.

Lizzie olhou para o céu e apontou para as estrelas. Pelo menos, o céu estava claro. Até que ver uma noite daquelas fora de casa não era tão ruim assim. Será que tinha valido destruir a minha breve chance de ter uma vida social normal?

— Mel?

Eu não estava preparada para encarar ninguém, principalmente a dona daquela voz.

— Mel? — Emily continuou. — Você está bem?