A Ilusão da Realidade

Um Pouco de Coragem


— Alguém? Falar comigo? Como assim?

— É isso que você ouviu! Ele quer muito te conhecer e ficou perguntando de você a noite toda. Eu nem sabia mais o que responder!

Olívia continuava sorrindo e falando com uma animação que eu não sabia como corresponder. Eu me sentia paralisada demais até para tentar. Quem poderia estar esperando por mim? Eu? Logo eu? A estranha de óculos, a nerd que não falava nunca? Aquilo só podia ser alguma piada ou alguma armação, não tinha como ser de verdade. Quem iria se interessar assim por mim

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Assim que eu me fiz aquela pergunta, uma possibilidade se passou lá no fundo dos meus pensamentos. Foi tão automático que eu nem percebi, mas estava ali mesmo que eu nem soubesse o porquê.

E se fosse… Alex? Será que ele tinha mesmo vindo à festa?

Balancei a cabeça no mesmo instante que aquele nome surgiu nos meus pensamentos e, pela primeira vez, me senti feliz por ser tão tarde e a noite estar tão escura. Se as minhas bochechas ficassem vermelhas de novo, ninguém ia ter como perceber.

— Melissa! Diz alguma coisa, menina!

Dessa vez, foi Ariane que chamou minha atenção. Tentei responder as primeiras palavras que me viessem à cabeça, mas era difícil absorver aquela informação.

— Como assim? Do que você está falando?

— Um tempo atrás, teve um dia que eu postei uma selfie da sala de aula — Olívia finalmente começou a explicar. — Você saiu no fundo e eu nem percebi, só que o Jonas percebeu num segundo…

— Jonas?

— Meu amigo do curso de inglês. Ele me perguntou de você na hora, tá louco pra te conhecer.

— Olha que ele não é de se jogar fora, hein? — Por mais que Ariane ainda estivesse sorrindo, aquele comentário me soou um tanto ácido e eu não sabia dizer se era coisa da minha cabeça ou não. Eu não conseguia me sentir à vontade perto dela. — Se você não quiser, eu quero! Você vai ser muito burra se perder essa chance!

As duas me olhavam fixamente, sem nem piscar, esperando pela minha resposta com um entusiasmo que eu queria saber replicar mais do que qualquer coisa. Eu ainda me sentia congelada e sem reação.

— Ele veio?

A minha pergunta foi um murmúrio sem som no meio de todo o barulho ao meu redor, mas Olívia assentiu com entusiasmo no mesmo instante.

— Sim! Vem cá, a gente te ajuda!

Ela nem terminou de falar direito e já me puxou pelo pulso na direção da casa. Ariane nos acompanhou ao lado dela, andando com passos um pouco tortos. Elas provavelmente também já tinham bebido um pouco. E talvez fosse impressão minha, mas as duas pareciam estar trocando olhares entre os passos.

A sala estava lotada de gente dançando e gritando. A música estava mais alta ali do que em qualquer outro lugar e eram tantos rostos justos em um espaço que, por mais que fosse grande para uma sala, não era um salão ou uma pista de dança. Era difícil andar entre as pessoas, eu não conseguia reconhecer ninguém e, para completar, também não sabia para onde elas estavam me levando.

Nós subimos uma escadaria, Olívia nos guiou pelo corredor, nos levou a um banheiro que ficava quase no final do caminho e Ariane trancou a porta assim que a fechou. Embora a música ainda estivesse alta, meus ouvidos finalmente tiveram um pouco de alívio.

A minha cabeça é que não estava nada aliviada. Elas provavelmente queriam conversar melhor e com menos barulho à nossa volta e eu já não sabia mais o que dizer. Ainda bem que aquele banheiro era tão grande como todo o resto da casa; eu imaginei Roy e Liesel encostados no balcão da pia, ambos ao meu lado e próximos ao espelho gigante que refletia os meus olhos assustados e a bagunça na minha cabeça que eu costumava chamar de cabelo. Eu precisava da força deles mais do que nunca.

— Então, Melissa, vem aqui… — Olívia começou a falar e se aproximou de mim. — Conta tudo para a gente. Você já tem namorado?

E ela estava perguntando isso agora? Aliás, que tipo de pergunta era aquela? A resposta não era óbvia?

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— Não.

— Amigo colorido? — Ela continuou.

— Ah… não.

— Ficante? — Dessa vez, foi Ariane quem tentou prosseguir o assunto. — Conhecido que rola um clima? Qualquer coisa?

Eu conseguia perceber que estava ficando vermelha de vergonha com aquele interrogatório pelo reflexo do espelho e isso não me ajudava em nada. Sorga, dessa vez não tinha como esconder. Eu sempre soube que estava atrás dos outros quanto a isso e a verdade era que eu não me importava e nem pensava muito na minha lerdeza. No entanto, os olhares fixos e curiosos em cima de mim me faziam sentir como se isso fosse um grande crime, um segredo que eu devesse esconder a sete chaves. E eu estava cansada de saber que nunca enganaria ninguém — a verdade estava estampada na minha cara, e ela era gritante. Qualquer um ao meu redor ali poderia perceber isso. O que será que elas esperavam ouvir? Qual era a coisa certa a se dizer numa situação daquelas?

Pelo jeito, os pensamentos de Olívia e de Ariane não estavam muito longe dos meus, sem contar que a minha falta de resposta provavelmente era a maior resposta. Elas trocaram mais um olhar rápido e então sorriram como se tivessem descoberto o segredo mais intrigante do mundo.

— Melissa, vem cá… — Ariane murmurou.

— Não vai nos dizer que você nunca beijou!

A verdade estava ali e, para minha sorte, eu nem precisei dizer. Olívia fez isso por mim.

Eu nunca tinha me sentido tanta vontade de me esconder antes. Eu queria ser invisível. Por que isso era algo tão interessante e tão constrangedor para elas se não me fazia a mínima diferença? Não havia ninguém na minha vida que eu tivesse vontade de beijar, pronto. Por que isso tinha que ser tão polêmico?

Olívia sorriu para mim mais uma vez. Sua boca se abriu, mas eu tinha medo do que estava prestes a ouvir. Quanto tempo tinha se passado desde que eu cheguei ali? Uns vinte minutos, talvez? E eu já estava me fazendo passar vergonha de novo por causa da minha incapacidade de ser uma pessoa normal.

Eu não devia ter saído de casa.

— Fala alguma coisa, menina! Você pode se abrir com a gente! — Ouvi mais um riso vindo de Ariane entre as palavras de Olívia. — Conta tudo, Melissa! Você já ficou com alguém? Já fez alguma coisa com algum cara?

— Caramba, Olívia, você é direta, hein! Vai com calma, a menina tá começando ainda! — De repente, Ariane virou na minha direção e me encarou direto nos olhos. — Mas… admito que eu estou curiosa.

Pelo jeito, não ia ter como fugir daquele assunto. Por mais que a minha falta de experiência não costumasse me incomodar por si só, havia coisas que eu queria muito poder esquecer que aconteceram um dia…

Fazer amigos nunca foi fácil para mim, nem mesmo na minha antiga cidade. Eu sempre ficava sozinha porque não sabia como me aproximar das outras crianças; pelo que eu me lembro, eu já sentia um medo estrado de que eles não quisessem brincar comigo ou não gostassem de ser meus amigos.

Apesar de tudo, eu acabei tendo muita sorte apesar das minhas dificuldades. Pelo menos, era o que eu pensava.

Havia três outras crianças que também sempre acabavam ficando excluídas por um motivo ou por outro, e nós sempre acabávamos juntos de alguma forma: Meg, Íris e Oliver. Seja porque Meg tinha alguns quilinhos a mais e dentes caninos pontudos, ou porque Oliver tinha orelhas grandes e nunca tirava o boné, ou até mesmo pela aparência frágil, magra e pequena de Íris, os motivos fúteis pelos quais nós eramos julgados e deixados de lado mesmo quando ainda éramos tão pequenos não importavam nem um pouco quando ficávamos juntos. E, com o tempo, passamos a ser inseparáveis e sempre escolhemos uns aos outros por vontade própria. Eu achei que finalmente tinha encontrado o meu lugar e tudo parecia bem sem nem imaginar que isso não poderia estar mais longe da verdade.

Eu não sabia dizer quando foi que as coisas começaram a dar errado. Nós nos conhecemos quando tínhamos uns seis ou sete anos de idade e continuamos juntos até o fim do fundamental. Mas, entre todo o tempo que se passou, muita coisa mudou.

De repente, Meg e Íris se distanciaram. Começou com alguns comentários perdidos de assuntos que Oliver e eu não sabíamos, depois elas passavam cada vez menos tempo com a gente e nunca queriam se reunir como nós sempre fazíamos. Oliver não costumava se incomodar ou até mesmo notar muita coisa e, ainda assim, ele também me disse que se sentia deixado de fora quando elas falavam coisas que nós não entendíamos. Eu detestava quando elas riam como se ter um segredo as tornasse especiais e melhores do que nós.

Parando para pensar bem, eu também comecei a me distanciar quando a situação ficou pesada assim. Eu não me sentia à vontade perto delas e tinha uma séria impressão de que, na verdade, elas também tentavam fingir que estavam participando da nossa roda por obrigação. E isso nem durou muito tempo porque logo veio a próxima fase: as desculpas. Elas nunca podiam nos ver e, quando todos nos demos conta, quase não ficávamos mais juntos. O meu aniversário naquele ano veio e passou completamente em silêncio e, por mais que eu não me importasse muito com a data em si, nós sempre comemoramos os aniversários de todo mundo do grupo entre nós mesmos com muito barulho e muita festa. O silêncio, embora esperado, também foi um marco gritante de que algo havia mudado demais para voltar a ser o que foi um dia. Era assim que as coisas tinham que ser, certo? Pelo menos, era o que a minha mãe sempre dizia se eu acabava fraquejando e demonstrando que sentia falta do que nós tivemos por tantos anos.

Foi a partir daí que tudo começou a acontecer tão rápido que, às vezes, eu ainda não entendia muito bem quando tentava me lembrar. Passamos a ser só Oliver e eu. Nós estávamos quase sempre juntos e, apesar do que houve, tudo estava bem dentro do possível. E tudo desmoronou sem que eu pudesse fazer nada.

Teve uma vez que eu estava sentada na minha cadeira, quieta no meu canto e esperando o tempo passar durante alguma aula chata quando alguém deixou um bilhete pequeno e bem dobrado na minha carteira. Eu ouvi risinhos e senti que havia algo estranho, mas a curiosidade falou mais alto e eu peguei o papel para mim. Ele dizia, em uma letra muito mal feita claramente de propósito: “Melissa, meu amor, vamos fazer nhanhá hoje à noite?”

Eu senti a minha cara ficar vermelha na mesma hora. O bilhete escapou entre os meus dedos nervosos e atrapalhados, caiu no chão e eu ouvi algumas garotas sentadas atrás de mim trocando risos. Mas o pior de tudo não foi a vergonha ardente e infinita que eu sentia crescendo dentro de mim como se fosse me devorar, nem o quanto eu queria que ela me engolisse inteira só para poder sumir dali. A professora de matemática que estava tentando dar aula — e também era uma das senhoras mais rígidas e inflexíveis que eu já tinha conhecido na vida — ouviu os risos e decidiu ler o bilhete na frente da turma toda. A sala inteira riu, o conteúdo fez com que ela ficasse escandalizada por garotos da nossa idade estarem fazendo aquele tipo de brincadeira e, para completar tudo, Oliver e eu levamos a culpa por ser a “assinatura” dele. Teria sido até fácil se a história terminasse ali, mas o pior ainda estava por vir porque a escola também decidiu ligar para os nossos pais.

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Naquela noite, a minha mãe me deu um dos sermões mais longos, constrangedores e desconfortáveis de toda a minha vida sobre ser cedo demais. Eu nem estava pensando em nada disso ainda e mal tinha doze ou treze anos quando tudo isso aconteceu! O resultado é que, no fundo, pensar nisso ainda me assusta. As coisas ficaram meio estranhas em casa por um tempo, até que acabamos voltando aos nossos desentendimentos de rotina.

A minha vida naquela escola, no entanto, nunca mais seria a mesma. Eu nunca mais tive um dia de paz.

A história do bilhete se espalhou como fogo já no outro dia. Todo mundo estava sabendo — até gente de outras turmas. Nós ouvíamos piadas sem graça o dia inteiro e tinha até quem tentasse ficar inventando nome de casal misturando os nossos nomes. “Olissa” era o mais comum, mas também tinha quem preferisse “Meliver” e, às vezes, tinha quem começasse a fingir que estava debatendo entre os dois nomes quando passavam perto da gente só para fazer barulho. Também tinha dias que eles só apontavam, riam e perguntavam se os nerds estavam planejando se reproduzir. Teve quem escrevesse mais bilhetes falsos como aquele primeiro, ou então colocavam alguma música romântica para tocar com um celular. Até mesmo os professores brincavam que “claro que o casalzinho queria ficar junto” quando passavam alguma atividade em dupla ou grupo…

Eu detestava tudo aquilo. Tentei pedir ajuda para a minha mãe várias vezes e ela sempre me dizia para ignorar. Se eu ignorasse, aparentemente, ia acabar perdendo a graça. Bem que eu gostaria que tivesse sido simples assim. Era como se tudo fosse uma grande piada e até eu mesma fazia parte, apesar de a piada ser eu. Eu e Oliver. Pelo menos era mais fácil aguentar aquilo com o apoio dele e, apesar de tudo, nós tínhamos um ao outro e aquilo tudo só nós uniu mais ainda.

Eu realmente acreditava nisso. Acreditava tanto que não percebi que ele também começou a se afastar e fingi que não entendi quando ele também começou a dar desculpas para não passar tempo comigo. Eu tentei ignorar tudo ao meu redor e agir como se as coisas estivessem bem, até que chegou o dia em que eu tive que aceitar que não estavam.

A última conversa com Oliver. Um momento que eu queria poder apagar completamente das minhas lembranças.

Tinha sido mais um dia comum e o sinal da última aula finalmente nos liberou. As coisas pareciam estar normais e, para mim, aquele era apenas mais um dia. Eu não fazia ideia do quanto o que estava prestes a acontecer me marcaria.

Oliver saiu andando rápido e eu apertei o passo para acompanhá-lo. Eu provavelmente devia ter notado que ele sequer olhou para mim, como se não houvesse ninguém ao seu lado, mas acho que o desejo que eu tinha de ainda ter um amigo comigo só me deixou perceber todos os detalhes que eu ignorei quando já era tarde demais.

— Ei, Ollie, vamos fazer alguma coisa mais tarde? A gente podia terminar aquela tarefa de história.

— Eu tô meio ocupado hoje — ele respondeu ainda sem me olhar e continuou andando.

— E amanhã? A gente pode só ver um filme e esquecer as tarefas um pouquinho, também.

— Eu também não posso amanhã.

— E no final de semana? Você também já tem planos?

— Olha… se você não entendeu, eu já tenho planos até o ano 2037, ok?

Ele parou de andar sem aviso e eu quase tropecei nos meus pés com o susto. Quando Oliver finalmente me olhou, eu desejei que ele continuasse me evitando. O Oliver que eu conhecia era despreocupado, desatento, sempre estava cheio de energia e com um sorriso no rosto. O Oliver que me encarou de volta era sério, sem nem um traço de humor em suas feições e tinha os ombros retraídos, pesados, quase como se carregasse o peso do mundo nas costas.

— Oliver… — eu murmurei em choque e ainda precisei de uma pausa para encontrar as próximas palavras. — Você está bem? Aconteceu alguma coisa?

— E você ainda pergunta?

Ele levantou a voz com impaciência, como se esperasse que eu soubesse a resposta. Eu provavelmente devia ter entendido antes e acho que, lá no fundo, eu sempre soube e não quis aceitar. Mesmo o vendo daquele jeito com os meus próprios olhos e ouvindo as palavras que saiam da sua boca, eu ainda não conseguia acreditar no que estava acontecendo.

— Olha, me deixa em paz, está bem? Eu não aguento mais ver você sempre no meu pé.

E simples assim, como se não fosse nada, como se nunca tivéssemos sido amigos e como se nada tivesse importado, ele me deu as costas e foi embora enquanto o meu mundo estava desmoronando debaixo dos meus pés. Eu nunca tive nem tempo de saber se eu poderia acabar sentindo algo por Oliver ou não, ou até mesmo para entender que tipo de sentimento era esse que as pessoas falavam o tempo todo. O que eu sabia muito bem era que ter o apoio de um amigo quando tudo estava tão difícil era a melhor coisa do mundo; vê-lo ir embora daquele jeito doeu muito. Eu nunca soube se ele achou que eu acabei mesmo me apaixonando tanto ou se só não aguentava mais as provocações e, pensando bem, isso talvez não importasse apesar da minha curiosidade. Não querer mais falar comigo era um direito dele. Mas, às vezes, eu ainda me perguntava… e se eu tivesse sentido algo por ele, o que tinha de tão engraçado nisso? Qual era a piada? Eu ainda não conseguia entender. Talvez a graça fosse eu. Talvez a ideia de eu gostar de alguém fosse uma vergonha e isso simplesmente não era para mim.

Foi depois daquele dia que eu comecei a entender e aceitar o meu lugar…

Olívia e Ariane não tiravam os olhos de mim e visivelmente esperavam pela minha resposta com curiosidade. O que eu poderia dizer sem revelar demais e passando vergonha de novo?

— Tinha um garoto que era meu amigo… — arrisquei. Parecia ter funcionado, porque elas assentiram e esperaram que eu continuasse. — Mas acabou não dando muito certo e aí eu me mudei.

Aquilo não era mentira, embora também não fosse a história toda. Pelo menos, eu não estava dizendo nada que não devesse dizer e, ao mesmo tempo, também não parecia ser tão inexperiente assim. Ou era o que eu esperava que elas pensassem.

— Você se mudou no ano passado, não foi? — Olívia perguntou. — Já faz tempo! Tá na hora de agitar as coisas um pouco!

Olívia se virou na direção de Ariane e o meu estômago deu mais uma cambalhota no meu tórax. Aquilo estava ficando real demais, mas algo não me parecia estar certo. Garotos normalmente nem me olhavam e meninas como Olívia e Ariane não costumavam ser legais comigo sem querer algo em troca. Havia algo ao nosso redor que fazia a minha espinha gelar e me deixava completamente desconfortável, e eu não conseguia entender o que era. Eu queria sair dali correndo, porém fazer isso só comprovaria de uma vez por todas que eu era uma aberração e nunca ia conseguir ser como os outros. E além disso tudo, bem lá no fundo, havia uma parte de mim que não queria ser injusta e julgar pelos meus medos se elas pareciam realmente estar animadas com a “ajuda” que acreditavam estar me oferecendo.

Olívia sorriu para Ariane e pediu:

— Ari, você pode ir descobrir onde ele está?

— Pode deixar comigo! Você podia ajudar a Melissa com o cabelo enquanto isso…

— Verdade! — Olívia voltou a olhar para mim. Nossa, Melissa, seu cabelo ficaria tão lindo se você fizesse uma escova, uma hidratação… deixa eu ver o que eu consigo fazer.

Meu olhar se desviou para o chão no mesmo instante, mas eu ainda pude ver o meu rosto ridículo de tão vermelho de novo no meu reflexo. Talvez eu nunca mais devesse sair de casa.

— Foi o capacete — expliquei mesmo sem saber o porquê. Eu detestava ter que justificar a minha falta de capacidade de funcionar direito a todo instante.

— Capacete? Você veio de moto?

— É. Peguei uma carona.

Droga, por que eu continuava me explicando sem me explicar com verdades disfarçadas? A sensação que eu tinha era que qualquer coisa que eu falasse para alguém como Olívia estaria errada.

— Entendi. Eu tenho uma escova aqui… e falando nisso, posso te ajudar com as suas sobrancelhas algum outro dia. Seu rosto ia ficar bem mais harmonizado se você tirasse um pouquinho, eu posso resolver rapidinho.

— Ah… obrigada.

Eu nunca tinha me preocupado com as minhas sobrancelhas antes. Será que eu devia começar agora? Quantos outros detalhes as pessoas estavam olhando e julgando sem que eunem soubesse que estava fazendo algo errado? Aquilo tudo era complicado demais. Eu realmente queria sair correndo e voltar para a segurança do meu quarto.

— Demais, Mel, demais — Roy murmurou e jogou os cabelos para trás. — Estamos aqui com você, lembra?

Liesel continuava tão quieta que chegava a ser assustador, porém sua mão sempre apertava a minha quando eu precisava. Eu não podia deixar que ninguém percebesse o quanto eu estava nervosa. Tudo parecia ser tão simples para eles… por que não podia ser assim para mim, também?

— Ah, Melissa! Nossa! Eu não acredito!

A exclamação alta de Olívia me assustou e eu virei a cabeça rápido. Meu cabelo já devia estar se tornando um redemoinho àquela altura.

— Está tudo certo?

— Claro! — Olívia sorriu novamente e me entregou uma escova de cabelo. — É que eu acabei de perceber que estou aqui falando e falando e nem lembrei de te mostrar esse boy!

Olívia puxou o celular do bolso da calça jeans apertada que estava vestindo e começou a procurar alguma coisa. Eu não sabia o que esperar e nem o que eu sentia sobre toda aquela espera, então fixei os olhos na imagem do meu próprio cabelo refletida no espelho e comecei a tentar dar um jeito naquela desordem.

Acompanhei cada movimento que fiz com a escova com atenção e me esforcei o máximo para tentar parecer apresentável, ou o mínimo para ser considerada “passável”, mas eu não sabia dizer se estava dando certo ou não. Pelo menos, os fios estavam voltando ao lugar conforme eu escovava.

Depois de alguns minutos, Olívia voltou a exclamar alto:

— Aqui! Achei! Olha só, Melissa! — Ela estendeu a mão e me ofereceu o celular. — Olha só esse garoto! Olha a chance que você tem! Você não vai se aprender!

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Puxei o aparelho para perto e olhei com atenção. Era uma selfie bem simples onde ele segurava o celular com uma mão e fazia pose mostrando dois dedos com a outra. Seus olhos eram verdes, o sorriso aberto mostrava dentes claros e brancos, e eu também notei que ele era loiro. Julgando por aquela imagem, eu imaginei que ele não fosse muito mais velho do que eu.

— E aí, Lissa? Posso te chamar de Lissa? O que você achou?

Ninguém nunca tinha me chamado assim e, para falar a verdade, era um pouco estranho. Ainda assim, eu não queria bancar a chata ou acabar sendo uma grande reclamona e decidi não falar nada. Eu sabia que ela estava esperando pela minha reação, porém eu não conseguia imaginar como reagir naquele instante. Algo ainda parecia estar fora do lugar. Por que elas estavam tão interessadas em mim e o que faria alguém como o garoto da foto se interessar por mim?

Ou será que eu estava pensando demais de novo?

Imaginei Roy e Liesel assentindo juntos para reencontrar coragem e tentei responder da melhor forma que consegui:

— Ele é… — Precisei de uma pequena pausa para encontrar uma palavra. — Interessante. Quantos anos ele tem mesmo?

— Dezessete. Vai se formar esse ano. É uma chance única, hein?

— É, acho que você deve ter razão.

Para minha sorte, Ariane entrou de novo no banheiro e voltou a trancar a porta antes que aquela conversa desconfortável continuasse. Ela trazia uma garrafa com uma bebida escura e três copos de plástico.

Aquela noite estava sendo fora do normal mesmo. Eu nunca pensei que fosse me sentir aliviada ao vê-la.

— E então, como estão as coisas aqui? — ela perguntou assim que nos viu.

— Acabei de mostrar o Jonas para ela. Falando nisso, você encontrou ele por aí?

— Ele está lá embaixo bebendo cerveja com os rapazes. Eu trouxe uma coisinha bem melhor para a gente.

Ariane levantou a garrafa e a sacudiu enquanto ria. Em seguida, ela abriu a garrafa e começou a servir os copos. Ela me entregou um deles com um grande sorriso no rosto.

— O que é isso? — Eu perguntei enquanto olhava para a bebida. Por mais que fosse uma pergunta idiota, eu não ia aceitar qualquer coisa assim.

As duas riram juntas e Olívia me respondeu:

— É um dos uísques do meu pai. A gente sempre pega um para aproveitar a festa e ele nunca percebe.

— E estamos dividindo com você hoje — Ariane comentou, levantando o copo. — Você devia se sentir honrada.

— Caramba, Lissa, eu não sabia que você era mais quietinha e tal, mas não imaginei que você fosse tão caretona! — Assim que terminou de falar, Olívia bebeu um gole do seu copo. — Vai, já passou da hora de você aprender a se divertir!

— Se soltar um pouquinho não ia te fazer mal, sabia? E passar uma maquiagenzinha de vez em quando, se arrumar um pouquinho mais… Você devia se valorizar mais, menina. Os garotos todos iam babar por você se você tentasse.

Olhei para o meu copo e não respondi. Eu sabia que a diferença entre mim e as outras garotas da minha idade era gritante e isso só confirmava tudo. Por que eu usar maquiagem ou não importava tanto? Por que eu tinha que me preocupar com a atenção dos garotos? Por que eu não podia só viver a minha vida com Roy e Liesel?

— E então, Lissa? — Olívia me chamou outra vez. — Você vai deixar de ser certinha pelo menos essa noite?

— Por que foi que você veio aqui, mesmo, Mel? — Roy perguntou ao meu ouvido.

As vocês ao meu redor, reais e imaginárias, se misturavam e me deixavam cada vez mais confusa. Não respondi nada e decidi apenas seguir o que eu tinha decidido desde o começo: só por uma noite, eu não ia pensar demais.

A imagem daquela garota passando mal voltou à minha cabeça por um instante. Eu não sabia se realmente queria fazer aquilo, mas fechei os olhos e bebi um gole do meu copo e senti o líquido descer, queimando a minha garganta. Eu só queria que o álcool me ajudasse a encontrar um pouco de coragem ou, na melhor das hipóteses, que me transformasse em outra pessoa.