A Caçada Começa

O silêncio é perturbador


O silêncio seria absurdo dentro da caverna sem os estalos do fogo para quebrá-lo. Minha respiração era tão leve que nem eu mesma podia ouvi-la e meu coração batia silencioso. Meu corpo sofreu alterações, até eu completar 18 anos. Minhas presas pontudas, compridas. Unhas longas, finas e muito fortes. Eu já estava começando a me acostumar com as mudanças que haviam acontecido, mas viver sozinha estava começando a ficar insuportável.

Durante vários meses eu vivi afastada de qualquer pessoa. Não queria continuar vivendo como uma assassina, vivia sofrendo por causa disto. Um pedaço de espelho desajeitadamente pendurado em um canto mostrava o quanto meu tormento havia me afetado: Meus olhos, antes de um simples azul, agora escurecendo cada vez mais, conforme minha necessidade de energia. Evitava usar minhas habilidades sempre que possível, para não necessitar de sangue humano tão breve. Acabou não dando muito certo. Eu estava enlouquecendo com o passar dos dias, e cada um era mais sofrido do que o anterior. Estava muito fraca e meus olhos estavam negros como o céu durante a noite. O desespero e a necessidade estavam começando a ficar a um nível insuportável. Tentava satisfazer-me com sangue de animais, mas isso só era o suficiente para eu não mais sentir fome.

Durante o pôr do sol era meu tempo preferido para procurar algo para comer. As sombras me forneciam esconderijo. Me esgueirava pela floresta procurando algum animal selvagem. Um urso pardo seria ótimo, são divertidos de matar apesar de cansativos. Enquanto procurava silenciosamente, acabei sendo surpreendida. Cheirando o ar e procurando por um urso, acabei sentindo o cheio de sangue humano. Podia ouvir sua respiração pesada e seu coração batendo vigorosamente. Meu coração martelava fortemente, minha boca começava a querer pingar saliva. Meu desejo aumentava, o monstro tomava posse aos poucos, até chegar ao ponto em que, sem sequer perceber o que fazia, atravessei a floresta até onde a pessoa estava. Escondida atrás de uma árvore, estava a poucos metros dele enquanto vi ele terminar de subir aquela parte da montanha. Devia ter aproximadamente 1,75 de altura, braços e pernas fortes, pele bronzeada. Seus olhos eram de um negro intenso, porém lindos de se ver. Seus cabelos castanhos eram encaracolados e pouco compridos, caídos. Sua camisa, parecida com algo vindo do velho oeste, estava desabotoada e revelava seu peito e parte do abdômen, liso e bem definido. Meu coração acelerou mais do que o normal, minhas pernas tremiam tentando me obrigar a correr, pular, morder, arrebentar. Mas eu não conseguia. Fiquei paralisada, observando enquanto ele tentava recuperar o fôlego. Eu estava tão distraída e assustada que acabei cometendo um erro. Quando consegui me locomover levemente para o lado acabei quebrando um galho de árvore com o passo que dei. Ele rapidamente levantou a cabeça em minha direção e me viu. Depois de alguns segundos de ficar com o rosto de expressão nenhuma, deu um sorriso enorme e permaneceu imóvel alguns instantes. Fiquei atordoada e não sabia o que fazer. Quando voltei a mim ele estava ao meu lado, me ajudando a levantar do chão.

- Você saberia me dizer para qual lado fica o Acampamento Light Sun? – Perguntou ele com tom casual e um sorriso enquanto me ajudava a levantar.

Minha garganta, a qual já jazia seca, secou mais ainda quando fui obrigada a respirar para lhe responder.

- Não – Respondi rouca. Tossi em uma tentativa de normalizar minha voz.

Ele grunhiu baixinho e voltou a falar.

- Estou perdido e sem qualquer senso de direção... – Ele parou subitamente e olhou para mim por alguns instantes. Permaneci paralisada enquanto ele olhava fundo em meus olhos – Mas, e você o que faz aqui? – Disse quebrando o silêncio.

Eu não respondi, apenas olhei para seus grandes olhos negros.

Minha respiração estava pesada, e cada lufada de ar que eu inspirava fazia meu corpo inteiro tremer de desejo por sangue. Cerrei os punhos com toda força que tinha, na intenção de tentar me aliviar.

- Me desculpe – Murmurei para ele enquanto abaixava a cabeça. Antes mesmo de ele poder sequer ficar confuso, num impulso desesperado o empurrei com força para longe. Seu corpo se chocou violentamente contra um dos pinheiros da floresta.

Minhas mãos tremiam. Eu não podia matá-lo, de alguma forma eu sabia que não podia. Fraquejei e caí de joelhos no chão, onde comecei a chorar baixinho. Gritei e bati os punhos no chão com toda força que podia. Só então recordei que o rapaz era humano. Levantei o mais rápido que conseguia e me aproximei dele. Eu o havia machucado, senti o cheiro de sangue fresco. Estiquei minha mão e toquei seu couro cabeludo. Minha mão encharcou-se de sangue, minha boca salivou violentamente, meus músculos tremeram, minha pulsação aumentou. Eu precisava me conter, desesperada cravei minhas unhas violentamente no meu braço e gritei com toda a força que ainda me restava. Sangue jorrou dos ferimentos. Sem me importar com eles e não sentindo dor alguma, segurei o rapaz em meus braços e voltei com ele para a minha casa. Eu não tinha coragem de matá-lo, mas não poderia simplesmente deixá-lo ali. Ele estava ferido.

Coloquei-o cuidadosamente na cama. Seus cabelos estavam melados de sangue. Eu precisava fazer algo rápido, ou ele acabaria morrendo de hemorragia. Da melhor maneira que consegui, limpei os ferimentos e tentei conter o sangue. Freqüentemente, quando achava que perderia o controle de mim mesma, rasgava meu braço com minhas unhas, com toda a força que eu tinha, alguma vez ou outra gemendo de dor enquanto via meu sangue escorrer pelo braço. Tudo bem, é uma maneira estranha de me conter, mas com a dor que eu sentia eu voltava à realidade. O monstro dentro de mim era muito forte, e eu ainda não conseguia controlá-lo. O tempo que fiquei afastada de sangue humano só agravou a situação. Tive de ficar longe dele o maior tempo possível. Fui até o precipício do lado de fora e sentei-me na borda. Já era noite, e a única iluminação era a fogueira perto da entrada.

Eu me sentia estranha, não consigo explicar como. A única certeza que eu tinha, era de que esse rapaz tinha algo de que eu precisava. O que? Não tinha mínima idéia. Tinha algo nele que era diferente, e eu precisava descobrir o que era. Não era tirando sua vida que eu descobriria.

Estava totalmente absorvida em meus pensamentos que nem percebi quando ele acordou, levantou e sentou do meu lado. Ficou em silêncio, observando por alguns momentos.

- O que foi que aconteceu? – Perguntou ele.

- Me desculpe – Murmurei – Eu não consegui me controlar... – Parei abruptamente, achando que havia falado demais. Ele pareceu confuso, pois nada disse e sua sobrancelha esquerda subiu lentamente.

- Tudo bem – Suspirou ele depois de alguns minutos – Eu estou bem, eu acho – Disse ele num sorriso. A sua camisa, um pouco aberta, facilitava a passagem da lua, e eu podia ver seu peito liso como uma tábua. Nem conheço o cara direito e já estou começando a querer saber o que tem debaixo da camisa dele. Só eu mesma.

- Acho que estou sendo mal educado – Suspirou ele, cortando meus pensamentos – Meu nome é Jesse, Jesse de Silva¹.

Levei alguns segundos para me livrar do atordoamento, e quando consegui falei em uma voz que deve ter saído esganiçada.

- Meu nome é Monique Jast Lienn.

Ele continuou com aquele sorriso bobo no rosto. Sem eu perceber, meu corpo já estava começando a ficar agitado novamente. Mas eu sentia uma paz, que achava que vinha daquele sorriso tranquilo e verdadeiro. Apesar de que, só de imaginar o sangue quente que escorria pelo corpo dele me fazia tremer.

- O que aconteceu com o seu braço – Perguntou ele subitamente, estendendo a mão e segurando meu braço esquerdo delicadamente.

- Ah, não foi nada – Disse abaixando a cabeça e tirando meu braço das suas mãos. Mãos fortes e delicadas... Eu não contaria o que havia acontecido, não mesmo. Ele virou-se na direção da paisagem.

- Onde estamos? – Perguntou ele.

- Gallatin Range – Respondi o mais suavemente que conseguia. Ele pareceu surpreso.

- Como chegamos aqui?

- Você não entenderia.

Me olhava com frequência, sem alterar sua expressão, a qual permanecia séria. Ele deveria estar confuso. Será que desconfiava de algo? Provavelmente nem sabe da existência de pessoas assassinas como eu, não sabe o perigo que está correndo. Mesmo assim, era bom ter ele por perto. É bom ter alguém com quem conversar, melhor ainda se for alguém do tipo dele. Aaah Monique, pare de pensar essas coisas. Olhei na direção dele. Eu nada conseguia ver através de seus olhos escuros. Durante alguns instantes fiquei olhando para ele, quando ele se virou e olhou fundo em meus olhos. Não tive coragem de me mover, conseguiria eu compreender algo olhando em seus olhos? Meu coração acelerava, minhas mãos tremiam e suavam. Alguns instantes após ele parar de me olhar e virar-se para o outro lado, eu consegui falar.

- Se não se importa, eu estou cansada – Falei enquanto levantava-me do chão, acrescentando – Se quiser pode passar a noite aqui – Forcei um sorriso.

- Acho que não tenho outra opção – Murmurou ele depois de alguns instantes.

Como eu sou muito educada, deixei-o dormir na minha cama. Eu não dormia mesmo, e ele precisava descansar. Quem sabe o que se passa pela cabeça dele? Enquanto isso eu ficava ao lado de fora, observando as estrelas, ou caçando até a lua sumir.

Eu fingia estar tão perdida quanto ele, mas ele mal questionava. Não falava muito, e muitas vezes o que dizia eram apenas comentários. Alguma vez ou outra murmurava coisas em espanhol que eu não compreendia. Jesse e eu ficamos morando juntos mais de uma semana. Ele parecia não se importar com a minha companhia, mas ainda não compreendia porque ele não havia ido embora. É muito raro existirem pessoas que conseguem suportar minha companhia, sério. Ele não precisava encontrar o acampamento? Muitas vezes eu flagrava-o me observando, com expressão nenhuma e sem mesmo alterá-la ou se dar o trabalho de disfarçar quando eu olhava em sua direção. Algumas vezes o(s) canto(s) da sua boca se voltava(m) para cima quando ele percebia que eu estava encarando-o, e eu sempre corava. Posso dizer que ele era uma boa companhia. Depois de vários dias vivendo junto dele, consigo conter minha sede por sangue, porém preciso sempre que possível manter meu estômago cheio, saindo para caçar de três a cinco vezes diárias. Ele parece não se importar com as desculpas que eu invento, e sempre que eu retorno, ele está por perto colhendo ou analisando algum tipo de planta ou mesmo perto de algum rio. É muito observador, não é de falar muito. Sequer se importava em disfarçar o que fazia quando eu me aproximava. Quando eu muitas vezes voltava de alguma caçada machucada (gravemente ou não) ele sempre cuidava de meus ferimentos. Até que ter Jesse por perto era bem útil em algumas ocasiões.

Acho que já haviam passado mais de um mês, e Jesse ainda permanecia morando comigo. Eu estava curiosa, queria mais do que tudo saber o que se passava pela cabeça dele. Ele estava na floresta logo abaixo e eu resolvi ir até ele.

Jesse estava sentado na sombra de uma árvore, tendo seus cabelos levemente balançados pela brisa. Aproximei-me devagar dele e sentei ao seu lado.

- Tudo está tão calmo hoje – Murmurou ele enquanto eu sentava ao seu lado.

- O vento resolveu dar-nos uma trégua – Suspirei – Não agüentava mais comer meus próprios cabelos – Ri baixinho. Jesse apenas moveu um dos cantos da boca para cima e relaxou a expressão novamente.

- Jesse – Falei me virando em sua direção, tentando chamar sua atenção – Eu queria lhe perguntar uma coisa.

Ele virou-se vagarosamente e olhou para o meu rosto. Aaah, eu odeio quando ele olha para mim daquela maneira, eu sempre sinto meu rosto esquentar.

- Diga – Sorriu ele.

- Bem, é que eu... – Engoli em seco – Estava pensando... Queria saber porque você, porque ainda continua aqui.

Ele continuou me olhando, sem demonstrar qualquer reação.

- Não que eu queira que você vá embora – Acrescentei num murmuro – É só que eu...

- Acho que gosto daqui – Suspirou ele cortando meus pensamentos – Mas, se não se importar, eu prefiro guardar as suposições para mim mesma.

Ele parecia tenso, sua cicatriz esbranquiçou. Posso dizer que no momento não tive esta conclusão, mas ele devia ter ficado chateado ou irritado com a minha pergunta. Jesse permaneceu calado, parecia pensativo. Algum tempo depois cansei de olhar para ele, e me virei para o outro lado. Quando percebi, ele estava levantando do chão e murmurando algo que precisava fazer, mas que eu não compreendi.

Eu estava curiosa. Não sairia para caçar naquela noite. Sim, eu sou uma tola, correria o risco de acabar matando Jesse só por curiosidade. Eu ficaria durante noite inteira observando Jesse enquanto ele dormia. Tinha cabelos e rosto muito bonitos, o formato da boca igualmente. Braços, pernas e mãos fortes, músculos bem definidos, proporcionais ao corpo. Sua camisa um pouco desabotoada revelava grande parte do peito e parte do abdômen. Será que ele fazia muitas abdominais para manter o corpo assim tão perfeito? Minha respiração voltava a acelerar com o barulho do seu batimento cardíaco. Aproximei-me mais dele e me abaixei ao seu lado. Tinha uma pequena cicatriz branca em sua sobrancelha esquerda. Eu nunca havia realmente notado ela, mas podia dizer que parecia mais branca do que o normal. Sua face estava levemente contraída. Talvez seu corpo pressentisse o perigo ou mesmo minha aproximação. Minha saliva estava a aumentar consideravelmente. Respirei fundo, porém isso só piorou as coisas. Senti um aperto no meu peito e sem pensar uma vez sequer, corri para fora da caverna antes que cometesse alguma ação precipitada. Tropecei e caí no chão. Respirava rápido e pesadamente, contraindo a mão sobre o peito. A dor era tão intensa que acabei gemendo baixo. Quando consegui, sentei no chão e enterrei a cabeça nos joelhos, chorando silenciosamente. O que estava acontecendo comigo?