A Caçada Começa

Necessidade de um recomeço


Dois anos foram suficientes para aprimorar e descobrir novas habilidades. Havia aprendido muito sobre mim mesma. Ao completar dezoito anos descobri que minha aparência seria eterna a partir daquele dia, por isto eu precisava de uma vida em outro lugar, precisava recomeçar longe de todas as pessoas que eu conhecia ou me conheciam.

As pessoas começaram a enlouquecer nos últimos anos por causa de meus ataques a seres humanos. Meus amigos tentavam contato comigo frequentemente, sempre preocupados, enquanto eu sentia uma imensa dor por não poder lhes revelar o que acontecia comigo. Os cidadãos criavam todo tipo de história para tentar explicar o que acontecia com todos, e tenho de dizer que pelo menos para mim elas não eram nada convincentes.

Eu viajaria para o continente em dois dias, para morar em Idaho, EUA. Sim, eu estava a ir para Gallatin Range¹, a montanha que cerca o Parque Nacional de Yellowstone a noroeste. Nenhum lugar melhor para eu viver do que em uma montanha longe da maioria das pessoas. Pelo menos os turistas me seriam úteis enquanto estivessem desprotegidos por lá. Eu poderia fingir um pequeno acidente e aproveitar-me disto. Sim, eu sei que não é certo, mas era necessário.

Havia comprado muitas coisas com o ouro de minha penúltima aventura em um livro. Às minhas roupas foram dados uns pequenos toques de mágica, fazendo com que elas não mais se desintegrem. Será muito útil.

O melhor de tudo era que eu não precisava de um avião para ir até lá. Seria chamativo demais. Minhas pernas são fortes o suficiente, eu chegaria lá correndo em menos de um dia.

Refletia enquanto caminhava até a casa de meus amigos. Queria vê-los pela última vez.

Ao subir pela janela, pude ver Emily sentada em frente ao computador. Sua aparência havia mudado muito desde a última vez que eu a havia visto. Era uma mulher adulta agora. Tocava violão, escrevia, conversava com os amigos. Não pude deixar de admirar o quão bem ela tocava. Tive de sorrir. Ela parecia muito feliz. Olhei para ela uma última vez e fui embora.

Kaio não estava em casa, porém não foi difícil de encontrá-lo. Estava no restaurante junto de Thuyanne. Conversavam tranquilamente e riam muito. Kaio parecia muito mais alto, enquanto Thuyanne havia amadurecido muito. Tinham uma vida normal, e eu não queria atrapalhá-los. Eu era apenas uma pedra no caminho deles, e uma pedra realmente grande.

Geovanna estava no shopping com Bruno, como geralmente acontece. Deixavam os lojistas embaraçados sempre que podiam, exigindo coisas impossíveis ou mesmo bizarras. Confesso que acabei achando graça da expressão apavorada de alguns lojistas, pois, ela era filha de um dos homens mais ricos da região. Não é surpresa que se desesperem tanto ao não conseguir agradá-la.

Havia uma coisa com a qual eu não havia contado: Eu estava em uma ilha. Como atravessaria o oceano? Com certeza eu não era capaz de andar por cima da água, seria absurdo até para mim. Talvez eu conseguisse nadar, porém tinha outras coisas com as quais me preocupar no momento. Eu havia gastado muita energia, jamais conseguiria sobreviver até Yellowstone estando tão fraca. Eu precisava de alimento. Precisava de sangue. Sangue humano.

Os arredores do cemitério eram ótimos para se ficar à espreita. Eu podia avistar as montanhas do oeste da ilha. Ela seria minha possível rota de fuga. Esperava calmamente na sombra de uma árvore, enquanto vi uma mulher aproximar-se. Estava de vestido e devia ter aproximadamente 32 anos. A vítima perfeita, na perfeita hora em que ninguém estava por perto.

Ela caminhou lentamente até o banheiro feminino. Logo após ela entrar eu a segui. Estava calmamente lavando a mão enquanto murmurava algumas coisas que não me dei o trabalho de entender o que era, enquanto eu pacientemente arrumava o cabelo olhando no espelho. Ela começou a conversar comigo, e eu achei que seria uma boa idéia, assim conseguiria distraí-la e pegá-la de surpresa.

- Parece que o período de chuva vai demorar a cessar – Murmurou ela.

Puxa vida, mas que papo tedioso.

- Não agüento mais sair de casa com todos os dias chovendo.

- Isso acaba com o meu cabelo – Reclamou ela – Justo eu que sempre tento me manter limpa...

Enquanto ela falava, me aproximei devagar. Como ela estava distraída, pousei minha mão sobre a sua boca e murmurei em seu ouvido.

- Pena que hoje será impossível manter seu vestido limpo do seu sangue, já que ele é tão clarinho.

A mulher ficou apavorada e tentou fugir de mim. Antes que ela tivesse chance de se soltar da mão que eu a segurava, pousei minha mão no lugar certo e... Clack. Quebrei o pescoço dela. Tomei o cuidado de não esparramar sangue no chão e a arrastei até a floresta.

Ao decidir que estava longe de qualquer tipo de olhares curiosos, me ajoelhei ao lado do corpo inerte e cravei meus caninos em seu pescoço. O sangue ainda era quente, mais com certeza era melhor de beber enquanto o coração ainda batia. Infelizmente não era o caso de minha atual vítima. Quando mais nenhum proveito podia tirar do corpo sem vida, desintegrei-o. Sim, eu podia fazer isto, desta forma eu não deixava rastros. O corpo simplesmente desaparecia.

Caminhava calmamente pela floresta enquanto subia na encosta da montanha. Eu poderia dizer que era muito acidentada e difícil de escalar, mas não para mim. Enquanto estava no topo da montanha observando, percebi nuvens de tempestade chegando. Com certeza elas não demorariam a chegar, e isso dificultaria minha passagem pelo oceano, já que eu sequer fazia idéia de como iria atravessá-lo. Um barco seria uma boa idéia, mas com certeza não em uma tempestade. Acho que minha única opção era realmente nadar, então lá fui eu, correndo até os limites da ilha, onde ela finalmente encontrava o mar.

Pequenas ondas vinham até a costa e quebravam-se nas pedras logo adiante. A água era fria, mas não me importava. Guardei onde pude meus pertences e lancei-me ao mar. Pode-se dizer que não nadei durante muito tempo, pelo menos não para mim.

Avistei areia, finalmente eu poderia recomeçar. Caminhei até a praia logo adiante. Pode se dizer que aquela viagem, apesar de parecer realmente curta, me custou muitas energias. Eu seria obrigada a dormir, pelo menos durante algum tempo. Juntei vários pedaços de troncos de árvores e fiz uma pequena fogueira em uma caverna aos limites da praia. Deitada ao lado do fogo, sequer conseguia sentir seu calor, mas me fazia sentir bem, pois eu estava sozinha e já era noite. Sequer percebi que, enquanto observava as chamas bruxuleantes, meus olhos começaram a pesar e eu adormeci.

Estiquei-me o máximo que conseguia e lentamente abri os olhos. Percebi a fraca luz do sol adentrando na caverna. O fogo havia queimado toda a madeira e agora existiam apenas cinzas. Eu me sentia completamente renovada. Ao sentar-me, percebi uma leve camada de poeira em cima de mim.

- Devo ter ficado desacordada por dias, talvez semanas...

Ouvia o mar batendo nas pedras ao longe. Respirei fundo e levantei do chão. Meu estômago gritava por comida. Precisava encontrar algo para comer, mas infelizmente meu estômago teria de esperar. Juntei meus pertences e caminhei até o lado de fora da caverna. Olhei a praia em volta e com um último suspiro comecei a correr a noroeste. O vento emaranhava meus cabelos enquanto o sol brilhava sobre eles. Já passava do meio dia.

Subi montanhas, passei por vales e rios. Florestas verdejantes me disponibilizaram alimento, deixando-me farta facilmente. Avistei cumes cobertos de neve, desertos que brilhavam ao longe. Pássaros que tentavam voar o mais rápido que podiam, como se fosse o último dia de sua existência. E toda essa beleza estava silenciosa. Eu procurava passar o mais longe possível de cidades, então tudo era silencioso. Nada de ouvir pessoas conversando, reclamando. Nada de barulho de carros, televisões, rádios, construções. Apenas o leve ruído dos animais e das folhas farfalhando com a leve brisa.

Faltava pouco para conseguir chegar até Yellowstone. Já conseguia ver as florestas verdejantes e os gêiseres ao longe. As coisas eram tão naturais quanto possíveis. Poucas alterações humanas foram feitas.

Gallatin Range estava ao meu alcance de visão. Vastas florestas estendiam-se por elas, enquanto a neve no cume de algumas de suas montanhas juntamente com os rios e lagos próximos só deixavam a paisagem ainda mais exuberante. Cada nervo do meu corpo estava tremendamente ansioso para conhecer mais de perto. Sem hesitar, caminhei por toda a extensão da cadeia de montanhas. Avistei muitos animais e alguns turistas aventureiros. Com minha velocidade mais rápida do que a capacidade de captação de um humano, não fui vista por qualquer um.

A vista era tão bonita que não pude evitar procurar um lugar alto para ser, digamos, minha casa. Eu poderia facilmente construir uma caverna em alguma montanha, porém teria de ter o cuidado de fazê-la o mais discreta possível. Não seria agradável se alguém viesse a descobrir.

Ah sim, eu encontrei um ótimo lugar e logo comecei a cavar. Madeira de pinheiros foram utilizadas para fazer móveis, juntamente com suas folhas e qualquer coisa útil que eu viesse a encontrar.

- Ficou melhor do que imaginei ser possível – Murmurei enquanto observava o trabalho feito. A caverna era ampla, tinha uma cama feita de madeira de pinheiro com um colchão de folhas secas. Consegui fazer também armários, mesa e cadeiras. Seria exagero dizer que eles ficaram ótimos. Nunca estudei qualquer coisa sobre fabricação de móveis, mesmo assim acabaram ficando razoáveis. Eu não passaria muito tempo ali, então já era o suficiente. Minha sorte grande foi de conseguir uma enorme pedra de lava vulcânica, assim poderia tampar a entrada da caverna sempre que não estivesse ali.

Caminhando até o lado de fora, sentei na beirada da montanha, onde podia balançar livremente os pés. Com um suspiro longo admirei aquela imensidão de florestas, lagos e vida. Tudo tão calmo, pena que eu acabaria quebrando este equilíbrio tão frágil, querendo ou não.