Enquanto a noite se arrastava lentamente eu já estava no cume de uma montanha, na copa de uma árvore, observando o luar. O céu parecia um imenso tecido negro que havia sido coberto por milhares de respingos brancos. A lua estava cheia naquela noite e parecia maior do que eu jamais percebi. Apesar de tanta beleza ao meu alcance de visão, eu ainda podia ver a cidade e as pessoas ao longe, enquanto atormentava-me com o terrível destino de Kayla. Eu pensava na sua família, amigos... O quanto sofreriam por causa da minha imbecilidade. Eu tinha vontade era de ir me enforcar, seria a primeira boa idéia que eu teria em toda a minha vida.

Meus sentidos aguçados me informaram que era mais de onze horas da noite. Eu não sentia sono e a menor vontade de dormir.

- Talvez eu não precise – Murmurei para mim mesma. Mesmo sem sono, eu nada tinha a fazer, Estava muito nervosa e provavelmente acabaria fazendo alguma bobagem, então me obriguei a dormir, pelo menos por algum tempo. O que eu não esperava era que eu dormiria direto por vários dias seguidos.

Abri um pouco as pálpebras e logo fui obrigada a fechá-las novamente devido à grande luminosidade. Já passavam das duas da tarde e o céu estava limpo. Pisquei várias vezes até conseguir adaptar-me. Eu ainda estava na copa da árvore. Ao descer, sentia-me tão fraca que mal conseguia agüentar-me em pé. Meu estômago gritava. Fui obrigada a usar minhas habilidades e encontrar algo para comer. Eu ainda sentia nojo em ter de me alimentar de sangue, mas como eu não tinha outra opção...

Fiquei várias horas testando minhas habilidades, descobrindo do que era ou não capaz. Eu era muito forte e não sentia dores. Acabei descobrindo isto quando uma árvore quase arrancou meu braço, deixando um rasgo enorme nele.

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Ouvi um córrego há alguns quilômetros e algum animal estava a beber água por lá. Corri floresta adentro até minha vítima. Sequer parei para ao menos saber que animal era. Só percebi quando estava colada ao corpo dele, poucos segundos depois de ouvi-lo, minhas presas já cravadas em seu pescoço, sugando seu sangue. Tenho de admitir que eu já estava me adaptando perfeitamente a beber sangue, mas o sangue de um alce não era nada comparado ao sangue humano. O sangue humano era muito melhor. Após me sentir satisfeita, continuei caminhando pela floresta, lembrando de tudo que eu havia abandonado... Meus pais, meus livros, meu violão e meu violino... Meus amigos. Sentiria muita falta deles, e eles deveriam estar muito preocupados comigo. Então eu tive uma idéia. Minha audição era muito aguçada, talvez eu conseguisse ouvir as pessoas da cidade...

Fechei os olhos e prestei atenção por alguns instantes. Primeiro eu só ouvia o córrego logo adiante. Quando me concentrei melhor pude ouvir pessoas conversando sobre música, televisão, empregos e muitas coisas mais. Parei subitamente quando uma comentou sobre o dia atual. Eu havia saído de casa no dia sete, disto eu tinha certeza. Descobri que estávamos no dia dezoito. Sem sequer perceber, fiquei dormindo durante muitos dias sem me alimentar, por isto estava com tanta fome.

- E por isto que minhas roupas estão um trapo – Murmurei. Eu precisava de roupas novas. Veloz como o vento, corri até minha casa, subi pela parede e entrei em meu quarto. Ele estava da mesma maneira que eu havia deixado, exceto por algumas roupas limpas jogadas sobre a cama. Rapidamente troquei de roupa. O saquinho de moedas me foi útil novamente, pois permitiu que eu ali guardasse muitas roupas. Antes que eu tivesse chance de ir embora, a porta escancarou-se e Anne entrou no quarto. Ela estava de cabeça baixa, rosto relaxado, mas, ao levantar a cabeça sua expressão era de surpresa, porém ao mesmo tempo de felicidade. Ela jogou o cesto de roupas no chão e correu até mim, dando um forte abraço.

- Monique! – Gritou aliviada – Onde esteve? Fiquei tão preocupada com você! Você está bem!? Onde estava todos estes dias?

Eu estava me sentindo sufocada. Espirava com dificuldade enquanto o forte cheiro do sangue de Anne pairava no quarto. Seu corpo quente grudado ao meu, eu podia sentir sua pulsação, seu sangue quente e delicioso correndo sem parar. Quase não consegui me conter.

- Anne, eu sei que lhe devo muitas explicações, mas não posso respondê-las agora – Disse-lhe com agonia, implorando para que me deixasse ir. Enquanto eu me virava para saltar pela janela, Anne segurou meu pulso.

- Por favor, não vá – Disse ela virando-me e já com os olhos cheios de lágrimas – Você é minha única amiga, preciso de você aqui. Eu estou com muito medo. Estão acontecendo coisas muito estranhas por aqui Monique.

Parei por um momento, esperando que Anne continuasse.

- Alguém entrou na biblioteca durante a noite – Disse Anne com dificuldade - E matou Kayla... – Pude perceber o sofrimento em sua voz - Por favor, fique! Seus pais estão preocupados com você – Disse ela em prantos.

- Não posso ficar Anne – Repeti sem alterar a voz, já quase chorando – Eu preciso ficar longe de todo mundo, pelo menos por enquanto. Tenho muitos problemas para resolver

- Mas o que pode ser tão ruim para você ter de se afastar de todos nós? Não pode ser tão ruim – Ela me abraçou novamente, implorando para que ficasse. Meu coração martelava com força, eu cerrava meu punho, tentando conter-me.

- Você não entende! – Falei um pouco mais alto do que pretendia, afastando seu corpo do meu – Eu não posso ficar!

- Por que não!? – Insistiu ela. Segurei seus braços com força.

- Não posso ficar...

- Me diga o motivo, eu vou te ajudar a superar seja o que for – Implorou Anne.

Irritada com a insistência e com medo de acabar fazendo alguma besteira, joguei-a no chão. Como acabei usando demasiada força ela arrastou pelo chão até bater na parede. Minha expressão deveria ser muito feroz, porque a de Anne se transformou em horror e pânico.

- Eu não posso ficar! – Gritei. Tentei regular minha voz, já chorando e entre soluços consegui dizer – Eu matei Kayla, fui eu!! Eu sou uma assassina Anne, não posso ficar aqui e correr o risco de machucar mais alguém.

Virei de costas para ela e continuei a falar.

- Não consigo me controlar – Dei uma breve pausa e um longo suspiro – Por favor, vá embora e não me procure mais, não quero lhe machucar, Anne.

Pude sentir o pavor de Anne. Ela arrastou-se para fora do quarto e saiu correndo enquanto chorava e soluçava. Debrucei-me na janela e enterrei minha cabeça nas mãos. Precisava conter o choro. Eu havia assustado Anne demais, ela não merecia, e assim, mais uma vez eu havia provado ser totalmente inútil. Encostei a porta do meu quarto. Precisava de um tempo sozinha. Olhei em volta meu computador, meus cadernos, livros, desenhos toscos e tentativas fúteis de quando eu ainda tinha uma vida não tão anormal. Senti falta dos meus amigos. Eu não podia deixar tudo por isto mesmo. Eu havia prometido vingar-me, e eu iria. Senti uma raiva tão grande que não consegui me conter. Fui até a biblioteca e encontrei o maldito livro em uma das prateleiras.

- Pelo menos desta vez foi mais fácil de te encontrar, seu inútil – Resmunguei – E agora você vai me pagar por tudo que me fez.

Eu já sabia qual era o plano dele, e não deixaria que um homem idiota e qualquer destruísse a minha vida nada perfeita. Abri o livro e desejei mais do que nunca voltar até a casa do maldito Victor. Tudo ficou tão claro que fiquei cega por alguns milésimos de segundo, e então eu estava lá, de volta na Irlanda. E para a minha surpresa, ele estava me esperando. Pelo menos eu não precisaria perder minha paciência procurando-o. Ele deve ter sentido minha ira enquanto eu segurava o livro.

- Então resolveu retornar, Monique – Disse Victor com um sorriso zombeteiro no rosto.

- Não pense que irás destruir minha vida e eu vou deixar passar em branco – Falei no mesmo tom de voz, com a cabeça baixa e um sorriso maléfico no rosto – Irás se arrepender de teu feito.

Ele parecia muito satisfeito com a minha decisão, e quando ele menos esperava movi uma espada, antes no chão, em sua direção. Sem o mínimo de esforço, ele a jogou para o lado como se fosse feita de borracha.

- É tudo que tem!? - Vociferou ele.

Concentrando todas as minhas forças, movi tudo que estava a meu alcance na direção dele. Tudo ele conseguia evitar, porém eu percebia o esforço que ele fazia. Móveis, pedras, armas, bolas de canhão, casas inteiras, blocos de pedra. Ele evitava tudo. Apenas seu cansaço era um pouco visível.

Acalme-se, o desespero é o maior inimigo. Desespere-se e morra. ¹ - Pensei.

- O que acha de uma luta com espadas? – Desafiei. Eu sabia que com certeza não era a melhor em lutas com espadas, mas aquela experiência que tive antes de matar Kayla havia me rendido muita experiência.

- Claro, porque não – Animou-se ele, dando um sorriso perverso.

Eu precisava de uma espada do arsenal dele. Qualquer arma que eu tocasse eu iria adquirir as habilidades de quem a usou. Mentalmente procurei uma espada dentro da casa de Victor. Encontrei uma perfeita. A espada mal chegava a mim e ele já estava com a sua. Senti a energia que a espada passava-me. Então, com uma velocidade além da capacidade humana, ele deu seu primeiro ataque.

Não posso deixar de admitir que ele fosse veloz, mas eu também era. Ele estava enfraquecido e eu estava com as energias renovadas, e meus poderes vinham dele. Seus golpes eram consecutivos, algumas vezes eu mal tinha tempo de defender-me. Eu estava indo bem, tentaria cansá-lo antes de contra atacar. Horas passavam, eu começava a ficar cansada juntamente com ele. Mas meu cérebro ainda funcionava muito bem. Apertei minha espada com mais força e avancei para cima dele. Golpeei uma, duas, três vezes. Ele sempre sabia com antecedência o meu próximo ponto de ataque.

Preciso de outra tática, pensei. Então me veio uma idéia. Eu fingiria atacar em uma região e desviaria para outra que não havia tentado antes. Então, como se tudo dependesse de meu golpe, mirei a lâmina da espada na direção de sua perna esquerda. Quando ele menos esperava, desviei e atingi seu ombro direito. Ele gemeu, recuou e cambaleou um pouco, mas menos de dez segundos depois ele já estava firme novamente, e revidava. Eu sentia o meu braço começar a cansar com o passar do tempo. Ele não desistiria facilmente.

Um de seus golpes acabou por me distrair e ele acertou meu peito. Uma ferida grande abriu e eu via o sangue escorrer. Estava enfraquecendo aos poucos.

Preciso detê-lo, não terei mais força para continuar com isto durante muito tempo mais, trinquei os dentes. Precisava de um plano e com meu cérebro ágil, consegui um. Lentamente forcei-o a recuar, e quanto ele percebeu, caiu em minha armadilha. Começou a vir cada vez mais para cima de mim, me obrigando a recuar em vez dele. Ele percebeu estar me levando para um abismo e me obrigou a recuar cada vez mais rápido, exibindo um enorme sorriso de vitória. O que ele não sabia era que eu tinha planos com os quais ele não havia contado. Recuei mais um passo, e outro, mais outro.

Só mais alguns passos, aguente firme Monique, pensei trincando o maxilar.

- Parece que é o fim do jogo, Senhorita – Zombou ele.

- Não é uma boa idéia cantar vitória antes de ganhar – Murmurei de cabeça baixa e limpei o suor da testa com as costas da mão. Ele pensava que havia me encurralado e que eu não tinha escapatória. Fingi que havia me rendido, para fazê-lo ficar mais confiante e baixar a guarda. E foi exatamente o que ele fez.

No exato momento em que ele vacilou mergulhei de cabeça por entre suas pernas. Enquanto passava me virei de barriga para cima. No exato momento em que ele dava meia volta para deter-me, eu já estava no meio de um pulo, cravando minha espada em seu peito no momento em que ele terminou de virar-se para mim. Saltei para trás e ali deixei minha espada a qual atravessava seu corpo, com um sorriso de triunfo.

- Vo-você... Irá s-se ar-rrepen-pender – Disse ele com as últimas forças que lhe restavam, enquanto sangue escorria pelo canto de sua boca e pelo ferimento aberto em seu peito – Monique Jast Lienn – Disse ele num sussurro estrangulado. Ele sorriu maliciosamente, como se eu houvesse ganhado uma batalha e não a guerra. Confesso que acabei hesitando. Então foi a última coisa que ele disse antes de cair sem vida ao solo. Não pude resistir à tentação de uma presa fácil. Aproximei-me dele e deixei meus instintos tomarem conta. Eu não iria desperdiçar um banquete. Agachei ao seu lado e delicadamente cravei minhas presas em seu pescoço. O sangue que escorria pela minha garganta parecia devolver-me a vida. Ficaria satisfeita durante um bom tempo, principalmente por causa do tipo de sangue. Quando não mais existia sangue ali, eu sabia que havia cumprido minha promessa de vingança, meu trabalho estava terminado... Pelo menos por enquanto. Fechei meus olhos e retornei.