KYUNGSOO

A vista do planetário era diferente da vista da minha janela. Claro, a altura ajudava muito quando se tratava de observar as estrelas. Mas aqui era completamente diferente de todos os lugares que eu já havia visitado. Aqui, eu sentia que conseguia enxergar o mundo inteiro com os meus dois olhos.

Aqui, eu me sentia mais perto do infinito.

Todas as sexta-feiras, logo quando anoitecia, eu tirava um tempo para fugir até este lugar. Era como o meu lugar particular, o único do qual eu poderia ser eu mesmo no mundo. Aqui os meus pensamentos pareciam me escutar e não o contrário. Então a minha mente não se cansava e eu conseguia ser eu mesmo pelo menos por algum período de horas. A verdade é que esse lugar tinha virado um refúgio para mim.

Depois da aula de hoje, tudo o que eu queria era exatamente isso: um lugar para fugir. Pois, tudo parecia querer me encontrar e me forçar a encarar a realidade que com muito gosto eu estava tentando ignorar. Eu ignorava o fato que o meu irmão havia sumido, assim como o fato de que eu deveria estudar até a exaustão para cursar medicina. Por fim, ignorava também o fato de poder estar me sentindo atraído por alguém que eu nunca poderia ter. Pois desde quando me encontrei com Byun Baekhyun na escola mais cedo, acabei não pensando em mais nada pelo resto do dia.

Aquela conversa ainda rondava na minha mente, assim como flashes da imagem dele simplesmente me encarando. Flashes do seu sorriso, do seu olhar; e até mesmo do estilo das roupas que ele vestia — tudo parecia infectar na minha mente como se eu estivesse embriagado. Byun Baekhyun havia tirado de mim a única coisa que eu ainda lutava para preservar: o meu bom senso.

Eu não era o tipo de pessoa que me apaixonava fácil. Na verdade, odiava a ideia de ter que me dedicar tanto a alguém assim enquanto eu ainda estava tentando me encontrar no mundo. Mas Baekhyun era diferente — ele era magnético. Tinha alguma coisa sobre ele que me fazia querer saber mais, mais e mais sobre o que se passava na vida dele. Sempre tinha sido assim, desde quando o vi pela primeira vez na escola. Por mais que ele sempre havia sido completamente inacessível.

Ali, enquanto estava longe da cidade e de todos os problemas que poderiam me assombrar, eu pensava sobre isso. Eu pensava sobre a possibilidade de conseguir ter um amigo tão próximo, sobre me deixar viver o que eu queria viver. Sobre ser um adolescente normal como qualquer outro, sem o peso de me sentir deslocado por ser diferente. Visualmente diferente, e com muitos quilos a mais.

Eu nunca havia contado ao Kyuhyun o quanto aquilo era difícil para mim. Por muitos anos, os garotos implicavam comigo na escola por causa disso. Eu já tinha ouvido todos os tipos de xingamentos que poderiam imaginar, desde os mais ofensivos até aqueles em que juravam ser carinhosos. Mas não dava para usar termos pejorativos como sinônimo de amor. Sabia que, no fundo, todos eles não me viam como uma pessoa qualquer.

Sempre que tentava fazer amizade com as pessoas, era mais do mesmo. Os garotos eram extremamente cruéis comigo. Por isso, acabei me distanciando das pessoas da minha idade, ficando cada dia mais recluso em meus próprios pensamentos e passando os meus finais de semana ao lado do meu irmão mais velho.

Suspirei, imaginando onde ele poderia estar. Kyuhyun fazia muita falta na minha vida, e na do meu pai também. Era ele quem trabalhava o dobro para ajudar a sustentar a família, enquanto eu me dedicava aos estudos. Era ele quem me abraçava quando eu começava a sentir que tudo iria dar errado. E era ele também quem fazia as playlists de música que eu secretamente não gostava de ouvir, mas que me esforçava por ele. Porque eu também queria que ele sentisse orgulho de mim, de alguma forma.

Olhando para as estrelas através daquele velho telescópio, eu me sentia transbordar de sentimentos. Era um brilho excruciante de se olhar, porque me fazia lembrar de todas as vezes que vim aqui com ele também. Quando coloquei tudo na picape vermelha de Kyuhyun e fugi para o planetário afastado da cidade, eu não achei que iria sentir o oposto do que eu estava procurando.

Não achei que ia me sentir tão perdido quando estava desesperadamente tentando ser encontrado.

Diversas questões começaram a ronda a minha mente, fazendo eu me perguntar sobre o que eu realmente estava esperando do Universo. A resposta era simples, mesmo que fosse um tanto dolorosa de aceitar: eu não sabia. E perceber que sou ignorante diante do meu próprio futuro me assustava mais do que eu gostaria de admitir.

Ser jovem era aceitar viver com um destino incerto. Muitas coisas podiam acontecer, e você podia se arrepender de quase todas as suas decisões. Se se arrependesse, e aí? O que poderia fazer? Voltar para trás era uma opção?

Viver todos os dias uma expectativa do que a sociedade formava sobre os jovens era em parte o que me deixava exausto.

Não era como se o mundo fosse se solidarizar com a nossa vida. Muitas vezes, ninguém nem ligava para os seus sonhos e aspirações, que acabavam sufocados pela pressão de querer agradar a todos.

Mas era assim que funcionava, certo?

Todas as expectativas do meu futuro eram partilhadas: eu precisava ajudar em casa, pois papai era velho demais para sustentar a nossa família. Eu precisava ser um bom irmão, pois Kyuhyun trabalhava demais para me dar a vida que ele não teve. Eu precisava emagrecer para que alguém como Byun Baekhyun um dia pudesse se sentir atraído por mim. Eu precisava desistir de ser um roteirista de ficção científica, pois só a medicina me daria o retorno financeiro que eu gostaria.

Eu precisava desistir de ser eu mesmo para que o mundo pudesse me aceitar.

Um peso de repente começou a fazer o meu coração acelerar. Fechei os olhos e respirei fundo, tentando em vão não sentir tanta ansiedade quanto eu sentia quando pensava sobre essas coisas. Respirei fundo, segurando o ar nos meus pulmões asmáticos, e soltei a respiração vagarosamente enquanto contava mentalmente:

1, 2, 3.

Abri os olhos, dessa vez encarando o céu apenas pelas minhas lentes. A vasta escuridão fazia a minha mente viajar pelas milhares oportunidades que eu ainda tinha pela frente. Ou daquelas da qual eu iria perder. Eu ainda não sabia direito como escolher, e esperava que antes da década acabar, isso pudesse mudar. 1989 pra mim parecia como um ano definitivo de todas as escolhas que eu deveria fazer. Porque ainda era incerto se eu teria ou não uma segunda chance caso eu falhasse.

E a vida com toda certeza não era feita de segundas chances.

Quando resolvi voltar pra casa e deixar todos os meus pensamentos para trás, liguei o toca-fitas da picape vermelha, com mais uma das playlists que Kyuhyun havia feito pra mim. A primeira música era “Jump”, um rock estrangeiro que eu lembrava ser da banda “Van Halen”. A música era animada e ajudou com que o meu humor mudasse na mesma hora. De repente eu já não estava mais pensando sobre complicações, mas apenas nas memórias do meu irmão no mesmo lugar em que eu estava, dirigindo enquanto eu dançava a música do seu lado.

Cheguei em casa logo quando a fita acabou, e percebi que as luzes ainda estavam acesas. Deveria ter passado das dez horas da noite, e reconhecer aquilo me deixou completamente culpado. Papai sempre esperava por mim quando eu saía, mesmo que o trabalho dele fosse em um período difícil é exigisse muito dele.

Saí da picape carregando a minha mochila e algumas das fitas que haviam sido deixadas no banco do carro. Eu costumava carregá-las por todos os lados como se fossem o meu próprio amuleto da sorte, nunca mais deixando pra trás nada que fosse de importância vital pra mim. Eu já havia me cansado de perder coisas importantes na minha vida, então não iria admitir perder nada mais. Isso havia acabado para mim.

Assim que entrei em casa, percebi o cheiro. Estava cheirando a temperos e molho de soja, uma das combinações favoritas de papai. Sorri enquanto passei pela sala de estar, deixando todas as minhas coisas na mesa atrás do sofá de pano marrom. A sala ainda estava do mesmo jeito, um pouco escura e abafada por ficar fechada o dia todo. Havia um pouco de louça suja na mesinha do centro, provavelmente do café da manhã que papai havia tomado. A sorte é que não tinha nenhum tipo de animal asqueroso, como as malditas baratas. Seria difícil limpar o local com a presença de uma delas. Eu odiava baratas com todo o meu ser.

Caminhei diretamente até a cozinha, já conseguindo uma boa visão do meu velho pai. Ele estava em frente ao fogão amarelo, mexendo algum tipo de pasta com os hashis. Quando me percebeu ali, cumprimentou-me com um sorriso fácil no rosto. Ele sempre tinha sorrisos fáceis para as pessoas, mas eu conseguia diferenciar aqueles que eram meus para aqueles que simplesmente significava cortesia.

Sendo bem honesto, era exatamente por conta disso que eu me motivava para fazer os sacrifícios que eu fazia. O amor que compartilhavam os era forte o suficiente para que não houvessem arrependimentos nas minhas escolhas.

Mesmo com tantas dificuldades, papai sempre estava sorrindo e dizendo o quanto ele apreciava o cuidado que eu tinha com ele. Nunca falhava em me dar presentes, nunca esquecendo um aniversário sequer. Ele sempre fora muito dedicado pela família mesmo antes quando sua mamãe ainda era viva.

Tínhamos uma família feliz, e sempre fui grato por isso. Eu só esperava, no fim, que eu pudesse não ser uma decepção para o meu velho no futuro. Eu preferia a morte do que ter que ver papai decepcionado comigo, era mais do que eu suportaria aguentar.

— Hey, garoto. Está com fome? — ele me perguntou, ainda sorrindo para mim.

Sorriu em reflexo, concordando com um aceno. O cheiro era bom demais para que eu recusasse comer, por mais que eu sempre tentava pular o jantar. Dessa vez, eu não iria conseguir. Talvez amanhã eu pudesse deixar de tomar o café da manhã para compensar.

Papai riu de mim, provavelmente percebendo o brilho no meu olhar. Ele adorava que as pessoas elogiassem a sua comida.

— Você se esforçou na escola hoje, uh? O futuro médico não pode ficar por aí bobeando assim. Ainda terá muitos plantões para fazer. — ele sorriu fraco.

Eu não soube muito bem o que sentir com o que ele disse. Talvez deveria me motivar, mas muitas vezes, apenas citar esse assunto me fazia querer gritar. Parecia que qualquer coisa sobre o futuro me assombrava. Um fantasma fora do seu próprio tempo.

— Certo, pai. — pigarrei — Eu te ajudo com o jantar.

Papai negou com um aceno, apontando para o meu uniforme. Não precisou falar para eu entender o que ele queria dizer. Eu precisava de um bom banho primeiro.

— Tire essa catinga da minha cozinha primeiro, e depois pense em tocar na minha comida.

Senti o riso crescer no meu estômago. Em certos momentos, ele parecia muito com Kyuhyun. Principalmente porque os dois tinham a mesma altura, e o mesmo senso de humor. Aquilo havia melhorado o meu humor em muitos níveis.

— Vou tomar um banho então, e já desço aqui, ok?

Seu pai apenas sorriu, concordando com um aceno.

— Vai logo garoto. Daqui a pouco você vai desmaiar o seu velho pai com esse cheiro.

Sorri para o seu exagero, antes de dar meia volta para fora da cozinha. Subi as escadas, e entrei no quarto já pensando sobre o que havia acontecido no dia.

Era um pouco surreal que, depois de tantos anos, o garoto do armário ao lado finalmente tivesse trocado mais de duas palavras comigo. Mesmo que eu duvidasse que Byun Baekhyun soubesse que de fato era meu vizinho de armário, pois ele parecia ser um tanto alheio a muitas coisas. Vai ver é isso o que ele quer: passar despercebido pelas outras pessoas da escola. Isso parece ser só o que ele é bom, ignorar os outros.

Suspirei quando olhei em volta do meu quarto. Estava tudo exatamente igual: as paredes infestadas de estrelas por todos os lados. Não de verdade, claro. Eram apenas pôsteres que eu havia achado por aí. E ainda tinha o meu tão sonhado escritório.

Sorri dessa vez, quando me aproximei da pequena mesa onde ficavam os materiais de estudos e, claro, escondidos entre a papelada da escola, os meus inúmeros roteiros e ficha de personagens de ficção científica. Muitos deles ainda faltavam coisa ou outra para ajustar, o que ficava difícil de se fazer a mão. Eu gostaria de ter uma máquina de escrever que para facilitar a minha vida, mas essa era mais uma coisa que estava longe da minha lista de prioridades.

Escrever tudo a mão era cansativo, porque as ideias simplesmente corriam pela minha mente como um maratonista. E era difícil de alcançar. Muitas vezes elas me escapavam simplesmente porque não eu dava conta de escrevê-las a tempo. Era um pouco triste.

Acabei abrindo e folheando o pequeno caderno, vendo que muitas cenas já estavam estabelecidas para um história que havia pensado em fazer um tempo atrás. Era sobre uma guerra ambientada em uma galáxia distante. Não, não era sobre Star Wars. Era diferente. Na minha história, uma galáxia específica estava vivendo na devastação pós guerra. Dois planetas haviam guerreando entre si ao ponto da devastação quase completa, e isso estava ficando cada vez mais pior. Haviam planos de vingança, e um deles era um pouco mirabolante: Experimento científico com humanos. Humanos que desenvolviam poderes que lhes eram dados por uma árvore mãe em seu planetas natal.

Então basicamente haveria uma guerra com mutantes (12 deles para ser mais específico) em que o planeta adversário teria que achar uma maneira de bloquear seus ataques sobrenaturais. Era uma história bem mista e doida, mas que de alguma maneira eu estava tentando fazer dar certo.

Sorri novamente quando escondi os papéis dentro do compartimento escondido. Ninguém precisava saber deles além de mim mesmo. Não mesmo. E se fosse pra ser sincero? Isso até que me dava uma certa motivação, mesmo que por um breve momento.

Os roteiros eram todos cheios de ideias, e até pensei em fazer alguns sketches da suposta capa desses livros, ou talvez fossem futuros quadrinhos? Eu ainda não sabia direito. Mas se eu tivesse coragem, poderia submeter esses textos no jornal da escola. Mesmo que eu duvidava que iam querer postá-lo. Era diferente, e as pessoas normalmente não gostavam de coisas diferentes. Disso, ironicamente eu já sabia muito bem.

Depois de deixar tudo arrumado, fui até o guarda-roupa escolher uma troca qualquer para ficar em casa. Eu ainda teria que fazer o dever de matemática e ajudar com o jantar, então uma roupa mais confortável teria que servir. A parte difícil, era se sentir confortável na minha própria pele. Mas esse era um assunto do qual eu estava disposto a esquecer nesse momento.

Logo após o banho, desci as escadas. Percebi que papai já estava jantando e que o meu prato estava posto na mesa no mesmo lugar de sempre. Papai sorriu pra mim quando cheguei, e acabei me sentando de frente pra ele como fazíamos todas as noites.

Jantamos em silêncio. A comida era uma espécie de vegetais cheios de molho e pimenta. Era um dos jantares mais fartos que eles haviam tido em algum tempo, desde quando havíamos entrado em crise pela falta de dinheiro. Apenas perceber isso, me deu vontade de chorar. Mas eu me recusava fazer algo assim na frente do meu pai. Ele merecia um filho melhor do que isso.

— Kyungsoo…— ele começou, logo depois que terminou de jantar.

Encarei os olhos dele, que eram tão parecidos com os meus, no mais profundo silêncio. Ele suspirou, colocando uma das mãos sob a cabeça entrado preocupação. Era palpável o quanto ele estava preocupado com alguma coisa.

— Diga pai. — respondi, já esperando pelo que ele tinha a dizer.

Ele suspirou fundo, encarando-me como se tivesse que ter cuidado ao falar.

—Você sabe que as coisas aqui… não estão das melhores. Depois que… depois… — seu pai ficou mudo.

Ainda doía falar dele. Ainda doía admitir que não sabíamos onde ele estava. Então eu apenas concordei, deixando que ele soubesse que eu já fazia uma ideia do que ele falava.

— Olha, eu acho que vamos ter que nos mudar de casa.

Não respondi nada além de concordar com o que ele estava dizendo.

— Você vai vender… a casa da mamãe? — a minha voz estava embargada.

Um caroço na minha garganta logo se formou, involuntariamente. Aquela ainda era a última conexão que tínhamos com o nosso passado feliz. Era extremamente triste ter que deixar tudo aquilo para trás. Mas teríamos que fazer isso se quiséssemos seguir em frente.

— Sim, filho. Me perdoe por isso. Eu sinto muitíssimo. — ele disse, suspirando como se o mundo inteiro pesasse em suas palavras.

Mas eu já sabia que aquele momento estava para chegar. Aconteceria cedo ou tarde, pois precisávamos de dinheiro. E bastante dinheiro. Não era um emprego qualquer que iria me manter na escola e muito menos ajudar a melhorar formar.

— Eu não culpo você — sussurrei com sinceridade — Eu só queria que pudéssemos ter uma outra escolha.

Meu pai olhou pra mim como se pudesse ver a minha alma. Pude ver todos os sentimentos refletidos nos olhos dele: culpa, pena, arrependimento e, por último, amor. Ele sorriu tristemente como se havia desistido de manter a compostura.

— Precisamos ter fé que um dia iremos ter como escolher, meu filho. — foi a única coisa que ele disse, antes de retirar o próprio prato da mesa.

Eu apenas o observei lavando a louça, pois eu não tinha certeza se em meu coração eu concordava com aquilo. Acho que a minha fé estava bem longe de ser encontrada, na altura daquele campeonato.