Quem vos redige esta declaração é ninguém menos que Guinevere, a adúltera condenada, conhecida um dia como rainha do reino de Camelot. Tens o direito de acreditar ou não, embora não haja importância pois amanhã, a esta mesma hora, já estarei morta, deixando para trás tudo que há de mundano.

Entretanto, peço ao carcereiro para trazer-me uma vela, um pergaminho raspado e uma lasca de carvão, ao que ele consente. Não me importa muito o destino que esta última carta levará, desde que eu já não esteja mais aqui quando ela for lida. Que seja entregue nas mãos do próprio Arthur. Não me importo. Apenas não quero que minhas últimas palavras sejam nada além de uma série de orações aflitas proferidas quando minha mortalha já estiver em chamas. Pretendo, nesta confissão, realizar o único feito ao qual não tive a chance até agora: justificar-me. Porque para toda ação há uma justificativa. Até para algo indigno e repugnante como uma traição.

Minha explicação se inicia nos primórdios de minha vida. Ainda lembro nitidamente de como me eram lidas maravilhosas histórias de amor. E como uma criança inteligente, como uma jovem princesa, eu logo decidi que jamais acreditaria em uma palavra daquilo. Estava claro como alimentar esse tipo de fantasia só me traria sofrimento ao longo dos anos. Uma de minhas irmãs mais velhas já havia sido desposada, e eu notei a profunda infelicidade em seu olhar desde o momento do noivado até o dia de sua partida. A não ser que minha morte antecedesse, minha vez também chegaria. Se aquele amor narrado nos livros sequer existia, certamente era um dos vários luxos que as mulheres da nobreza não podem ter.

Portanto, quando aquele rei gentil, amável e de olhos reluzentes visitou o reino de meu pai e logo anunciou que me almejava como esposa, eu não pensei, nem por um segundo, em amor. Tentei focar apenas nos meus deveres. Parecia ser uma boa união e meu pai estava feliz. E quando conheci aquele belo cavaleiro, melhor amigo do meu futuro esposo, que parecia me olhar com desejo ardente desde o primeiro dia, eu também não pensei em amor. Isso talvez soe inesperado, mas tenho a impressão de que agi por puro desespero no começo. Por mais que eu tentasse fazer o que devia, algo dentro de mim implorava por uma alternativa. Dessa forma, pouco depois de realizar os votos de matrimônio com o primeiro homem, eu estava me entregando ao segundo.

Sempre contemplei as consequências, embora nunca tenha lhes dado o devido valor. A amargura de levar aquela vida inteiramente decidida pelos outros parecia demais para mim. Então talvez eu tenha sido fraca, já que todas as outras rainhas sabem se ater às suas obrigações. Os mais românticos poderiam dizer que fui corajosa. De uma forma ou de outra, morrerei amanhã sem ter posto sequer um herdeiro no mundo. Sou um fracasso.

Minha infelicidade não era tão justificada assim, pois Arthur nunca foi um mau marido. Ele não se revelou um monstro assim que ficamos a sós. Na verdade, ele me amava incontestavelmente e tentava sempre estar atento às minhas vontades. O problema é mesmo esse: no fundo de meu coração, eu desejava qualquer coisa menos ele. E Lancelot estava sempre ali.

Inicialmente, o belo cavaleiro me cortejava com respeito e relutância. Logo percebeu como não havia barreiras e as coisas ficaram muito mais passionais. Tudo o que eu buscava era um escape, mas estaria mentindo se dissesse que não apreciava aquilo, ou que ele não me provocava sensações das quais meu marido jamais seria capaz. Deve ter sido no meio dessa lascívia que brotaram os primeiros sentimentos.

Não sei como Arthur não descobriu mais cedo. Pensar no quanto ele confiava em mim e em Lancelot aumenta ainda mais minha culpa. Nas primeiras vezes, tentávamos fugir para algum lugar afastado, mas logo perdemos o medo de nos encontrar em meus aposentos sempre que o rei estava ausente. Fomos flagrados apenas uma vez antes do incidente que nos condenou. Uma criada inocente tinha vindo me trazer qualquer coisa e nos encontrou juntos na cama. Ela quis agir como se não tivesse visto nada, mas eu não falhei em notar um brilho intencionado em seu olhar. Então a ameacei. Disse que iria acusá-la de roubo antes que ela pudesse pensar em fazer qualquer coisa, e isso a assustou efetivamente. Porém, logo o medo me dominou e a denunciei de qualquer maneira. Nunca mais soube dela e não procurei saber detalhes do que lhe aconteceu. Tenho certeza de que no futuro imediato, quando eu me encontrar em espírito diante do Pai, este pecado irá me pesar muito mais do que todo o adultério.

Quando meus atos foram expostos, me entreguei resignada ao cárcere, sem encontrar Arthur ou Lancelot antes disso. Mesmo assim, nos últimos três dias, recebi bilhetes de ambos. Primeiro de Arthur, em uma caligrafia muito mais trêmula que a usual.

Lia-se apenas: “Tu o amas?"

Eu me vi soluçando enquanto escrevia no verso daquele papel, mas ele não teria como saber, então provavelmente considerou como uma resposta fria e indiferente.

Eu não acredito em amor, Arthur. Jamais acreditei. Vais mesmo deixar que me matem?”

A mensagem final não tardou a retornar. As palavras eram duras e não discordei delas.

Tu destruiste meu reino, minha honra e minha vontade de viver, meretriz. É o mínimo que merece.”

Quando o pronunciamento de Lancelot chegou, eu quase me recusei a ler. Soube mais tarde, entreouvindo uma conversa, que ele pagou uma fortuna a um mensageiro de confiança para que me trouxesse aquilo, o que faz sentido, devido ao seu simples conteúdo:

Vou salvá-la.”

Minha resposta resumiu-se a: “Isso é patético. Deixe-me morrer com dignidade e seja grato por continuar respirando.” Como ele tinha mais intimidade comigo, imaginei que entenderia.

Enquanto o bilhete de Arthur me fez chorar, o de Lancelot quase me proporcionou risadas. No melhor dos casos, terminaríamos ambos mortos. Deve parecer estranha a forma como mal estremeço diante de uma morte horrível na fogueira, mas concordo com o que os padres dizem. Isso irá me purificar. É o melhor fim para a história de uma rainha egoísta e ingrata que descartou seus deveres e sua vida exemplar por uma opção inferior. Por uma simples aventura na qual ela tivesse as rédeas. No fim, eu não fiz isso por amor ou luxúria, mas apenas por um momento de liberdade em toda uma existência de prisão. É assim que eu gostaria de ser lembrada.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.