─ Aloah! ─ chamou a rainha da soleira da porta de seu quarto. ─ Preciso lhe falar. Venha aqui fora.

─ Sim, senhora. E quanto a princesa?

─ Deixe-a brincando com meus pertences. Não vamos nos demorar.

A criada assentiu e seguiu sua rainha.

Sophia olhou para os dois lados do corredor ─ que estava vazio ─ antes de começar.

─ Aloah, você é de minha total confiança. A ti confiaria minha vida, assim como minha família.

Aloah escutava com atenção.

─ Acabei de ouvir uma profecia de uma bruxa. Não quero que se realize. E você será a única que saberá o que a vidente revelou.

Sophia respirou fundo e prosseguiu.

─ Terei uma filha, com cabelos escuros como ébano, pele branca como a neve e lábios vermelhos como sangue, tal como desejei. Porém, pelo que pude entender, morrerei ao dar a luz, e sem mim a vida dela e de Rubra Rosa será difícil. A bruxa falou algo sobre sangue. Estou mais do que disposta a impedir que a parte ruim dessa profecia se cumpra.

─ O que planeja fazer, majestade? ─ os olhos de Aloah estavam marejados.

─ Tenho que tirar Rosa daqui. Preciso que a leve para uma torre que possuímos na cordilheira. Permaneça lá com ela até segunda ordem. Encarregarei alguns soldados de confiança do rei de acompanharem-nas para que meu marido não se preocupe.

─ Mas quem cuidará da senhora?

─ Não se preocupe comigo, amiga. Ficarei bem. Apenas prometa-me que protegerá minhas princesas até o dia de sua morte.

─ Prometo ─ e debulhou-se em lágrimas. As duas se abraçaram e choraram juntas por algum tempo. Embora negassem a si mesmas, suas intuições lhes diziam que, depois de separadas, não se veriam novamente nesta vida.

─ Por que você não pode vir com a gente? ─ questionou Rubra Rosa, choramingando. Além de Aloah, mais dois cavaleiros foram encarregados de cuidar da princesa: Frederico e Eduardo. Não haveria comitiva, pois não queriam chamar atenção para si mesmos.

Sophia abaixou-se para que seus olhos ficassem próximos a altura dos de sua filha.

─ Mamãe vai ter que ficar para cuidar de sua irmãzinha. Não tenha medo ─ acrescentou, pois a pequena estava prestes a chorar ─, vai ficar tudo bem. ─ A rainha não conseguiu conter uma lágrima que desceu por seu rosto. Puxou a filha para um abraço e sussurrou ─ Mesmo quando estiver longe, sempre estarei com você. Eu te amo, minha pequena Rosa.

─ Eu também te amo, mamãe.

A rainha sabia que devia despachá-los naquele momento, ou não conseguiria controlar o choro e suspeitariam de que havia algo errado.

─ Podem partir. Lembrem-se de que são responsáveis pela segurança e saúde da futura rainha. Deixo-a em suas mãos, que nos são tão caras.

Subiram nos cavalos, e Rubra Rosa dividiu sua sela com Aloah. Com o coração apertado, Sophia observou o êxodo do grupo até sumirem de suas vistas.

Todos foram instruídos da seguinte maneira: pegariam um atalho pela floresta, de modo que não fossem vistos, e usariam roupas simples, para não chamar atenção.

Ao chegar numa clareira, o grupo parou para almoçar. Havia faisão assado, vegetais, bolos, sucos e vinho. A ama raramente tinha oportunidade de provar finas iguarias, e precisou se vigiar para não exceder-se, ao contrário dos soldados do rei, que pareciam não se importar se alguém observava seus maus modos.

Depois de satisfeitos, Eduardo e Frederico afastaram-se ligeiramente para uma conversa privada. Aloah limpava os restos da refeição, enquanto a princesa foi colher algumas flores que estavam por ali.

Aquelas espécies, que Rubra Rosa não sabia nomear, cresciam para fora da clareira. Ela estava fascinada com a beleza das plantas e, com inocência e falta de prudência que são próprias das crianças, afastou-se de seus guardiões, sendo imediatamente acolhida pelas escuras sombras da floresta.

Aconteceu de Rosa se afastar o suficiente para que se perdesse ─ não importava para que lado olhasse, as árvores eram sempre iguais. Perdida, ficou medo e, sentando-se em meio às raízes, chorou.

Desafortunadamente, seus soluços chamaram a atenção de um lobo que vagava solitário. O animal aproximou-se cautelosamente, para não afugentar sua pequena presa. Seus ouvidos apurados detectaram aproximação, mas seu olfato lhe dizia que não era competição. Despreocupado, preparou-se, e deu o bote.

Rubra Rosa viu o lobo com seus dentes mortais expostos, mas não conseguia reagir, paralisada de medo como estava. Uma presa fácil. Morte certa.

No meio do salto uma flecha atravessou seu flanco do predador, derrubando-o. Outra flecha foi disparada, acertando o coração, e uma última, na cabeça. O lobo ganiu e agonizou, sangrando até morrer.

O salvador, Eduardo, aproximou-se da fera com espada em riste. Como o animal não deu sinais de vida nem outros de seu bando apareceu, ele foi ter com a princesa.

─ Vossa Alteza está bem?

O cavaleiro não tinha o menor jeito com crianças, e ficou ligeiramente desnorteado quando a pequena começou a chorar mais do que antes. A experiência de perigo e morte havia sido demais para seus cinco anos.

Respirando fundo, Eduardo pegou a menina nos braços e levou-a de volta à clareira. Ao ver Aloah, a ruivinha estendeu braços para a ama, que tomou-a nos braços, embalando-a.

─ Você é a criada mais irresponsável que já conheci ─ ralhou Eduardo.

─ O que quer dizer?

─ Quero dizer que, se não fosse minha incrível pontaria, a primogênita do rei teria virado comida de lobo.

Aloah ficou abismada.

─ Não é culpa minha.

─ E de quem mais seria? ─ intrometeu-se Frederico. ─ Você é responsável pela segurança da princesa.

─ Não sou. Vocês são os guerreiros, é trabalho de vocês proteger a família real. Não pude prestar atenção na princesa porque tive que limpar sozinha a porquice que vocês dois fizeram!

Mal terminou de falar, quando a mão de Eduardo atingiu seu rosto. Ele pegou magro braço de Aloah e apertou.

─ Vigie sua boca ─ sua voz era baixa, mas seu tom era ameaçador. ─ Veja com quem está falando. Não vou admitir que mulher alguma me falte com respeito. Entendeu?

Silêncio.

─ Você entendeu? ─ Aloah continuou em silêncio, assustada. Furioso por não obter uma resposta, Eduardo a sacudiu violentamente. ─ Responda!

─ Sim ─ disse a ama, em um guincho.

─ Sim o quê? ─ seu punho a apertou ainda mais.

─ Eu entendi.

─ Ótimo ─, e largou-a. ─ Considere-se com sorte. Não serei tão bonzinho da próxima vez.

Frederico, que observava ao longe, sustentava um sorriso divertido nos lábios. Eduardo afastou-se até seu cavalo. Rubra Rosa chorava mais do que nunca.
Se não fosse por sua senhora, Aloah fugiria com a criança para longe daqueles crápulas assim que surgisse uma oportunidade, mas a criada sabia que não podia simplesmente levar a princesa. Seria procurada e condenada a morte pelo sequestro de um membro da família real. Mas ela daria um jeito de manter a menina a salvo.

─ Você fez o quê com a minha filha?! ─ esbravejou o rei.

─ Eu enviei nossa filha para um retiro na torre da cordilheira ─ retrucou a rainha.

─ E com qual autoridade?

Sophia, que estava sentada ao pé da cama, ergueu-se para encarar um raivoso Serafim.

─ Com a autoridade que eu tenho como rainha. Você não estava por perto, uma decisão precisava ser tomada.

O rei Serafim respirou fundo, e perguntou, mais calmo:

─ E por que nossa filha precisava fugir com criados do palácio?

─ Uma bruxa foi capturada hoje, mais cedo. Você tinha acabado de sair para caçar, e ela pediu para me ver. Atendi ao pedido, tivemos uma conversa esquisita e ela disse palavras ameaçadoras. Falou sobre nossas filhas e sangue e guerra. Meu coração disse-me que algo havia de errado. Assim, coloquei Aloah a par da situação e lhe passei a tarefa de cuidar de Rubra Rosa, assim como as dos guerreiros de sua confiança que foram com elas: Frederico e Eduardo.

A preocupação dominou Serafim. Só a menção da palavra bruxa alterava seu estado de espírito.

─ A bruxa te fez algo de ruim? ─ ele tocava os braços e rosto de sua esposa, procurando por marcas. ─ Ela machucou você?

─ Não, não ─ Sophia acalmou-o. ─ Ela só fez ameaças e mandei que a queimassem.

─ E o que tem isso a ver com o retiro de Rubra Rosa?

A rainha comprimiu os lábios, apreensiva.

─ Pelo que pude entender, nossas filhas tentariam matar uma a outra pelo trono. Achei que seria mais seguro se ficassem separadas por algum tempo.

O rei refletiu por alguns instantes.

─ Não podemos acreditar em tal coisa ─ disse, por fim. ─ Aquela mulher tinha um pacto com o diabo.

─ É só uma precaução.

E, por algum motivo, a rainha não contou que a bruxa disse que ela poderia morrer durante o parto de sua caçula.

─ Quanto tempo planeja que ela permaneça na torre?

─ Não mais que o necessário... Uns cinco anos, talvez.

─ Sophia, isso é muito tempo.

A rainha tomou o rosto do rei entre suas mãos.

─ Podemos visitá-la e mandar mais pessoas de confiança para guardá-la ─ ela tentou consolá-lo. ─ Vamos ter outra filha, e cinco anos podem passar mais rápido do que você pensa.

─ Tudo bem ─ cedeu Serafim. ─ Qualquer coisa pela segurança de minhas filhas.

E torceu para que o tempo estivesse a seu favor.

A caravana alcançou seu destino ao crepúsculo. A grande torre era gasta por fora, porém luxuosa e confortável por dentro, cumprindo seu papel de esconder e servir a realeza.

O quarto designado para Rubra Rosa ficava no alto da construção. No andar seguinte, havia o dormitório de Aloah, ao lado das acomodações de Frederico e Eduardo.

Rubra Rosa estava exausta, depois de ter enfrentado emoções tão fortes e acima de sua compreensão infantil, de modo que, assim que seus pertences foram acomodados por sua aia, atirou-se na cama quente e confortável. Aloah cobriu-a e deu-lhe um beijo de boa noite.

─ Dorme comigo hoje? ─ pediu a princesinha, sonolenta.

Aloah sorriu diante da doçura da criança.

─ Claro que sim, princesa ─ e deitou-se a seu lado.

─ Quando a mamãe e o papai vão vir me buscar? ─ seus olhos verdes estavam marejados.

O coração da ama apertou-se dentro do peito. Rosa estava num lugar estranho, sendo ela a única pessoa que lhe era familiar, estava longe de seus pais, muito provavelmente não tornaria a ver sua mãe. Além de todas as coisas horríveis pelas quais ela passara ─ o ataque de um animal feroz, presenciando morte e violência física... Estava esgotada, em seu corpo e coração, e só queria voltar ao seu lar.

─ Assim que for possível, princesa ─ respondeu-lhe.

A princesa franziu o cenho real.

─ E quando o possível vai?

Aloah riu.

─ Quando Deus quiser, alteza.

─ E quando Deus vai querer?

─ Por que não perguntamos a ele agora mesmo?

Ambas juntaram suas mãos, e Rosa rezou.

─ Papai do céu...

A porta abriu-se com violência. Eduardo estava parado na soleira, com os punhos fechados. As duas ficaram imóveis, assustadas.

O guarda aproximou-se da cama com passos pesados e pegou Aloah pelo braço.

─ Solte-me!

─ Cale-se, criada! ─ seu hálito denunciava embriaguez. ─ Vai vir comigo e fazer o que lhe mandar!

─ Já cumpri com todas as minhas tarefas ─ disse, tentado livrar-se do aperto.

─ Quero outro tipo de serviço.

Aloah assustou-se ao compreender as intenções dele.

─ Nunca!

─ Pense na menina, Aloah. Você não quer que eu a use para satisfazer minhas necessidades de homem, quer?

Ela olhou para a criança, cujos olhos verdes se arregalavam de medo. A criada baixou os olhos.

─ Não.

─ Então venha. Agora!

─ Não se preocupe, princesa. Está tudo bem ─ Aloah tentou tranquiliza-la, enquanto era arrastada para fora. ─ Pode dormir, daqui a pouco estarei de volta ─ a porta fechou-se com força após sua passagem.

─ Por que está fazendo isso? ─ perguntou Aloah, quando Eduardo a fez entrar no quarto.

─ Não é óbvio? ─ ele acariciou o rosto dela com as costas da mão. ─ Um homem precisa satisfazer suas necessidades. Fui designado para essa missão maluca, e não ganharei nada por isso. Estou longe da minha vida, e esse lugar é monótono. Minhas servas costumavam realizar a prazerosa tarefa de deitar-se ao meu lado, e elas não estão aqui. Mas você está ─ Aloah não conseguia se mover, apenas tremer. ─ Não estou me queixando. Você pode ser um pouco malcriada, porém tem um belo rosto. Vejamos até onde vai sua beleza, criada.

Sem nenhum movimento prévio que o denunciasse, Eduardo pegou a gola do vestido de Aloah, rasgando-o.

─ Tenho que admitir ─ disse, coçando a barba como se refletisse ─, você não é de se jogar fora. Quantos anos tem?

─ Vinte e três.

─ Ah, não se preocupe. Temos trinta anos, nossas idades não diferem tanto assim.

─ "Nossas"? ─ perguntou, engolindo em seco.

A porta do quarto se abriu, e Frederico entrou, fechando-a em seguida.

─ Você tinha razão, amigo. Ela é ótima.

A essa altura, as lágrimas escorriam pelo rosto de Aloah.

─ Por favor ─ sussurrou.

Eduardo encostou um dedo nos lábios dela.

─ Shh! Não choramingue. Vai estragar o momento.

Frederico adiantou-se.

─ Você não quer que algo aconteça com a nossa amada princesa Rubra Rosa, quer? ─ pegou a mão trêmula da moça e beijou-a.

Aloah estava enojada. Preferia estar morta do que com aqueles brutos. Mas não tinha escolha. Ela amava o rei, a rainha e as princesas. Pela família real, faria qualquer coisa. Mesmo que para isso fosse preciso passar anos nessa insuportável condição.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.