É Canon, Poha!

Capítulo Único.


Eles estavam caminhando.

Juro, só caminhando em uma agradável noite outonal pelas tranquilas ruas de Londres, voltando para suas casas, lado a lado, após um bom jantar em um dos restaurantes favoritos de Aziraphale.

Eu juro que fiz de tudo. Coloquei um belíssimo céu estrelado, do tipo mais próximo do que passou pela mente de Van Gogh em 1889, quando ele pintou A Noite Estrelada, ou o Noite Estrelada Sobre o Ródamo, que ele pintou em 1888. Estava magnífico, uma obra digna de mim, e pelo menos Aziraphale fora capaz de pressentir a minha presença naquele céu. Ele sorriu e eu teria estapeado minha testa, se tivesse uma.

Aprecio seu amor, Aziraphale, mas não é este o plano aqui.

Coloquei o clima ameno perfeito, nem muito frio e nem muito quente, para que os dois estivessem completamente confortáveis. Estava tudo calmo, tranquilo... O cantar de passarinhos podia ser ouvido e os carros foram todos afastados com o balançar de minha mão imaginária. Pus uma pessoa, vez ou outra, mas aquelas mais afáveis, como uma adolescente de bicicleta e até mesmo um casal, romântico, risonho, adorável.

Nada.

Fiz o caminho deles ser pela praça. Belíssimos postes que eu aprecio muito, moldados na época colonial francesa, lançando uma tênue luz alaranjada que combinava perfeitamente com o luar. Lua cheia, claro. Majestosa no meu belíssimo céu. O caminho de paralelepípedos estendia-se, salpicado pelas folhas coloridas que caíam das árvores e espalhavam-se em uma disposição de perfeita desorganização, equilibrado, de retirar os sentidos, deixar qualquer pintor gaguejando e com as mãos trêmulas perante tamanha perfeição de Deus. Porque fui eu mesma quem fiz, sob medida.

Nada.

Se não o chutar de uma pedrinha por parte de Crowley, quem comentava sobre até sentir saudades do menino Warlock, o não-Anticristo.

Arregacei minhas mangas inexistentes.

Coloquei violinistas! Dois, em perfeita sintonia. Músicos tão habilidosos e dotados com o melhor do talento que eu poderia dar que deixaria até mesmo Niccolò Paganini com inveja, de se ajoelhar e proferir uma prece.

Assisti, com animação e contentamento, Aziraphale chegara a erguer a face e fechar os olhos, sorrindo muito suavemente ao apreciar a melodia que eu tão estrategicamente levei para seus ouvidos.

Crowley também assistia o anjo, com devoção transbordando pelos seus olhos amarelos, por detrás dos óculos escuros. Eu queria que ele não os usasse, sério. Aziraphale deveria ter o direito de enxergar a forma como Crowley o via, como se fosse a pedra mais rara e preciosa do mundo, a última gota d’água em um deserto eterno, a alma mais bela e admirável que poderia caminhar pela terra, ou além desta.

Ele deveria poder sentir a forma como o coração de Crowley batia, grandioso e preenchido por um amor tão devoto que até eu teria inveja, se eu fosse... Bem, se eu fosse. Crowley jamais seria capaz de entrar em uma igreja, pulando em pés queimados como em uma espécie de dança exótica, ir até o altar e ajoelhar-se por mim. Mas ele iria, em um piscar de olhos, por e para Aziraphale, caso o anjo pedisse.

Mas. Ele. Não. Dizia!

O que é, certamente, uma enorme frustração para o universo inteiro. Porque eu sou o universo inteiro.

- Esta é, realmente, uma belíssima melodia, não concordas, querido?

Querido. Eu sinto o amor pingando por cada letra e escapando pelo pronunciar das sílabas. Era como a poha de um abraço (sim, você tem escrito poha a sua vida toda errado, meu filho ou filha).

- É... Dá pro gasto – Crowley provocara, com um pequeno sorriso admirado brincando nos lábios.

Eu teria erguido uma sobrancelha e posto as mãos na cintura, caso tivesse uma sobrancelha. E mãos. E cintura. Vocês sabem que implicância nada mais é do que um dos maiores sinais de quanto uma pessoa está tentando esconder o amor que sente por outra pessoa, mas, ainda assim, quer sua atenção a todo custo.

Apelei um pouco. Coloquei algumas das criaturas mais adoráveis e fofas das quais me orgulho de ter criado para passar pelo caminho deles, casualmente, fosse subindo em árvores ou escondendo-se em um arbusto. Claro que todas as criaturas postas foram em casais.

- Aquilo ali eram... Coelhos?! - Crowley notara.

Aziraphale olhara na direção, tendo o vislumbre de um rabinho macio e peludo.

- Ah, bom... Eu não sei. Não consegui ver bem.

- Tenho quase certeza de que eram sim, é... Coelhos. No meio do centro de Londres...?

Sim, por favor, percebam a intervenção divina, meus amados.

- Você não está... Pensando em fazer nada... Nefasto, não é mesmo? - Aziraphale questionara com certa preocupação, sempre tão atento ao fato de que seu amigo era, ainda, uma cobra.

Crowley soltara uma leve risada.

- Não, meu anjo. Pode ficar tranquilo.

Meu anjo. Vocês acreditam que ele se apossou do meu anjo, que eu criei, amei e deixei ir para a terra? Ele o fez, e mesmo assim nenhum dos dois parecia notar todas as implicações daquilo.

Crowley deveria ser capaz de sentir exatamente o que Aziraphale sentia ao ser chamado de “meu anjo”. Era um sentimento de amor e pertencimento que somente eu havia o feito sentir, até então. Ele se sentia amado; preenchido. Como um abraço na forma de duas palavras informais e tão facilmente ditas sem que, de fato, perdessem o valor para o anjo caído que as pronunciava.

Ou a forma como Aziraphale amava ver o sorriso de Crowley. Sempre acabava cedendo aos argumentos e convites de Crowley porque cada vez que o via sorrir era como o amanhecer de um novo dia, o mesmo que ele sentia ao ver os nascer do sol que eu pinto com afinco. Era algo quente, terno, que o fazia transbordar em uma nova descoberta de sentimentos que, ele pensava, somente como um humano ele poderia sentir.

E tampouco ele dissera alguma coisa a respeito, de forma com que Crowley pudesse ao menos desconfiar, nem como uma mensagem do tipo “se entender, entendeu”. Porque qualquer um que desse uma rápida olhada nos dois, caminhando pelo caminho perfeito, na noite perfeita, no clima perfeito, teria notado que eles transbordavam em amor um pelo outro.

Menos, é claro, eles dois.

Por um instante eu, Deus, A Toda Poderosa da Poha Toda, pensei em desistir. Deixar para lá e eles quem passassem mais alguns milênios orbitando um na volta do outro sem jamais se darem conta do quanto seus sentimentos são correspondidos. Mas, se uma coisa Crowley e Aziraphale foram pioneiros fora em serem as primeiras duas das minhas criações que me deixaram impaciente.

Estalei os dedos que, por acaso, eu não tenho e me preparei. Hoje é o dia; é hoje ou nunca. O negócio tem que destrinchar.

Então eu soprei.

Só isso.

Um sopro de Deus.

Uma rajada de vento repentina naquela noite calma, como se ela tivesse sido soprada ao lado da mão fora do bolso de Crowley, aquela ao lado da de Aziraphale, fazendo com que a de Crowley encostasse na do anjo por um breve momento. Um roçar de peles muito suave, mas que causara tremores pelos corpos de ambos.

Eles não estavam conversando e Crowley imediatamente retornara sua mão para a posição anterior. Sentia como se o coração fosse sair pela boca (talvez eu fizesse sair mesmo, caso eles continuassem na enrolação). Muito mal disfarçadamente - não que Aziraphale estivesse prestando atenção, ocupado demais em tentar esconder o leve rubor – ele conferira se Aziraphale havia retirado a mão. Mas estava no mesmo lugar de antes. O toque não o fizera recuar. E, se Crowley tivesse sido capaz de calcular, teria percebido que, na verdade, a mão de Aziraphale estava ligeiramente mais próxima da de Crowley do que antes da rajada de vento repentina.

Crowley virara o rosto para o lado contrário do anjo. Casual, olhando para o meu belo céu estrelado conforme empurrava a própria mão para mais próxima da do anjo.

Isso!

É isso que eu quero ver, bebê!

Eu teria prendido a respiração, se tivesse uma, ao ver aquelas mãos cada vez mais próximas. Encostando uma na outra. Um leve roçar. Então encostadas. Então os dedos se entrelaçando e oh... Soltei a respiração que não tenho, resultando em um pouco mais de vento, desta vez leve e gentil. As mãos fizeram a volta e se encaixaram, com dedos intercalados e tudo.

Eu senti que Aziraphale estava prestes a abrir a boca, tremendo dos pés à cabeça como vara verde. Quase me senti tentada a intervir, mas não fiz. Rezei para mim mesma para que ele não abrisse a boca e só deixasse rolar.

Claro que funcionou. Eu atendi minha prece.

Aziraphale não dissera nada. Nem sobre a vergonha que estava fazendo seu rosto queimar em vermelho, nem sobre os calafrios que percorriam seu corpo, como se tivesse enfiado o dedo na tomada.

Crowley também não se pronunciara, em um tremendo esforço de parecer cool e relaxado para não demonstrar o quanto estava surtando por dentro ao estar de mãos dadas com o seu anjo.

No final das contas, nenhum dos dois estava prestando atenção na noite exatamente perfeita que os rodeava.

É claro.

Eles só tinham olhos um para o outro.

Já estavam quase chegando mesmo e eu assisti com deleite e expectativa conforme eles terminavam o caminho em exatos sete minutos e sete segundos. As mãos quentinhas e suadas desentrelaçando-se conforme paravam na frente da livraria.

Lavo as mãos que não tenho a partir de agora.

Mas talvez eu pudesse botar a velha vitrola de Aziraphale para funcionar com uma canção, para dar o clima. Ah, esquece. Passei os olhos pela pilha de vinis e nenhum seria do perfeito agrado dos dois. Talvez eles devessem só escutar os corações um do outro. Isto seria ótimo, se eles tivessem os ouvidos mais apurados dos que eu dei para os humanos.

Ou uma chuva.

Sim, chuva! Isso mesmo. Ótima ideia. Chuva sempre é muito romântico.

No barulho de um estalar – que poderia ser interpretado como um relâmpago - o céu estrelado dera lugar a uma repentina precipitação.

- Oh, nossa! Que inesperado!

Aziraphale acelerara ao pôr a chave na fechadura e entrar.

- Você gostaria de... - o anjo começara o convite, dando passagem para que o amigo entrasse. Não precisara nem ao menos completar a frase e Crowley já estava adentrando.

Ótimo. Perfeito. Tudo indo de acordo com o plano inefável.

Eu faço e chamo meus planos como eu quiser.

Crowley estava transtornado e eu gostei muito. Até me ajeitei melhor em meu trono que, na verdade, não é tão grande quanto as pessoas imaginam. Transtornado é bom, perdem o raciocínio lógico, cedem aos impulsos, agem por instinto e cometem atitudes impensadas...

Aziraphale também se demonstrava agitado, mas menos propício a tomar a iniciativa do próximo passo.

Crowley estava adentrando mais pela livraria enquanto Aziraphale fechava a porta. Quando o anjo terminara e virara-se Crowley estava voltando, acelerado, no timming perfeito. As mãos agitadas e suadas do anjo caído segurando com firmeza as bochechas do anjo e então... E então...

FINALMENTE!

Desculpem esse trovão com relâmpago, me empolguei um pouco demais. Acabei até assustando-os. Mal encostaram os lábios e se afastaram, atônitos. Pelo menos não foram muito longe e as mãos de Crowley não deixaram o rosto de Aziraphale. Os dois tremiam. E respiravam como se fosse algo muito difícil, como se suas vidas dependessem daquele ar que advinha do outro...

Perdoem a empolgação, mas esse momento é meu. Eu estive esperando por ele por mais de seis mil anos. Eu sei que você também está empolgado, então vamos manter a calma e apreciar cada milissegundo dele.

- Anjo... - Crowley soprara com a voz rouca, carregada por todos aqueles sentimentos inebriantes que lhe tiravam a lógica.

Aziraphale tinha as pernas bambas e estava me pedindo fielmente para que não deixasse seu corpo falhar, ele não caísse e estragasse tudo.

- Você... Quer?

Respirem, meus filhos e filhas! Respirem todos! Não surtem, mas está mesmo acontecendo!

E o meu adorável do Aziraphale não tinha ideia do que fazer com suas mãos, que tremiam como se ele estivesse tendo um ataque epilético. Levara elas para junto das mãos de Crowley em seu próprio rosto, depois para o rosto do ruivo, esfregando os polegares devagar.

Awwwn...

Eu fiz muito bem esses dois, né não?

- Sim – ele soprara em um fio de voz, balançando a cabeça para ter certeza de que não restasse dúvidas. - Por Deus, sim...!

Esta sou eu, pessoal. Créditos meus mesmos. Por isso eu amo esse anjo.

Eles se beijaram, com menos afobação e mais desejo.

FINALMENTE!

Sibilei para mim mesma ao ver que havia dito alto demais mais uma vez. Eles estavam se separando e Aziraphale virando o rosto para o lado, surpreso.

- Ouviu isso? - ele indagara, assustado.

Eu desviei os olhos que não tenho e que são onipresentes por um momento, fingindo que não era comigo, mas Aziraphale sorriu.

Ele sabia.

Esperto demais para o meu gosto.

- Anjo, foca aqui – Crowley pedira, esfregando o nariz na bochecha do anjo.

- Mas eu posso jurar que eu ouvi...

Ah, beleza, você venceu!

Limpei a garganta que não tenho e dei uma iluminada rápida na livraria escura, só como um feixe de luz mesmo, para dar uma dramatizada. As pessoas adoram quando eu faço isso.

Sim, Aziraphale, Crowley, sou eu mesma. Continuem logo com o que estavam fazendo porque eu já esperei mais de seis mil anos por isso.

Os dois sorriram um para o outro, encantados com aquela nova imensidão que se abria diante deles.

Devo admitir que, mesmo estando ausente há milhares de anos e não intervindo diretamente em nada eu gostei de fazer parte do momento deles. Tornou-o ainda maior e completou de uma forma que nem eu tinha previsto – porque não pensei muito sobre.

E conforme eles avançavam em seu amor, carinho, desejo e devoção, em plena ciência de que tinham a minha benção para o que quisessem fazer com seus sentimentos, naquela noite repentinamente fria e calculadamente perfeita... Eu peguei um balde de pipoca que não, de fato, existiu e assisti meus dois anjos favoritos se amarem.

E talvez eu tenha participado porque, você sabe, onipresente e onipotente.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.