Álcool, Shirley e rock n' roll

Sem motivos para estar sóbrio.


Tentava decifrar a dor que sentira ao ver a expressão destruída no rosto de Felipe, seu corpo sendo levado sem direito a defesa, os gritos do pai... Sentira tudo como se estivesse no lugar de seu amigo de infância. O olhar chocado daqueles a sua volta não lhe havia satisfeito como esperara. Sua própria risada soava quebrada, manchada por lágrimas que não sabia de onde vinham. Seu rosto doía, o calor em sua face pesava. O pai a encarando como se fosse um monstro... Era um monstro. Sua mãe... Os sorrisos de seus amigos não apagavam o olhar decepcionado de sua mãe. Viravam-lhe o rosto, a família de Felipe já havia corrido em direção aos rastros do filho do meio e de Ramiro, e Rafaela enfim aparecia, e não ria.

– Que foi? – Shirley perguntou com a voz falha, tentando rir.

– Vem comigo, o show acabou.

– Qual é, Rafaela? Vai querer ser minha mãe também? Você não achou engraçado? O nerdzinho foi humilhado na frente de todo mundo! – Gargalhou.

– Sim, ele foi. – Rafaela respondeu séria, puxando a amiga para longe da multidão. – Você ta maluca, Shirley?

– Olha, se é pra ficar me dando sermão, eu te demito como amiga, hein!

– Shirley! Desde que você se afastou do Felipe, eu tenho sido a sua única amiga, você não percebeu?

– Como assim única amiga, ta maluca? Tem todos aqueles lá, ó! – Shirley apontou meio afetada.

– Aham, todos aqueles que só te bajulam, mas morrem de medo de falar além do que você quer ouvir. Shirley, você quer afastar as únicas pessoas que se importam com você? Eu vi como o Felipe te olha, e eu vi também que é recíproco.

– Você pirou de vez, Rafaela, até parece que eu vou me importar com aquele perdedorzinho.

– Então por que você ta chorando?

– Eu? Chorando? Eu não estou... – Levou a mão ao rosto, sentindo o traço úmido em seu rosto.

– Você gosta dele. Você gosta dele e deve morrer de medo disso, porque você está acostumada a ter quem você quiser, então você o afasta, você o afasta com medo do que pode sentir se ele chegar mais perto, não é?

– Eu gosto do Laerte! Você é muito enxerida, Rafaela, você não tem mais nada pra fazer, não?

– Será que gosta? Shirley, me diz uma qualidade que você admira no Laerte. Em todo esse tempo de amizade, só ouvi “ele é lindo” e “a gente combina bem mais que ele e a Helena”. Você gosta mesmo dele ou é só uma rivalidade boba?

– Eu gosto dele, ok? E eu não preciso ficar me explicando pra você. O Laerte é bonito, másculo, tem classe... Não é um menino nerd perdedor e desengonçado que nem o Felipe.

– Certo... Você faça o que quiser, Shirley. Quando você tiver terminado de afastar todos os outros, não esquece que sempre pode me procurar. – Finalizou sem paciência, voltando para casa.

A loira ficou ali, parada no meio da rua, ela e o silêncio. Seus amigos provavelmente não haviam notado seu sumiço, sua família devia estar agradecida por não ter que olhar em seus olhos naquele momento, e Felipe estava em algum lugar apanhando. Laerte devia estar consolando Helena pela cena de mais cedo, ao som dos gritos de Ramiro e do filho. E ela continuava ali, parada, no meio da rua, ela e o silêncio. E a brisa, e o frio, e os bêbados cambaleantes que falhavam em encontrar seu rumo. E as pedras, e as casas ainda vazias, e o som longínquo da festa que havia continuado em sua ausência. Estava ferida, ferida pelas próprias ações, e a única pessoa que parecia haver se importado com sua dor havia sido afastada por Shirley. Estava ferida, e só, e tremendo de frio, e a ausência dos braços de Felipe em torno de seu corpo a incomodava mais do que deveria, mais do que gostaria.

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Ramiro invadiu o quarto do filho, ainda furioso, e se debruçou contra o chão, tirando as garrafas de onde estavam, uma a uma. Vasculhou por armários e atrás de qualquer porta que encontrava.

– O QUE É ISSO, FELIPE? Me enrolando debaixo do meu próprio teto, dentro da minha casa? Você não tem vergonha na cara? Você acha que eu sou palhaço? Que merda é essa, Felipe?!

– Pai, eu...

– Ah, mas você vai aprender a ter caráter! Mentir para o próprio pai assim é obra de quem não presta, é coisa de Soares e não de Fernandes! – Gritou, tirando o cinto de sua cintura e o enrolando em suas mãos. – Ah, mas você vai ver...

Chica, Helena e Clara haviam recém os alcançado em casa. O momentâneo silêncio as preocupava. Estava tudo calmo demais. Assustaram-se ao ouvir o que parecia ser um chicote e alguns gritos. Felipe e o pai irromperam pela sala, Ramiro batendo com um cinto contra o filho, a fivela arranhando as costas magras do garoto.

– Ramiro, você está maluco?! – Chica exclamou apavorada.

– Vai defender esse moleque, Chica? Ele roubou o próprio pai sob o nosso teto e você o defende? Mentiroso, ordinário, filho de uma... – Outra cortada sobre as costas do garoto.

Fivela contra seu braço, seu rosto... Quanto mais Felipe se virava para se defender, mais o seu corpo era atingido.

– PARA, PAI, PELO AMOR DE DEUS! – Clara chorava, sendo abraçada por Chica e por Helena. – Como vocês conseguem ficar mudas? É o meu irmão! É o seu filho!

– A Clara tem razão, pai, para com isso! – Helena o defendeu.

– Leninha, o Felipe fez por onde. – Laerte tentou freá-la.

– Você vai ouvir esse babaca?! – Clara acusou furiosa.

– Esse problema não é com a gente. É bom o tio Ramiro gastar as energias no Felipe, que assim sobra menos contra nós. –Laerte explicou.

– Você é um merda! Um bosta! O meu irmão tá apanhando, o seu primo, e você nem liga?!

– Laerte, vai pra casa, depois a gente se fala. – Helena pediu discreta. – Pai, chega! Você vai matar o Felipe!

– Ramiro, é o nosso filho!

– O nosso filho não mente, o nosso filho não rouba e era o exemplo da família! Esse marmanjo aqui eu não reconheço.

–Não reconhece, mas pelo menos lembra que eu existo. – Felipe observou sarcástico, aproveitando a confusão para fugir de Ramiro.

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– Posso entrar? –A voz preocupada de Chica soou por trás da porta. Tomou o silêncio como consentimento. – Como você está? – Perguntou hesitante, sentando-se ao lado do filho em sua cama.

–Eu estou ótimo, não dá pra ver, não? Me lembre de agradecer à Shirley. Pela primeira vez eu fui o centro das atenções aqui em casa. – Debochou irritado.

– Filho, isso não é verdade.

–Ah, não? Então me diz, quando foi a última vez que você lembrou que eu existo?

– Que bobagem, Felipe! Hoje mesmo a gente tava se perguntando se você não ia à festa...

– Porque a Clara queria saber. – Respondeu direto. – Mãe, fala a verdade: o que você sabe sobre mim?

– Ah, Felipe, eu sei que você é um menino muito inteligente, que quer estudar medicina, que é quieto...

– Eu perguntei o que você realmente sabe sobre mim. – Retrucou frustrado. – Tá vendo? Até a Shirley me conhece melhor que vocês! E se ela não tivesse armado aquele escândalo no meio da festa vocês sequer teriam vindo atrás de mim! – Concluiu com um nó na garganta, e o desespero de não poder desfazê-lo com o líquido que queria.

– Filho, desde quando você anda com a Shirley?

–Puta que pariu... Mãe, eu não ando com a Shirley! Caralho, vocês não enxergam um palmo a sua frente quando se trata de mim!

– Olha as palavras, Felipe!

–Pra que? Eu cansei de tentar agradar vocês, de tentar ser um bom filho! Vocês nunca percebem, mesmo! Por que eu teria que ficar sóbrio, ou cuidar da minha própria vida, se os meus pais só reconhecem a minha presença quando eu estou mal? Vocês querem me corrigir pra que eu continue sofrendo, tirar de mim a única coisa que cura essa dor na qual eu me afogo todos os dias!

–Você quer ficar igual o Viriato, Felipe, é isso que você quer?

Gritou exausto em resposta. Continuar a conversa seria como desferir socos cegos em uma parede, e preferia a parede. Pelo menos o fazia sangrar, sentir-se vivo. Observou a mãe abandonar seu quarto e lutou contra os tijolos, contra o gesso, contra a tinta, aos berros. Precisava jogar a dor que sentia contra algo, precisava sentir suas mãos arderem e ver o vermelho manchar a tinta de seu quarto. Algo que o fizesse sentir que era parte daquela casa, que não era um simples vulto que entrava, saía e não era notado. Enquanto isso, todas as atenções iam para Helena, todas as preocupações eram por Helena, por Helena e por aquele namorado que sequer se preocupara pelo cunhado. Tinha raiva de ambos, de sua família inteira. Menos de Clara, Clara era a única que estava ao seu lado, sua única amiga. Precisava agir antes que enlouquecesse, vingar-se.

Correu porta afora, decidido. O sol ainda nascia, e não havia dormido, mas tampouco conseguiria. Tinha um objetivo, um rumo, e depois fugiria, libertando-se de toda a dor, de todo o descaso. Por que demorara tanto para escutá-la?

– Shirley! – Gritou do lado de fora, jogando pequenas pedras contra a janela que sabia ser dela. – Shirley! – Sussurrou alto.

– O que você quer? – Uma voz surgiu a suas costas, surpreendendo-o.

–Eu pensei que...

– Eu não consegui dormir. Na verdade, eu nem cheguei a entrar em casa, mas isso não importa. O que você quer?

–Eu vim dizer que eu topo.

– O que? –Perguntou confusa. –Topa o que?

– Que eu topo ajudar você a separar a minha irmã do Laerte.

– Assim? Sem condições? Só por amor? – Indagou desconfiada.

– Nada. Eu vou ajudar, depois vou sumir daqui, então você faça o que quiser, não me importo.

–AAAH! – Exclamou de um salto, abraçando o corpo de Felipe.

Olhou fixamente em seus olhos, sem conseguir conter a felicidade de finalmente ter alguém ao seu lado, e de ver seu futuro longe dali e com Laerte tão próximo. Seu sorriso cortava sua face de ponta a ponta,arrancando também um sorriso de Felipe. Suas bocas subitamente se encontraram em um momento de êxtase da loira. Cansado, Felipe não resistiu, apenas se deixou levar. Estava cansado de obedecer sua moral.