Álcool, Shirley e rock n' roll
Mortos Vivos
Ainda em seu esconderijo quando o sinal tocou, puderam ver de camarote Laerte marchar pátio adentro atrás da namorada. Logo reapareceu com Helena a tiracolo, gritando inconformada.
– O que vocês tanto veem nesse cara? – Felipe questionou de braços cruzados, apoiado contra a coluna como se às coxias pertencesse.
– Você quer que eu comece pelos olhos azuis ou pelo talento musical?
– Shirley, a gente tá em Goiás, músicos de olhos azuis não faltam. Por que você não começa pela namorada dele?
– Bom, todo mundo tem defeitos. O dele é ter mau gosto pra mulher...
– Será mesmo? Porque é realmente curioso você ser apaixonada justamente pelo namorado de quem você assumidamente odeia, ainda mais quando o cara não tem atrativo nenhum.
– Ah, verdade, eu deveria ficar com você, que é lindo e tem um futuro incrível como alcoólatra desempregado.
– Não foge do assunto, Shirley, você gosta dele ou da competição? – Desafiou-a impaciente.
– E por que te interessa? Ele vai ser meu, de um jeito ou de outro, e com a sua ajuda! – Lembrou-lhe.
– Me interessa, e muito. Esse cara não te merece, aliás, ele não merece nenhuma das duas.
– Quem te viu, quem te vê, hein? Já to até merecendo ou não alguma coisa... Você se apaixona tão fácil assim?
– Isso não vem ao caso, como eu tava falando...
– Então você não nega?
– O que? Shirley, me escuta. – Desconversou. – Esse cara é um idiota e você já sofreu demais, não precisa ser masoquista também...
– Felipe, você acha que eu estaria com você se não fosse masoquista?
– Então você admite...
– Não ouse usar as minhas palavras...
– Você admite que está comigo...
– Não foi o que eu falei!
– Não... Tá certo... Se você diz... – Debochou. – Só para de glorificar esse cara que não chega aos teus pés, ok? Já basta a minha irmã.
– Isso quer dizer que você não vai mais me ajudar? Ah, vai à merda, Felipe, eu não vou atrasar a minha vida porque você resolveu ter ataque de ciúmes agora!
E, talvez, se a própria Shirley não estivesse sentindo provavelmente o mesmo que ele sentia, já teria posto seu plano em ação há muito tempo... Ignorou a conclusão. Precisava sair daquela cidade, e com Laerte, quer Felipe quisesse ou não. Partiu em direção ao aglomerado que se formara em volta do tumultuado casal. Ignorou o olhar impaciente de Felipe, cansado de vê-la cometer o mesmo erro.
– Ei, perdedor! – Clara chamou.
Felipe se virou em direção à voz. A irmã recém o alcançara à sombra da coluna do prédio. Recostou-se contra o concreto, espelhando a pose do irmão.
– Você não se toca, mesmo, né? Ainda atrás da Shirley? – Cobrou preocupada.
– E você ainda não está cuidando da própria vida porque...
– Porque você é o meu irmão e me diz respeito. Qual é, Felipe, eu pensei que você fosse o inteligente da família.
– Eu não sou nada da família. O palhaço, talvez. Por que não honrar o título?
– Felipe... – Murmurou. – Tá bom, você é bastante atrapalhado às vezes, mas se você parasse um pouco de beber talvez já fizesse uma grande diferença!
– Ótima ideia, maninha, realmente, não sei nem como não pensei nisso antes... É exatamente o que eu preciso no momento: ficar bem sóbrio pra poder ouvir detalhe por detalhe de todas as coisas lindas que o seu Ramiro tem a dizer sobre mim. O silêncio patético do que a dona Chica não tem a falar sobre mim... E Helena, Helena, Helena... Realmente, eu devia ficar sóbrio por mais tempo. – Riu secamente.
– E o que eu tenho a dizer? Não conta? – Perguntou fazendo beiço.
– Às vezes eu acho que você é a única que conta...
– Acho bom, sem Shirley no meio.
– A Shirley... É diferente com ela.
– Claro, ela você come, eu sou sua adorável irmã favorita. Homens... Não importa o nível, se estiver dando pra vocês, vocês gostam.
Felipe a observou em silêncio. Saberia de algo? Procurou sinais que apontassem que Clara sabia mais do que devia, que não estivesse meramente supondo, falando por falar. Nada.
– O que você sabe? – Testou-a.
– O suficiente. Que ela está te usando pra alguma coisa.
Felipe sorriu, irônico.
– Por que só ela?
Afastou-se ainda com a face contorcida em um estranho sorriso. Passou pela multidão e puxou a loira pelo braço, conduzindo-a até que virassem duas esquinas.
– Você nunca vai conseguir afastar os dois de vez se ficar provocando a cada briga deles. – Manifestou-se ao pará-la contra a fachada de uma casa. – Você pensa que está por cima e acaba apenas jogando lenha na fogueira, fazendo com que eles se desejem ainda mais. Se você quer mesmo separar a minha irmã do Laerte, uma simples provocaçãozinha não vai adiantar nada.
– Ok, desde quando você ficou tão perspicaz e focado? Sabia que te deixa até um pouco sexy? Claro, os óculos atrapalham um pouco. – Tirou a armação do rosto do garoto, lentamente. – Pronto! Agora sim tá convincente.
Felipe segurou seus punhos no ar, a meio caminho de volta de sua face. Abaixou-os até a cintura de Shirley, cujas curvas suas mãos logo encontraram. O uniforme do colégio devia ser ilegal. Apenas um idiota como ele poderia prestar atenção nos estudos na presença de tão impróprias saias. Ou seria apenas o corpo perfeitamente delineado de Shirley?
– E então? – Provocou-o.
– É... Então o que?
– Por que a súbita vontade de separar de vez os dois? Foi a briga nova? Você é tão previsível... Ou talvez... Talvez você esteja começando a ficar com ciúme...
– De você? Conta outra, Shirley, se eu fosse ter ciúme de você teria que brigar com a cidade inteira.
– O que?!
– Você ouviu.
Foi calado pelo estampido de um tapa contra seu rosto. Talvez tivesse merecido... E era tão bom sentir a pele suave de Shirley tentando ser bruta contra seus hematomas... Podia senti-la o dia inteiro, a tortura perfeita. Precisava sentir. Precisava sentir dor, raiva, desejo... As estranhas reviravoltas que seu estômago dava sempre que a loira se aproximava, e que o faziam rir como uma criança. Rir de alegria e da própria desgraça, tudo ao mesmo tempo, era isso que Shirley lhe causava. Se tê-la afastada fizesse a avalanche de sentimentos desaparecer... Sentia-se vivo, e queria tudo menos isso. Era tão mais fácil lidar com o mundo à sua volta quando estava morto... Já havia se acostumado a ignorar tudo que se passava a sua volta, e Shirley reativava todos seus sentidos. Era como uma droga, e precisava usá-la, cheirá-la, injetá-la, até que dela se afastasse bruscamente como um narcótico algemado contra a última dose. Tão logo a ajudasse com Laerte, estaria livre. Até lá, queria ser seu escravo, abusá-la, culpá-la por seus problemas já há tantos anos sem solução. Ria porque doía, doía porque ria, e nada mais fazia sentido perto dela. Shirley lhe devolvia a sensação de poder, de poder ser quem quisesse, quando quisesse, como quisesse. De ser mais que um vulto. Despertava-o de seu estado sonolento ao mesmo tempo em que preparava o punhal para derrubá-lo outra vez. Para uma alma solitária, divertia-se até demais, gargalhava, sorria e sentia até demais. Provocava-a e sentia que alguém o compreendia... até demais. No fim do dia, no entanto, era apenas uma alma abandonada, esquecida naquela casa de Helenas e de Laertes, de filhos e sobrinhos imperfeitos. Por que só ele tinha que ser perfeito? De suas irmãs e de seu primo, nada era cobrado. Helena podia se meter em confusões como a do pátio diariamente e nada acontecia. O irmão era acusado de beber e levava uma surra.
– Se eu te ajudar, você deixa de me atormentar. – Acusou-a ferozmente em um sussurro, pressionando-a contra a parede.
O olhar desesperado de Felipe a manteve calada. Sentia sua respiração inconstante como um baixo das músicas que o garoto tanto escutava. Enfim entendia o apelo daquelas melodias, os batimentos de Felipe contra seu peito eram hipnotizantes. Sentia-se sem chão entre os braços semi delineados e a fria fachada de uma casa qualquer. O que estava fazendo? Por que não estava feliz em torturar Felipe? Sentia que cada rasgo na pele do garoto era seu, e que a pele coberta por hematomas desse estranho que a segurava eram o retrato da alma de ambos. Por que fazia isso?
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