“Depois de tanto tempo, eu quase esqueci seu rosto.”

Aquelas palavras fizeram meu interior revirar-se. Eu havia mudado tanto assim? Se fosse verdade, talvez os olhares de desdém que eu havia recebido mais cedo significavam que o meu antigo eu havia conseguido finalmente se misturar à multidão, a ponto dos moradores de Belobog me enxergarem agora como um forasteiro qualquer.

Eu sabia que esses pensamentos voltariam para me perturbar mais tarde, mas, naquele momento, me esforcei para deixá-los de lado. Voltei minha atenção para Gepard e o encarei em silêncio até que o vento gelado me forçou a piscar algumas vezes para remover a neve que insistentemente se acumulava em meu rosto.

“Eu pensei que os guardas tivessem uma memória melhor, Capitão.”

“Eu disse quase, não é como se eu tivesse esquecido completamente.”

“Se você diz.”

Abri espaço para que um pequeno grupo de pessoas passasse por onde estávamos. Enquanto isso, deixei a pilha de livros que estava comigo apoiada sobre o parapeito de uma janela. Esfreguei as mãos para aquecê-las e quando o grupo finalmente passou por nós, atravessando a esquina, voltei a falar.

“Na verdade, você quase me confundiu com outra pessoa.”

Gepard cruzou os braços, incapaz de pensar em uma resposta para contra-argumentar. Os olhos dele se estreitaram por um momento, como se ele estivesse preso em algum pensamento sobre a situação. Quando a expressão do loiro finalmente voltou ao normal, ele também voltou a falar comigo.

“A princípio, sim. Entretanto, olhando de perto, é fácil perceber a diferença entre vocês dois.”

Um ponto de interrogação desenhou-se no meu rosto. Gepard costumava ser direto, mas parecia ter escolhido propositalmente uma forma de fugir do assunto sem precisar explicar sua confusão. Ao notar o meu silêncio, ele limpou a garganta e prosseguiu.

“Olhos verdes.”

Eu pisquei duas vezes, tentando entender do que ele estava falando. Com o polegar, apontei para mim mesmo e ele acenou, concordando.

“Olhos verdes não são comuns em Belobog. Eu reconheceria os seus em qualquer lugar.”

Desviei o olhar para longe dele imediatamente, sem saber como respondê-lo. Em contraste com o branco pálido que cobria cada construção ao nosso redor como um manto polar, o rubor que se espalhava pelas minhas bochechas parecia se destacar dez vezes mais do que deveria.

“Para a minha sorte, eles não mudaram em nada. Você, por outro lado…”

Passei os dedos pelo cabelo e tentei me recompor. Eu estava ciente do que ele me dizia, e talvez as íris verdes fossem a única ligação entre o eu de agora e quem eu costumava ser. Meu corpo e meu rosto, ao contrário, estavam completamente diferentes do forasteiro magricela de antigamente.

“Se eu ainda fosse daquele jeito, não sobreviveria um dia fora das muralhas.” Comentei, minha voz esmorecendo no fim da frase quase como se eu precisasse justificar a mudança que acontecera comigo. Gepard concordou, com um aceno rápido. Percebendo o movimento, o loiro rapidamente tentou se corrigir, arrancando uma risada de nós dois.

“Você poderia se passar por um dos meus soldados facilmente.”

“E é por isso que eu pretendo dar o fora daqui o mais rápido possível.” Disparei. “Meu maior pesadelo é ficar preso em Belobog para o resto da vida.”

“Tsc… Algumas coisas nunca mudam.”

A voz de Gepard soou como a dos antigos professores que costumavam nos repreender todas as vezes que algo não saía como planejado. Ele provavelmente percebeu a reação estampada no meu rosto, a julgar pela maneira como continuou o assunto.

“Quantas vezes você ficou de castigo por escalar as muralhas e tentar escapar da cidade sem permissão?”

Cruzei os braços instintivamente, tentando evitar o olhar de reprovação que ele me direcionava. Enquanto Gepard tentava lembrar de algumas das ocorrências, eu resmunguei para mim mesmo. “Trinta e quatro.”

“Como é?” Ele perguntou, sem entender minhas palavras.

“Foram trinta e quatro ocorrências.” Eu quase balbuciei, envergonhado em admitir.

Gepard deixou escapar da garganta uma risada abafada, que se transformou em uma gargalhada. Apesar do meu rosto ter ficado vermelho instantaneamente, eu acabei rindo junto com ele.

“Você realmente é diferente dos outros, sabia?”

“Meu azar foi você não ter sido o capitão naquela época… Teria facilitado bastante o meu trabalho para escapar da cidade.”

“Ah, tem certeza? Você acha que escaparia tão facilmente sob minha vigilância?”

Sob? Para me vigiar, você precisaria olhar para o alto.” Tentei abafar uma risada, mas meus lábios já estavam com os cantos torcidos em um risinho de provocação.

Ao ouvir as palavras, Gepard não conseguiu esconder sua indignação em ser lembrado que era um dos menores alunos da turma. Porém, o capitão da guarda se recuperou rapidamente e exibiu um sorriso confiante.

“Para a minha sorte, hoje os papéis estão invertidos.”

Tentei responder, mas tudo que eu precisava fazer era olhar para ele e para mim e ficaria claro que eu perderia em qualquer categoria, da altura ao porte físico. Bufei e comecei a recolher os livros apoiados no parapeito da janela antes que a neve se acumulasse sobre eles. Percebendo que não haveria resposta da minha parte, Gepard sorriu, sentindo-se vitorioso.

“Mesmo com toda a pressão que colocavam em você na época, eu te achava legal.”

A risada suave no rosto dele se transformou em um pequeno sorriso. Apesar do loiro ainda se portar com a firmeza de um soldado, ele se deu conta de que aquelas palavras haviam encontrado uma brecha em sua postura.

“Se importa se eu fizer uma pergunta?”

Tanto a formalidade quanto o ar de curiosidade nos olhos azuis do loiro me surpreenderam.

“Diz aí.”

“O que te fez pensar que eu era legal naquela época?”

Notando o interesse genuíno dele, me impedi de fazer qualquer deboche ou provocação. Puxei o ar gelado que nos cercava para dentro dos pulmões e tentei falar, mas as palavras simplesmente não vieram. Quando percebeu, Gepard começou a andar lentamente, fazendo um sinal com a cabeça para que eu o acompanhasse.

“Eu, hm…” Ao perceber que as vozes das pessoas ao fundo desapareceram por completo, finalmente encontrei uma maneira de ordenar as palavras na minha cabeça. “Você sempre se manteve leal ao que acreditava ser certo e nunca intimidou ninguém na Academia.” E a última parte obviamente colocava a minha própria experiência na época em perspectiva.

Parei de andar por um momento, concentrado em afastar lembranças indesejadas da minha memória antes de prosseguirmos. Caminhar ao lado de Gepard me fez perceber, para minha surpresa, que outro detalhe parecia ter sido suprimido da minha memória sensorial. Parecia que ele também havia notado minha reação, pois os olhos do loiro seguiram meus movimentos por um instante, esperando meu próximo passo.

“Você tinha cheiro de chuva e neve. Na real, ninguém com um cheiro assim consegue ser uma pessoa ruim.”

Ele permaneceu em silêncio diante das palavras até que, ao tentar falar, a mudança de tom na voz dele entregou a curiosidade aparente pelo assunto da conversa.

“Foi mal, sei que isso soa estranho vindo de mim.”

“Tudo bem, não se preocupe. É só que…” A voz de Gepard permaneceu tranquila, embora ele tenha parado de andar e parecia esperar que eu fizesse o mesmo.

“Eu ainda tenho esse cheiro de chuva e neve?”

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.