– Tem certeza de que ficará bem?

– Sim, mamãe, certeza absoluta! – Revirei meus olhos para a persistência de minha mãe. Já deveria ser a quarta ou quinta vez que lhe dizia que não haviam motivos para ficar tão preocupada. Terminei de ajudá-la a colocar o casaco sobre os ombros e dei um beijo em sua bochecha e logo em seguida na de meu pai que estava colocando as malas na entrada do apartamento.

Depois da ligação de Poniko na noite passada avisei a meus pais que voltaria a escola. Eles, claro, ficaram surpresos e preocupadíssimos, mas expliquei a eles toda a situação e de que haveriam pessoas lá para me ajudar. Tudo bem, eu posso ter mentido sobre a parte de que "pessoas" estarão me esperando. Por que na realidade é apenas Poniko-san, mas eu precisava convence-los a voltar. Depois de tudo o que aconteceu, eu não podia mais me esconder. Havia alguém estendendo a mão para ajudar a me levantar, e mesmo que seja um pouco duro, e mesmo que este peso no estômago não vá embora toda vez que penso sobre ele, eu tenho que fazer isso, Por mim mesma, e por Poniko.

Eu não queria voltar, eu precisava voltar.

– Sabe que não precisa fazer isso, não é? – Falou meu pai, retribuindo o beijo que lhe dei com um no topo de minha cabeça – Não force-se a nada que sinta não estar pronta para fazer.

Eu segurei sua mão que passava por meus cabelos - ainda soltos pela manhã - e olhei eu seus olhos. Por um momento senti a lembrança de Masada Sensei comigo naquele instante, com seus dedos esguios afundando e entrelaçando-se em meus fios escuros. Fechei meus olhos e deixei-me embriagar-me naquela sensação momentânea. Mas não durou muito, logo afastei e enterrei esses sentimentos tão dolorosos mais uma vez, antes que fossem capazes de fazer com que eu me arrependesse da decisão que fiz. Voltei a olhar para as lentes retangulares de meu pai, e encontrei um olhar preocupado a espera de uma resposta. Minha resposta.

– A-Ah não, não! Eu estou pronta sim pai. Não precisa se preocupar – Ele me olhou fixamente por alguns segundos, procurando por qualquer sinal que mostrasse que eu não estivesse dizendo a verdade. Confesso que até em mesma venho procurando por sinais de honestidade e meus olhos recentemente. Tentando convencer a mim mesma de que não estava com medo, que não importava mais, que eu não iria sofrer por isso por nem mais um segundo. Devo ter feito um bom trabalho enganando a mim mesma, pois meu pai parece ter se convencido depois de longos minutos de analise. Gostaria de ter aprendido a mentir dessa forma antes, quem sabe assim poderia tentar me convencer de que tudo isso não foi real. Mas a realidade é outra.

Depois de minha mãe encher-me de beijos e ficar me dizendo para ter cuidado ao atravessar a rua e para não tropeçar em buracos ou para ter cuidado com gatos raivosos ela finalmente me largou e foi embora, queria segurar seu pulso, implorar para que ficasse, mas impedi a mim mesma, não posso mais depender dela ou de ninguém, está na hora de seguir em frente. Voltei ao meu quarto, coloquei minhas meias e fiz as duas tranças em meu cabelo. Era estranho olhar a mim mesma no espelho daquela forma, parecendo tão... normal.

Olhei para o relógio e com um pulo corri para a entrada, quase esquecendo minha bolsa em cima da mesa ao perceber o quão atrasada estava. Tranquei a porta do apartamento e dei o primeiro passo de volta a minha vida, o primeiro passo em direção a um novo começo.

[...]

Depois de correr pra caramba finalmente consegui chegar a rua do colégio com tempo de sobra. Comecei a subi-la olhando para os lados constantemente tentando avistar entre os outros alunos algum sinal de Poniko.

Que estranho. Normalmente nos encontramos nesse ponto da colina. Será que aconteceu alguma coisa com ela? Pode ser que só esteja atrasada, deve ser só isso.

As pessoas do colégio ficavam me encarando sem parar, estava começando a ficar irritante. Eles nem sequer tinham a decência de disfarçar que estavam sussurrando sobre mim, apontavam e tudo o mais. Me pergunto o quão rápido a notícia de que eu estava naquele acidente infeliz se espalhou.

Parei subitamente no meio da calçada. Os pensamentos daquele dia vieram à tona em minha mente. Entrei em um dos pequenos becos a direita e escorei-me na parede e levei a mão a boca para segurar a vontade de vomitar.

Todo aquele sangue, os gemidos de dor, as luzes fracas de emergência piscando sem parar e seu rosto gélido em minhas mãos, sua voz trêmula quase sem força, o brilho de seus olhos se apagando lentamente.

Estava quase ajoelhando ali mesmo e chorando como um bebê quando ouvi sons de passos se aproximando. Olhei para a outra extremidade do beco e vi uma figura pequena e de franja comprida se aproximar. Era a garota daquele inverno.

Mesmo não sendo mais inverno ela usava o mesmo gorro e cachecol marrons do dia em que a vi pela primeira vez, me pergunto se ela alguma vez os tira. Ela parou no meio do beco e ficou lá sem fitando o chão, sem mover um músculo.

Seus olhos estavam tapados pela sua grande franja, seus lábios estavam escondidos pelo cachecol e suas pequenas mãos estavam segurando a barra de sua saia tão forte, que pude ver que os nós das mãos estavam brancos. Ela parecia bem nervosa, dei alguns passos em sua direção e ela deu um pulo parecendo assustada, mas mesmo assim não se moveu.

Depois de alguns segundos tentando decidir-me se continuaria a me aproximar dela ou se daria meia volta e continuaria meu caminho, decidi ao menos tentar falar com ela. Parece que ela tem algo importante a me dizer.

– O-Olá... - Tentei começar falando enquanto me aproximava um pouco hesitante dela - N-Não sei se lembra de mim, m-meu nome é...

– Precisa ficar longe dela! – Fui abruptamente interrompida pela garota de cachecol – Você precisa ficar longe dela, Madotsuki-san!

– C-Como é que sabe o meu...

– Eu a vi agora a pouco e ela não parece nada feliz, nada feliz mesmo! - Ela me cortou novamente. Ela falava de forma afobada e não tirava de jeito nenhum os olhos do chão - Eu nunca a vi assim antes, ela está com muita raiva. É perigosa! Por favor, Madotsuki-san, mantenha distância dela, ou eu temo pelo que pode vir a lhe acontecer.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ela se virou e correu para os becos atrás dela. Tentei segui-la e perguntar o que fora tudo aquilo, mas ela desapareceu como fumaça.

Ouvi meu relógio apitar. Essa não, o sinal já está para tocar, logo os portões vão se fechar. Comecei a correr novamente esperando conseguir chegar a tempo.

O que diabos foi isso tudo? Ela estava falando coisas sem sentido sobre Poniko novamente? Não tem como nada do que ela diz ser verdade, a própria Poniko me fez voltar, pois estava preocupada comigo. Não é?

[...]

Consegui chegar ao colégio alguns poucos minutos antes dos portões se fecharem, acho que não consigo mais correr por hoje, ou vou ter uma parada cardíaca.

Olhei em volta do pátio para ver se encontrava Poniko em algum lugar, mas nada. Depois de entrar no prédio e ignorar outras dezenas de olhares curiosos sobre mim, passei em sua sala, mas ela também não estava lá. Isso é estranho, eu esperava poder vê-la um pouco e agradece-la por ter me trazido de volta, mas parece que não tenho mais tempo para procura-la, minha aula está pra começar.

Voltei para minha sala e sentei em minha carteira. Passei os dedos pela superfície da mesa, nas últimas semanas cheguei a pensar que nunca sentiria o cheiro familiar dos cadernos e livros novamente.

as aulas foram chatas e eu um dos professores *gritou comigo por não estar prestando atenção no que dizia e por estar desenhando em meu caderno ao invés de fazer "anotações realmente úteis que me ajudarão a passar nos exames", segundo ele.

Mas eu não podia evitar, toda a vez que começava escrever logo me vinha na memória os poemas de Masada Sensei, então suas músicas, sua voz, seu calor e todo o resto. Quando dava por mim já estava desenhando sobre nós dois, seu piano, seus livros, o apartamento... nosso bebê.

Afastei essas memórias de meus pensamentos, e voltei a realidade. Foi quando percebi que já estava na hora do intervalo. Depois de todas essas memórias eu perdi a fome, então apenas saí da sala em dirigi ao terraço, deixando meu obento¹ para trás.

[...]

Meus dedos estavam começando a doer um pouco por ficar entre os buracos da cerca do terraço. O vento fazia com que minhas tranças balançassem batendo de leve contra minhas costas. Meu olhar se perdia além da paisagem dos prédios e casas a frente. O som dos carros e das pessoas ao longe, junto ao som das árvores do pátio sacudindo criavam um ambiente agradável.

Ouvi a porta atrás de mim abrir-se e vi alguém que não esperava sair por ela. Era Yuki-san.

– Y-Yuki-san? – Fiquei paralisada por alguns segundos fitando incrédula a figura a minha frente. Ela me encarou com a mesma surpresa a princípio e então ofereceu-me o seu gentil sorriso que me amparou tantas vezes. Não resisti e corri para seus braços e abracei com toda a força e as lágrimas começaram a rolar no mesmo instante.

– É bom te ver de novo também, Mado-chan.

[...]

Depois de tantas lágrimas e pedidos de desculpas entrecortados vindos de mim, estávamos as duas sentadas, apoiando nossas costas na cerca do terraço, olhando para o céu cheio de nuvens que escureciam devagar, anunciando que em breve haveria chuva.

– Então, o que veio fazer aqui Yuki-san?

– Uma parte do meu último pagamento estava faltando, vim resolver esse problema e resolvi dar uma última olhada daqui de cima – Mesmo Yuki-san me dizendo que eu não tenho culpa alguma por ela ter perdido o emprego eu não me sinto dessa forma. Sinto como se fosse sempre estar em débito com ela.

Ficamos alguns instantes em silêncio, voltando a olhar para o céu nublado. Acho que nós duas estávamos pensando a mesma coisa. Que logo iria chover, mas não tendo completa certeza de que queríamos realmente levantar. Que se ficássemos ali e deixássemos que a chuva nos atingisse, talvez pudesse levar toda a nossa angústia embora.


– Eles realmente fazem falta, não é? – Me surpreendi com sua fala. Olhei para i seu rosto e encontrei seus olhos marejados perdidos em algum lugar além do mundo físico.

– Fazem sim – Fechei meus olhos e deixei que meus pensamentos flutuassem para dias mais felizes.

Dias em que Monoko pulava a meu redor com conversas bobas sobre pudim. Quando Shitai fazia imitações que me faziam rir até lágrimas rolarem por minhas bochechas. Quando eu tinha ambos do meu lado sempre com um sorriso para me receber. E agora só tenho duas lápides frias e ásperas. E o mais frustrante de tudo isso é que já não consigo mais lembrar do som de suas vozes.

– Mas veja só! Quem é você pequeno? – Abri meus olhos confusa. Olhei para Yuki-san e vi que ela estava acariciando um gato preto encardido.

– Sora.

– Então esse é seu nome? - Ela o pegou no colo e afundou a ponta de seus dedos esguios entre suas orelhas desgrenhadas.

– Era o gato de Shitai-san, quer dizer mais ou menos. Ele vive aqui no terraço e ele tomava conta – Olhei para aquelas duas pérolas âmbar imersas em uma pelagem densa e negra. Elas me traziam mais lembranças daqueles dois, lembranças dolorosamente felizes. Estiquei minha mão para acaricia-lo também.

Com Sora aconchegado e ronronando como costumava fazer nos braços de Shitai, voltei minha atenção a Yuki-san. Seus olhos haviam se perdido novamente, ela encarava-o no fundo dos olhos como se quisesse desvenda-los, vasculhar dentro daquele amarelo turvo até encontrar alguma coisa sobre os dois, um resquício, uma memória ou recordação. Quere poder ser capaz de ver o que ele viu. Sei disso só ao olha-la por que foi exatamente como me senti com ele em meu colo, depois da morte de Shitai e Monoko.

– Você deveria leva-lo - Disse a mais velha – Sabe cuidar dele e tudo o mais.

–E-Eh? N-Não eu não levo jeito com animais. Além do mais animais não são permitidos no meu edifício.

– Ah, que pena – Ela pareceu um pouco desanimada com a notícia.

– P-Por que você não fica com ele, Yuki-san?

– E-Eh? - Ela me olhou surpresa – E-Eu não posso fazer isso. E-Eeu não tenho o direito de...

– Eu não acho que seja verdade – A interrompi antes que pudesse terminar de falar tal absurdo – Shitai iria gostar que ele finalmente tivesse alguém que tomasse conta dele.

– I-Isso é... talvez tenha razão, mas eu ainda não posso leva-lo – Seus olhos se voltavam para a chão como se temesse que nossos olhos se encontrassem.

– Não entendo, por que não pode...

– Eu não posso leva-lo, por que... Por que estou saindo da cidade – Senti como se a densidade do ar tivesse aumentado de repente – Se eu leva-lo, pode ser que você nunca mais o veja.

– D-Deixar Oga²? Pra onde? Quando? – Levantei-me em um pulo, as palavras saiam tão rápido quase atropelando umas as outras.

– A-Akita, hoje à noite. Tenho família lá e não consegui emprego aqui. Talvez tenha mais sorte em uma cidade maior – Seus olhos denunciavam o desanimo para com a idea.

O silêncio se instalou entre nós, voltei meus olhos para o chão, sentindo o vento que atravessava os pequenos buraquinhos da cerca atingirem meus olhos, deixando o que pareciam ser o princípio de uma lágrima, com uma sensação incomodamente fria, que contrastava com o calor da palma de minhas mãos sendo pressionadas com força por minhas unhas.

Isso é tudo minha culpa...

– Pode leva-lo - Ela me olhou surpresa – Q-Quer dizer, pelo menos você vai ter algo que te lembre que estamos sempre torcendo por você... de onde estivermos. Eu acho que eles também iriam gostar disso.

Ela me piscou algumas vezes, e depois um pequeno sorriso formou-se em seus lábios finos. Ela pegou Sora e juntou seus narizes, e olhou diretamente para seus olhos.


– Parece que você tem uma nova casa então, rapazinho – Uma leve chuva começou a cair, deixando várias gotículas sobre minhas tranças. Corremos para dentro do colégio, e paramos a porta. Sora parece ter ficado confortável com o barulho da chuva e aconchegou-se mais ainda nos braços de Yuki-san para tirar um cochilo.

– Bom, parece que é aqui que nos despedimos, Mado-chan. Ainda vou ficar na cidade resolvendo mais algumas coisas, se puder venha me ver partir – Senti uma gota escorrer da minha franja e rola por meu nariz. Não conseguia evitar de me sentir triste por vê-la ir embora, mas acho que não há nada que possa fazer.

– C-Claro, Yuki-san. Vou estar lá – Forcei m sorriso para ela e a abracei mais uma vez antes de vê-la descer as escadas. Fiquei um tempo observando o lado de fora pela janela da porta, vendo as gotículas escorregarem pelo vidro e acumulando-se na moldura. Demorou um tempo para perceber que misturado aos sons suaves da chuva batendo, haviam passos de alguém subindo as escadas.

– Finalmente te encontrei, Mado-chan – Era Poniko. Minha tristeza pela partida de Yuki-san se esvaiu rapidamente ao vê-la parada ali, me encarando do último degrau da escada.

Mas algo não parecia certo. A falta do brilho de seus olhos contradizia o sorriso meio torto e tremulo que se estendia de orelha a orelha. Sua pele estava mais pálida que o normal e seus longos cabelos loiros presos em um rabo de cavalo mal feito.

Desci os degraus para confronta-la, saber se estava tudo bem. Nos encarávamos diretamente nos olhos uma da outra, mas de alguma forma ela não parecia estar me enxergando. Não era como das últimas vezes em que via seus olhos se perderem em um lugar misterioso de seus pensamentos levando junto a aparência amigável a qual me acostumei a vê-la. Mas parecia que ela teria um colapso nervoso a qualquer instante.

– Poniko-san, você está se sentindo bem? – Toquei em seu antebraço, e ela deu um pulo e encarou minha mão com olhos assustadores, a tirei na hora e subi alguns degraus. Ela piscou algumas vezes e sorriu pra mim mais uma vez, dessa vez mais docemente, mas seus lábios ainda envergavam-se de forma bizarra nas pontas.

– Desculpe, O que disse, Mado-chan?

– E-Eu perguntei se está tudo bem.

– A-Ah sim, está tudo bem, só... eu só tive alguns problemas em casa ontem e acabei não dormindo muito bem.

– Eu sinto muito por ouvir isso – Me senti mal ao ouvir isso. Poniko-san já fez tanto por mim, gostaria de poder ajuda-la de alguma forma também – Se houver algo que eu possa fazer, por favor, não hesite em me pedir.

– Ah, tem sim algo que possa fazer – Seu olhar estreito me causou arrepios, mas acho que são apenas os sinais do cansaço me enganando novamente – Me encontre na saída, se não for muito incomodo, tem algo que eu gostaria de mostrar a você.

Ela subiu os degraus que me separavam dela, e eu poderia jurar que a chuva parecia acompanhar o baque de seus passos. A cada passo ela parecia ficar cada vez mais e mais intensa. Poniko subiu até o degrau em que me encontrava, até que ficássemos frente a frente. Nossas alturas não eram tão diferentes, eu devia ser uns poucos cinco ou seis centímetros mais altas. Mas naquele momento, naquele exato momento em que um relâmpago cortou os céus, distorcendo mais ainda o sorriso de Poniko que tinha sobre ele seu fino dedo indicador, nunca me senti tão pequena.

– Se-gre-do! Terá de esperar a hora para descobrir – Ela aproximou seu rosto do meu mais ainda, quase podia sentir sua respiração – Não se preocupe, tenho certeza de que irá gostar da surpresa.

– S-Se você está dizendo – Tentei ao máximo fazer com que minha voz não fraquejasse – Conto com você estão.

Ela olhou mais uma no fundo de meus olhos, por pelo menos dez segundos, creio eu. E então mais um sorriso pequeno e levemente enviesado. E então simplesmente ajeitou sua postura, colocou as duas mãos atrás das costas, virou-se e começou a descer os degraus devagar, quase que dando pulinhos.

– Te vejo depois então, Mado-chan.

Olhei para fora mais uma vez sentindo meu coração acelerado em minhas têmporas e o zunido que o relâmpago causara em meus ouvidos. A fina chuva que antes caia de forma sinuosa sobre o vidro agora tornara-se um grande temporal. Observei aquele cinza caótico que se espalhava nos céus, quase tão furiosos quanto os olhos de Poniko naqueles longos minutos que se passaram.

Ouvi o sinal tocar e comecei a descer lentamente os degraus de volta ao corredor do último andar. Me pergunto o que aconteceu que tenha a deixado daquela forma.

[...]

O dia finalmente acabou, e eu estava andando pela escola em meio aos vários alunos amontoados nos corredores querendo ir para suas casas. Eu não conseguia achar Poniko em lugar algum, já havia procurado em todo lugar e nem sinal dela. Acabei parando em frente a sala dos professores.

Uma pontada de dor atingiu-me no mesmo instante. Pela janela estreita na porta era possível ver a antiga mesa de Masada Sensei, agora fazia. Sobre ela agora jazia apenas uma foto sua e um vaso de flores quase morta. Desviei meu olhar da porta e quase tive um ataque cardíaco ao ver Poniko parada do meu lado.

– P-Poniko, você me assustou. Não te vi aí.

– Sinto muito – Ela não parecia ter melhorado muito desde nossa conversa na escadaria. Mas ali naquele momento, vendo-a encarando a mesa de Masada Sensei, vi o que parecia ser parte do brilho de seus olhos visível novamente. Ou até mais forte do que eu já havia visto.

– Ele era um professor maravilhosos, não é mesmo – Confesso que perguntei mais para mim mesma do que para ela.

– Sim, era – Por um momento achei que estava tudo bem, mas então a imagem das nuvens cinzas pareceu ter tomado seus olhos mais uma vez – É uma pena que tenham... que esse acidente tenha acontecido.

Eu estava confusa, muito confusa. Por mais que eu encarasse os olhos de Poniko seus olhos eram tão difíceis de decifrar quanto os de Sora. Eu podia me esforçar ao máximo, mas tudo o que podia ver eram traços de pensamentos abstratos e incertos. Eram tão densos quanto a água de um poço. Você pode tentar ver o fundo, mas tudo o que vai achar é você mesmo refletido ali.

– Vamos, sua surpresa está esperando – E assim, sem mais nem menos ela começou a andar, abrindo caminho entre os alunos, agora já em menor número. Olhei uma última vez para o quadro de Masada Sensei sentindo meu coração contraindo-se em meu peito e comecei a segui-la, fazendo esforço para não ficar para trás.

Depois de passarmos por mais alguns corredores, chegamos a parte norte do andar térreo. Tinham poucas salas ali, era onde ficava a antiga sala de artes – hoje transformada em deposito – e onde alguns banheiros ficavam. Poniko continuou andando e eu a segui-la, até que finalmente ela parou. Em frente ao *banheiro masculino.

– Poniko-san, o que estamos fazendo aqui? – Ela não respondeu – E-Esse é o banheiro masculino, não podemos entrar aí.

– Eu sei – Ela finalmente voltou-se para mim e no mesmo instante em que o fez eu fiquei petrificada no mesmo lugar. Poniko sorria daquele jeito, do mesmo jeito que o garoto da boate, do mesmo jeito que Stelle e do mesmo jeito que Monoe. Mas seu sorriso era dez vezes mais assustador e desvirtuado. Eu dei alguns passos para trás, mas senti meus braços serem imobilizados por ninguém mais, ninguém menos que as irmãs Toriningens.

– Mas adivinha só Mado-chan!? Hoje quem faz as regras sou eu – Ela se aproximou e ficamos nariz a nariz. Eu encarava aquelas orbes ensandecidas com tanto terror que não conseguia emitir qualquer tipo de som que não fosse minha respiração trêmula e acelerada.

Poniko abriu a porta e Gou e Manchú me jogaram para dentro de forma brusca, me fazendo atingir o chão violentamente. As três olharam para o corredor uma última vez antes de entrar no banheiro masculino. Poniko se aproximou de mim, ainda petrificada no chão e levantou meu queixo com seus dedos gélidos forçando-me a encarar suas orbes agora de um azul tão escuro quanto o fundo mais obscuro do oceano.

– Surpresa, Mado-chan!

[...]

Mais um chute, e mais outro. Sentia meus músculos se contraindo e latejando a cada golpe.


– E-Ei Poniko, você vai acabar matando ela desse jeito – Disse Gou reclusa perto da porta.

– CALA ESSA SUA MERDA DE BOCA! – Poniko me deu mias outro chute no estômago e foi em direção a Gou – Você acha que eu realmente me importo com o que vai acontecer com esse pedaço de lixo?

– N-Não, mas não precisa ir tão longe – Respondeu Gou espremendo-se mais ainda contra a parede. Poniko soltou uma risada aguda e insana, mais até que a de Monoe. Seu riso percorreu minha espinha de maneira a fazer-me paralisar no chão.


– Não me venha com essa agora, não haja como se fosse melhor que eu! – A loira agarrou o queixo da mais alta e cravou as unhas em sua pele, a dor e o terror em seu rosto eram nítidos. Ela fitou os olhos aterrorizados de Gou como se ela fosse só mais uma presa prestes a ser devorada – Não me diga o que fazer sua porca incompetente, se tivessem feito seu trabalho direito desde o início eu não precisaria estar sujando minhas mãos agora.

Ela soltou o rosto de Gou bruscamente e voltou-se mais uma vez para mim, pude ver que Manchú tomou sua irmã nos braços e examinou com cuidado o rosto da mais nova. Que engraçado, vê-las mostrando preocupação e amor uma pela outra até faz com que pareçam pessoas descentes agora.

Poniko se aproximou em passos lentos, quase os arrastando pelos ladrilhos lustrados do chão. Seu corpo parecia estar suspenso por fios, como uma marionete controlada por um ventrículo invisível. Eu não sei por que não gritei ou pedi por ajuda, não sei mesmo. Devia estar aterrorizada demais ou até muito fraca para fazê-lo depois de ter ficado nesse chão gelado sendo atingida por vários chutes, socos e muito mais por sabe-se lá quanto tempo.

Poniko então, já com seus pés a centímetros de meu rosto, agachou-se do meu lado e começou a entrelaçar meu cabelo entre seus dedos finos, de uma forma lenta e cautelosa. Arrepios corriam por meu corpo toda vez que suas unhas roçavam minha pele.

– Eu deveria tê-la jogado em uma caçamba de lixo quando tive a oportunidade. Mas parece que eu não fui rápida o bastante, não é, Mado-chan!?

– Do-Do que está falando? – Perguntei praticamente em sussurros, minha voz para gritar já havia se perdido em meio as agressões a um tempo atrás.

– Ah é mesmo, você não sabe de nada, pobrezinha – Respondeu com falsa pena – No dia em que desmaiou na rua, pensei em arrasta-la para um beco qualquer e joga-la em uma caçamba de lixo e tranca-la lá. E esperar que, seja lá a doença que tivesse, arrancasse suas forças aos poucos até que não fosse capaz de sequer gritar por ajuda, ou que ficasse perdida no lixão municipal pra sempre.

Parecia que eu estava imersa em um sonho, ela falava aquilo quase gargalhando. Quase não conseguia assimilar o que estava dizendo, ela realmente queria me jogar fora daquela maneira?

– Mas então aquela miserável apareceu com ajuda, e estragou os meus planos –

Rosnou entredentes puxando meu cabelo com força, me fazendo agonizar mais ainda de dor – Deveria tê-la escutado da primeira vez Mado-chan, se o tivesse feito não estaria aqui agora.

Foi então que a ficha caiu, ela estava se referindo a garota de cachecol que me alertou sobre ela naquele inverno, e hoje de manhã novamente. A que me disse para ficar longe de Poniko.

– Pensando bem, estaria sim – Ela parou de brincar com meu cabelo. Encarei sua face agora a meia luz. A imagem de seu rosto pareceu ter arrancado a consciência restante que tinha de meu corpo. Seus olhos estavam mais fundos que uma vala, como se estivessem tentando me engolir por inteiro lenta e dolorosamente. E seu olhar de desprezo acompanhado de divertimento só me faziam querer gritar em desespero, mas eu não conseguira mesmo que tentasse muito. Com um sorriso torto e deformado aproximou-se de meu ouvido, fazendo-me tremer horrivelmente e sibilou com uma voz afiada e cortante como vidro.

– ...Por que eu sempre consigo o que eu quero.

Ela se levantou da mesma forma torta e desajeitada de antes, ainda parecendo uma marionete macabra.

– Bem quase tudo.

Senti minha carne latejando acompanhada de uma dor terrível percorrer minha perna, ainda sem força o suficiente para gritar de dor e com dificuldade gemia de forma fraca e engasgada em conta do sangue que escorria de minha boca, deixando-a com um gosto adstringente e metálico.

– Você conseguiu tirar de mim o que eu mais queria – Senti a dor se intensificar. Levantei minha cabeça minimamente, com muita dificuldade e senti o gosto salgado das lágrimas se misturando ao sangue em quanto via Poniko pressionando com força meu tornozelo – Não é mesmo?

– E-Eu não roubei nada de você – Minha voz saia cada vez mais falha e minha visão começou a encher-se de pontos negros.

Poniko parou de pressionar seu pé contra minha minhas carne. Pude sentir os músculos da minha perna relaxarem, mas isso não era motivo de alívio, se antes seus olhos estavam profundos como valas, agora me via em frente a dois abismos.

Ela se ajoelhou ao lado da minha cabeça. Tentei vira-la, mas ela cravou as unhas em minha pele como fez com Gou, forçando-me a encarar aquele azul escurecido como esgoto e sem vida que agora tomava conta de suas orbes.

– Não sabe, Mado-chan?

– Já disse que não sei do que você est... – Foi então que me lembrei das inúmeras vezes em que Poniko mudou deliberadamente de atitude, de como ela se comportou hoje na escadaria e em frente a sala dos professores. Mas não vejo ligação entre mim e essas mudanças insanas dela. Pense Madotsuki, o que todas essas vezes tiveram em comum? Isso se tiveram mesmo algo em comum e ela só ser uma doida de pedra com sérios problemas de raiva.

Meu coração que até então batia vagarosamente e com dificuldades, parecia ter finalmente saído de funcionamento. Não era possível, não podia ser. Tudo aquilo por um motivo tão... Estupido!

– Parece que já descobriu, não é mesmo Mado-chan?

– É por isso que está fazendo isso comigo? É por isso que está me torturando dessa maneira? Só por que você estava apaixonada pelo Sensei? – Perguntei com tanta incredulidade que parecia até uma mentira. A torrente absurdamente grande de lágrimas que inundou meus olhos, não me permitia ver mais nada além de borrões.

Ela não pareceu gostar da minha resposta, soltou finalmente meu rosto e se pôs de pé, seus olhos já estavam tão escuros que pareciam negros. Fiquei esperando ela dizer alguma coisa, mas tudo o que senti foram mais choques contra minha carne. Direto nas costelas, expulsando o ar de meus pulmões bruscamente e fazendo mais sangue escorrer por meus lábios.

– Chega Poniko, vai acabar matando ela – Ouvi barulho de passos contra o piso de azulejos e os chutes pararem abruptamente. Parece que as cara-de-pássaro seguraram a doida de pedra. Acho que nunca fiquei tão grata por elas estarem na mesma sala que eu, mesmo que isso seja em parte culpa delas.

– ME SOLTEM SUAS VADIAS BURRAS!!!

– Poniko, é sério, se continuar assim teremos problemas.

Ouvi Poniko se debatendo por mais alguns instantes, mas ela parou de repente, e então um silêncio tomou conta do lugar. Mas não por muito tempo. O riso insano de Poniko ecoou nas paredes mais uma vez, e voltei a ouvir seus passos, cada vez mais perto.

– É verdade Mado-chan, não posso ficar com a diversão só pra mim, não seria justo – Sua voz estava com um tom infantil, mas que conseguia arrancar calafrios de meu corpo sem nem chegar muito perto – Gou, vá chama-los!

Não ouvi uma resposta de Gou, muito menos de Manchú, apenas ouvia minha respiração pesada e entrecortada.

– VOCÊ É SURDA?? VÁ CHAMA-LOS!!

Logo depois do grito enfurecido de Poniko, ouvi os passos apressados que deveriam ser de Gou, e logo a porta se abriu, deixando um pouco da luz de fora entrar. Como estava olhando para a parede, pude ver a silhueta de Poniko em contraste com essa luz. A imagem torta e extática de Poniko fazia com me meu sangue parecesse sólido, incapaz de circulas pelas veias. Não pude fitar aquela imagem perturbadora por mais tempo, pois a porta se fechou jogando-me na escuridão desesperadora novamente.

– Sabe, Madotsuki-san. Eu sabia que você era idiota, mas não pensei que fosse tanto – Sua voz estava sucinta e calma, mas eu podia sentir o cinismo e o desprezo incumbidas nela. Ouvi o som de seus passos arrastados pelos ladrilhos e da torneira abrindo-se, deixando a água escorrer – Você pensou mesmo que alguém como EU seria amiga de alguém como VOCÊ?

Soltou mais uma gargalhada cortante. Era verdade que eu fui estúpida, estúpida de não perceber que estava voando direto para a teia de uma víbora desprezível de bom grado. Mas eu, com certeza, não sou estúpida em pensar que poderia ter amigos. Shitai e Monoko foram meus amigos, mesmo sendo eu, mesmo sendo essa pessoa que sou, eles foram meus amigos, eles me aceitaram, e não há nada de estúpido nisso.

– Você é a estúpida Poniko, por pensar que Masada Sensei amaria alguém tão podre e desprezível quanto você – Eu poderia estar à beira de um desmaio, mas ainda assim fui capaz de olhar para seu rosto retorcido em ódio e sorrir triunfante.

Seu rosto normalizou-se voltando a cor opaca e fria de antes, ela fechou a torneira e secou suas mãos tranquilamente. Gou abriu a porta do banheiro e pude ver que não estava sozinha, havia um grupo de garotos com ela.

– Veja só Mado-chan, a diversão chegou – Disse Poniko se aproximando de um garoto em particular. Eu o conhecia, normalmente andava com as cara-de-pássaro e também não era flor que se cheire. Seu nome era Akumade *Onigawara³. Ele não parecia nem um pouco surpreso ou abalado por me ver daquela maneira, apenas indiferente, como se estivesse olhando um inseto que acabara de ser esmagado. O medo está me corroendo por dentro, quero me levantar e correr, mas não sou capaz de fazer isso.

– Ei, como vamos poder nos divertir se você deixou ela nesse estado? – Perguntou o garoto ainda de forma sucinta e indiferente, encarava Poniko com olhos tão gélidos que poderia jurar que se o encarasse demais poderia congelar.

– Dê seu jeito, é pra isso que está recebendo o pagamento – Retrucou ela de forma autoritária e irritadiça. Logo se aproximou de mim e sussurrou em meu ouvido - Esta é sua recompensa por ter matado Masada Sensei e ter feito aquele bebê imundo que deveria ter sido meu... Vamos ver se tem tanta audácia agora.

Ao ouvir suas palavras, fiquei extática sem saber o que dizer, sequer conseguia pensar em algo. A dor latente e o pânico que se instalaram em mim tomaram controle de todo e qualquer pensamento são que pudesse ter.

– Bom, tchauzinho Mado-chan. E meninos não precisam ser cuidadosos ela já tem prática – A loira virou-se em direção a porta e Gou e Manchú foram atrás, seus olhares de pena me deixaram em desespero. Eu não era burra, sabia o que iria acontecer se aquela porta se fechasse novamente, se isso acontecesse seria o fim para mim.

Tentei me arrastar pelo piso inutilmente em direção a porta, esticando meus braços desesperadamente na tentativa de que alguém viesse e me tirasse dali, mas tudo o que consegui ver através de minha visão embaçada e mente embaralhada foi aquele *rosto, aquele rosto que sorriu pra mim falsamente tantas vezes, dizendo que se importava, dizendo que era minha amiga, dizendo que estaria a meu lado sempre, emoldurado nas sombras negras do corredor, com um sorriso macabro e deformado de puro divertimento.

E fitando aquela expressão que atormentaria meus piores pesadelos, me vi sendo cercada pela escuridão do banheiro a medida em que um *garoto do outro lado fechava a porta. Senti toda a pouca esperança de meu corpo ser inundada por medo e desespero, logo estava sendo puxada por dezenas de mãos e obrigada a encarar outras dezenas de sorrisos maliciosos e asquerosos. Eu cravava meus dedos com tanta força no chão que minhas unhas quebravam-se e enchiam-se de sangue.

– Vamos nos divertir, Mado-tsuki-san - Onigawara sibilou em meu ouvido ao puxar minha cabeça para perto de seu rosto.

Alguém me ajude. Qualquer um. Me tirem desse pesadelo.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.