A moda enorme entre a juventude que é o jogo Monstros de Duelo, desde 1999, não impediu a vida de correr normalmente.
Todos temos (ou buscamos desesperadamente) emprego, apesar disso. Os brasileiros continuam gostando de futebol, apesar disso. A juventude continua viciada em jogos online, e assim por diante.

Essa normalidade fatal atingiu eu, Lucas e Clara (meus colegas de faculdade e trabalho), com o nome de “viagem de férias”.

No fim deste ano letivo, 2013, tivemos a oportunidade de passar uma semana em Santos, litoral paulista, em uma casa alugada há alguns quarteirões da orla da praia.

Antes da viagem, no entanto, Clara e Lucas já sabiam que, após nossa volta à capital, eu não mais moraria com eles na república que dividíamos desde o terceiro semestre de Filosofia. Afinal de contas, consegui uma vaga bem remunerada no centro de São Paulo, entretanto, longe demais de nossa república na zona leste. Por conseguinte, restou apenas que eu buscasse uma casa por lá, garantindo que eu não perdesse, assim, esse excelente emprego.

Com efeito, eu já encontrara a casa para alugar no centro. Eu dividiria com um tal David, um rapaz de seus vinte anos, que também (ao que disseram) lecionava e que, até então, vi duas vezes fumando em frente ao prédio, enquanto esperava o táxi com seu humilde Disco de Duelos.
A senhoria do local já adiantara nossas identidades, porém, não apertamos mãos nem nada, só aquele clássico murmúrio e balançada de cabeça.

Toda esta introdução, enfim, para constar que a viagem estava incrível. O tom de despedida e nostalgia só não superava a quantidade de álcool que bebíamos e, no terceiro dia, vinte e um de Dezembro, indo dar um mergulho e depois aproveitar a água do mar para pegar mais bronze, aproveitando o sol das uma, encontrei David.

Talvez eu já estivesse alcoolizada naquela altura, mas, olhando o homem sem camisa, até que gostei do que vi. Embora magro, o rapaz era bem definido. Os cabelos pretos e curtos harmonizavam com a barba bem desenhada, que descia desde a lateral do rosto até o queixo.

Ele tirou os óculos escuros ao perceber quem eu era.

— Opa — repetiu ele o clássico murmúrio, balançando a cabeça.

Talvez, mais uma vez, pela quantidade de cerveja no meu sangue naquele terceiro dia, tomei um pouco mais de coragem e dei um passo adiante. Ao fim e ao cabo, aquele seria meu novo colega de moradia, precisávamos socializar.

— David — pronunciei “Deividi”, enquanto dava passos em direção ao rapaz.

De perto, pude olhar para além do abdome e do peito do moço, e notar que ele estava suado, sobre uma toalha preta.
Atrás dele, uma mochila e o tal Disco de Duelos humilde já citado.

Ele sorriu.

— É do jeito judeu que se pronuncia — falou ele.

— Como?

— É do jeito judeu, não estadunidense. Fala “Davi” mesmo, o “d” mudo é só sacanagem da minha mãe e do cara do cartório que não quis facilitar minha vida.

Finalmente, ao entender, percebi que ele sofria do caso de ter um nome e ser chamado de outro. A senhoria do local que dividiríamos o aluguel, o tempo todo, referiu-se ao rapaz como “Deividi” mesmo.

— Eu sou Cecília, bom conhecer você direito pela primeira vez — disse eu, já sentando ao lado do moço.

— Nós paulistanos temos essa mania chata, não? — indagou retoricamente, olhando para o horizonte. — Essa mania de achar que um “opa” e um balançar de cabeça são cumprimentos reais. Mas não são — Ele fez uma pausa. — Não são...

Ignorei a filosofia de boteco e prossegui com a simpatia.

— E o que tá fazendo aqui, rapaz? Parece que só te vejo fumando e indo pra algum duelo.

— É bem por aí — gargalhou. — Quero entrar naquele torneio de Monstros de Duelo que a Monstros das Sombras está oferecendo.

— Que vale as Feras Sagradas? — indaguei, honestamente surpresa.

— Esse mesmo.

— Você não tem cara daqueles garotos que são duelistas profissionais — Percebi, depois, o quanto essa afirmação foi fria da minha parte.

— Eu não necessariamente quero ganhar, quero provar um ponto.

— Interessante. Do que está falando exatamente?

Nessa altura, ele já havia remexido a bolsa e achado um cigarro e um isqueiro. Antes de minha pergunta, David batalhava por acender o cilindro tóxico, contudo, abandonou o desafio ao ouvir minha pergunta.

— Sou jornalista. É parte de uma matéria — A resposta soou mais que evasiva, soou cautelosa e mentirosa.

E aí, entra o álcool mais uma vez.

— Achei que era professor — retruquei, franzindo o cenho.

— É só um bico — sorriu ele. — E você? — A rápida mudança de assunto dos mentirosos pouco confiantes. — A Dona Lourdes adiantou que tu era professora pra valer, mas, suponho que deve ser outra coisa também.

Nós dois gargalhamos brevemente.

— Não, só professora mesmo. De filosofia. Formei ano passado. Você escreve para algum jornal, site?

— Alguns jornais — A resposta foi rápida, evasiva como antes. — Quando faço meu bico de dar aulas, também dou aulas de filosofia. Peguei o diploma também no ano passado.

— Que ótimo! — comentei, entusiasmada com um novo colega da área, mas... Logo caiu ali sobre nós aquele silêncio incômodo que, inexoravelmente, conduz uma conversa às revelantes discussões sobre o clima.

— Bom, então foi um prazer. Até São Paulo, Cecília! — falou David, já levantando.

— É... Espera! Você já tá indo? Tô com um pessoal aqui — E apontei para o Guarda-Sol sob o qual estavam Lucas e Clara. — Não quer tomar uma com a gente?

— Olha, quem nega uma bebida gelada nesse sol não deve ter caráter.

Levei meu novo colega de aluguel até os dois, fiz as devidas apresentações e, quando David sentou com sua latinha de cerveja na mão, finalmente fiz meu caminho para o mar.

Fiquei cerca de dez minutos na água e, na volta, reparei nos familiares hologramas dos Discos de Duelos, bastante apagados pelo sol forte do litoral, entretanto, destacados pelos brilhos vermelhos e pretos de ambos os lados.

De nós três, Lucas era o único que andava pra lá e cá com um Disco de Duelos. Clara já renegara o jogo antes da faculdade e, quanto a mim, embora gostasse, era mais uma jogadora por diversão, que gostava de exibir meu "chefão" raríssimo quando a vitória era certa, logo, desde o último torneio que venci, passei longe do arquétipo de Duelista (com esse “D” maiúsculo mesmo), no sentido profundo do termo, que treina o tempo todo, etc.

Logo que cheguei perto de vez, percebi que nesse curto tempo a coisa toda já estava resolvida para o lado do tal “jornalista”.
Eis o cenário, em termos de pontos de vida:

Lucas – Life Points: 1000

David – Life Points: 4500

Já em relação aos monstros e cartas no campo, era o começo do turno de David, que tinha um VolcanicSlicer (1800/1200) em campo, com três armadilhas ativadas: duas Backfire (Armadilha Contínua) e um BlazeAcceleratorReload (Armadilha Contínua), com três cartas na mão.

Lucas, como sempre, estava jogando com seus Dragões Negros. No momento estava com o Red-EyesDarkness Dragon (2400/2000 > 3000/2000) em campo, modo de ataque, com seiscentos pontos de ataque extras graças ao próprio efeito. Além disso, duas invertidas e três cartas na mão.

— Eu encerro meu turno! — disse Lucas, assim que cheguei perto o suficiente para ver o campo todo.

— Minha vez — falou David, calmamente. — Eu uso efeito do BlazeAcceleratorReload, para descartar um Volcanic e puxar outra carta — Ele descartou o VolcanicCounter (300/1300).— Agora, eu ativo o efeito do Slicer e você diz adeus para quinhentos pontos.

Lucas – Life Points: 500

— Para encerrar — prosseguiu o “jornalista” — eu tributo o Slicer para invocar o VolcanicHammerer (2400/1500). Agora, batalha!

Enquanto o monstro de fogo avançava inutilmente contra o Dragão de Lucas, vislumbrei o fim com base no que acabara de acontecer. Com o dano que o Dragão Negro causaria, seiscentos pontos, o efeito do Counter no cemitério seria ativado, e os pontos de vida do Lucas zerariam. Além disso, as Backfire deixariam mais mil pontos de dano para meu amigo. Mas isso não chamou minha atenção no momento... Não tanto, pelo menos, quanto o fato de que o efeito do Hammerer, sozinho, teria provavelmente computado um dano de seiscentos pontos sem a necessidade de atacar.

Meu colega de apartamento alugado correu o risco do ataque por pura diversão, de tão confiante que estava.

E esta confiança não veio sem resultados.

Fim do Duelo!

Lucas – Life Points: 0

David – Life Points: 3900

Vencedor: David!

A história do “jornalista” que dizia ser professor por bico não desceu por minha garganta, no entanto, a parte do “duelista” eu não podia negar.