Seiva

“A única atitude intelectual digna de uma criatura superior é a de uma calma e fria compaixão por tudo quanto não é ele próprio. Não que essa atitude tenha o mínimo cunho de justa e verdadeira; mas é tão invejável que é preciso tê-la.” – Fernando Pessoa

This Sife of Paradise – Hayley Kyioko

Colocou a mão sobre seu ombro, passando-lhe segurança, enquanto caminhavam para longe da casa assombrada. Blaine terminou de quebrar a última peça de porcelana dos anões de jardim e arrastou-se para fora do lugar, com um leve sorriso afetado no rosto. Sua camisa estava ensopada de suor e os braços fortes apresentavam alguns cortes pelos estilhaços da porcelana. O rapaz misterioso, que os ajudaram a entrar na casa para salvar a menina que caminhava trôpega, também saiu. Ainda não havia perguntado seu nome, mas quando passou ao lado de Blaine, olhou o menino e não soube o que fazer. Mas Ennie sabia. Deixou a menina pálida sentar-se sobre uma rocha, aos soluços, e caminhou até a entrada da porta, abaixou-se e passou os braços de Blaine sobre seus ombros.

Levantou Blaine como se não pesasse nada e sustentou-o até o lado da menina, onde ele se sentou e então arrumou as pernas inertes para que não ficassem sobrando. Ela olhou-o de soslaio, embora ainda estivesse tentando conter as lágrimas, era uma menina medrosa e tímida. Ao passar dos minutos, seus ruídos se tornaram apenas fungadas leves, tentando conter o nariz que escorria.

– Qual o seu nome? – perguntou Blaine, com delicadeza suficiente para fazê-la confiar nele de imediato. A menina ergueu o rosto molhado e disse com voz trêmula:

– Caliandra. – engoliu em seco e então respirou fundo, piscando rapidamente os olhos para evitar que voltasse a chorar. Seu rosto estava vermelho e havia muito sangue em sua calça. – Eu estou machucada. – ela apontou a perna manchada. Blaine assentiu, puxando a perna da menina com seus braços firmes e colocando-a sobre suas pernas inúteis. Ele puxou a barra da calça e revelou um ferimento alto, porém profundo. Havia muito sangue e praticamente toda a pele fora coberta de púrpura. O rapaz ao lado deles se agitou levemente, o que fez Ennie se lembrar dele.

– E qual o seu nome? – perguntou, direcionando-se para ele.

O garoto lançou-lhe um olhar curto e disse com calma.

– Adam. E vocês?

– Flowërniie e Blaine, mas me chame de Ennie – ergueu o canto dos lábios, passando confiança para ele. Blaine acabava de inspecionar o ferimento de Caliandra. Chamaria a menina de Cali, era mais fácil e Cali combinava melhor com ela.

O quarteto acabou o interlúdio de arrumar os trapos para envolver a perna de Cali, e até mesmo dividiram algumas barras de cereal que Adam disse ter encontrado em um banco ali perto. Quando o Sol já estava parecendo dez horas da manhã, eles se levantaram e começaram a decidir como continuariam dali em diante.

– Quatro pessoas em uma aliança só... Arriscado. – disse Blaine, embora não rudemente. Ennie gostaria que pudessem ficar juntos, mas tinha de concordar com Blaine. Apenas eles dois já tinham dificuldade para encontrar suprimentos ou simplesmente sobreviver uma noite na Arena. Imagine quatro pessoas? As desvantagens eram maiores que as vantagens. Cali encolheu os ombros ligeiramente, parecia amedrontada pela ameaça de continuar sozinha, com sua perna falha e sua cara já marcada pelos gnomos de porcelana. Ennie sentiu pena dela.

– Ela pode vir comigo. – Adam acabou com o impasse, arrumando a jaqueta e olhando bem para a perto da menina – Consegue andar? – Adam era grande, e alto, poderia carregar a miúda Cali em suas costas sem o menor esforço (ao menos por alguns minutos). Talvez até um local seguro, onde poderiam montar acampamento. Foi neste instante que Ennie concluiu que não queria se desfazer do grupo. Blaine praticamente leu sua mente, ou seu rosto, pois mudou levemente a posição dos pés e cruzou os braços. Ennie sentia-se sempre ansiosa quando o via movimentar, mesmo que de leve, seus membros atrofiados. Como se de repente ele fosse se levantar e saltar por aí.

– Talvez possamos fazer uma aliança a distância. – disse, parecia pensativo. E quando Blaine parecia pensativo, ele realmente estava pensativo. Era isso que Ennie gostava nele, seu talento para pensar. – Temos duas alianças de duas pessoas, onde uma delas está debilitada em se locomover – ele apontou para si mesmo e para Cali. – No entanto, temos também duas pessoas fortes. – e apontou para Adam e Ennie – Por isso, proponho duas sugestões: a primeira e mais lógica, vocês dois nos matam e se juntam para uma aliança mais forte, acabando assim com os pesos mortos. Ou, a segunda opção, nós formamos uma aliança, mas não unida. Em acampamentos diferentes, se comunicando, porém sem dar vestígios de estarmos juntos. Isso poderia manter a mim e Cali seguros, e vocês dois teriam segurança para dormir.

– A primeira alternativa é mais eficiente, de fato. – Adam pensou um pouco. Ennie mordeu o lábio inferior. A ideia de Blaine era realmente boa, e ela não queria deixá-lo. Preferia continuar a arrastar seu corpo, a vê-lo morrer sem conseguir se defender. De repente sentiu algo molhado em seu ombro, e no rosto, até que as gotas se transformassem em uma garoa, e a garoa em chuva, tudo em menos de dez segundos. A chuva foi torrencial, obrigando-os a voltar para a varanda da casa assombrada, local onde ainda haviam os restos dos gnomos de porcelana. Até o momento, mortos.

– Eu não te condenaria por me matar. – Blaine concordou, agarrando-se às costas de Ennie. Ela o colocou sentado perto de um banco quebrado, e ele o usou como apoio. – Eu não a condenaria por me matar – repetiu, agora para ela. Ennie desviou o olhar.

– Eu nunca o mataria.

Blaine sorriu de leve, talvez melancólico. As palavras de Cali foram abafadas pela chuva, porém pelo seu rosto, ela disse que não queria morrer. E Ennie também não queria que ela morresse. No instante em que Adam ia dizer algo, o canhão soou alto pela Arena, arrepiando seus cabelos da nuca. Ennie virou-se instantaneamente para Blaine e olhou-o, o menino retribuiu o olhar apreensivo e engoliu em seco. A chuva lavaria o sangue de seus corpos enquanto corressem.

– Precisamos de um local seguro, discutimos depois. – dito isso, ele a segurou e se ergueu até suas costas, ancorado, enquanto Adam apoiava Cali com seu ombro. – Vamos para lá – ele apontou a Roda-Gigante, visível apenas na parte mais alta – Estaremos seguros lá em cima.