Lua

“A mais alta forma de heroísmo consiste no silêncio. Viver em silêncio, sofrer em silêncio, morrer em silêncio” – Vicente Avelino

The Lumineers – Stubborn Love

Era uma maldição que rondava todos os O’Malley. Ao menos as más-línguas diziam aquilo pelo Distrito Três. E estava lá para garantir que assim continuasse. Todos os filhos de Katrina O’Malley foram aos Jogos e morreram no Banho de Sangue. Nenhum deles sobreviveu uma semana, nenhum deles foi capaz de ao menos segurar uma arma. Três filhos, três irmãos. Não sentia-se desmotivada, entretanto. Sabia que os pais acreditavam em sua chance de vitória, afinal tudo dependia da sorte. Apenas que a sorte não estava a favor dos irmãos de Lunara.

Olhou ao redor. As carruagens estavam enfileiradas, com dois cavalos em cada uma, imóveis. Eles pareciam robôs, programados para permanecerem inertes como bonecos. Havia gosto de metal em sua boca, embora não por causa de sangue e sim literalmente pelo metal. Vestia-se com cota de aço, enquanto luzes contornavam sua cintura e braços, brilhando intensamente na escuridão. Seus cabelos foram presos por laços vermelho incandescentes e ela inteira parecia brilhar feito uma árvore de Natal. Estava ridícula.

Mas a acompanhante disse “acene e sorria” e o estilista até mesmo enxugara lágrimas de entusiasmo. O garoto ao seu lado moveu-se desconfortavelmente sobre os pés, mudando o peso entre eles. É claro que não iria demonstrar que também estava incomodada. Permaneceu inerte, feito os cavalos, enquanto o rosto inexpressivo movia-se na direção dos outros tributos, analisando. A garota do Distrito Um tinha lindos cabelos louros presos em um rabo de cavalo, ela se vestia com um longo e sensual vestido vermelho, que a fazia parecer uma mulher adulta, ao invés de uma garota pequena e fraca. Ela ostentava um colar de diamantes e braceletes de ouro, era quase uma deusa grega. Atrás, o rapaz do Nove resmungava que estava com fome e sua companheira revirava os olhos e respondia que então deveria ter comido antes do Desfile. Eles pareciam se dar bem, por mais que fossem escandalosos, ela vestia uma longa capa feita de trigo trançado, com um tecido fino que parecia papel, dourado. Suas pernas estavam envoltas e fios inteiros de trigo e o vestido era simples, reto e branco.

– Não esqueça o sorriso, Lunara. – a acompanhante sorriu largamente, deixando Lunara enojada com tanta demonstração de falsidade. Por que sorrir se não estava feliz? Se chorasse seria mais sincero. O garoto ao seu lado voltou a se remexer, incomodando-a levemente. Tudo bem. Não estava irritada de verdade. Dificilmente ela se irrita com algo que seja capaz de tirá-la do sério. Um de seus maiores talentos é o autocontrole e a paciência quase inesgotável.

Os últimos tributos subiram nas Carruagens e os organizadores contaram os segundos até que as portas se abrissem. Estava no terceiro lugar para entrar e por isso conseguia ver bem o que aguardava: duas arquibancadas altas e lotadas de pessoas, cores e barulho. A Capital tinha um gosto estranho para a moda, e não eram nada discretos. O som do hino de Panem quase desaparecia atrás dos gritos eufóricos da multidão que exaltava os tributos. O Distrito Um entrou e levou-os à loucura. Como suspeitara, a menina do Distrito Um era bonita e sabia disso e usava-se deste talento para arrebatar os corações. Ela acenava, sorria, mandava beijos e ria. Agarrava-se a seu companheiro e apontava para pessoas nas arquibancadas. Nos telões, seu rosto era iluminado intensamente e ela parecia incrível como se já fosse acostumada com aquele assédio.

Por causa de tudo isso, Lunara não percebeu quando a carruagem do Distrito Dois começou a andar e quase caiu quando a sua também começou a andar. Por sorte, alguém estava ansioso demais pelo Desfile para se preocupar com o barulho: o menino ao lado dela. O qual não se lembrava o nome, ou mesmo a cor da camisa que usara na Colheita. Era insignificante demais para ser notado. Ele a segurou pelo pulso e a ajudou a retomar o equilíbrio. Quando conseguiu respirar fundo, moveu o queixo em direção a ele e assentiu com a cabeça, sem erguer os cantos dos lábios ou mover as sobrancelhas, apenas assentiu e voltou a olhar para frente. “Obrigada. Isso é tudo”.

O menino não pareceu incomodado com sua reação, o que deixou Lunara um pouco mais confortável com o ambiente. Até que saíssem para a grande praça. As vozes eram ensurdecedoras, e as pessoas brigavam para conseguir vê-los. Lunara encarou aquele bando de gaios tagarelas que tiravam fotos com seus celulares ou jogavam flores para as carruagens. Sentia-se estranhamente divertida com aquilo. Era tão ridículo que sentiu o ímpeto de gargalhar subindo pela garganta, mas conteve-se. Não era preciso que a vissem demonstrar seu irônico bom-senso de humor. Não ergueu os olhos da carruagem a sua frente por nada, nem mesmo para olhar os telões. A Casa grande, onde o Presidente morava, estava iluminada com as cores vermelho e dourado, enquanto bandeiras balançavam com a insígnia de Panem e da Capital.

Quando pararam em frente a ela, a multidão silenciou. As últimas carruagens se dispuseram no semicírculo e todos esperaram pelo Presidente de Panem. Ele tinha cabelos brancos e uma barba feita e desenhada. Seus olhos azul intensos eram calorosos e suas bochechas grandes e rosadas. Posicionou-se diante do microfone e disse para todas as pessoas de Panem que assistiam ao Desfile, na Capital, nos Distritos. Debaixo ou em cima da terra.

– Bem vindos, tributos, da décima primeira edição de Jogos Vorazes. É com grande prazer que anuncio que em menos de uma semana poderemos vê-los demonstrando todo o seu potencial e toda a força que trouxeram de seu Distrito até que apenas o mais capacitado de todos vocês possa receber a coroa de glória que eu mesmo colocarei em sua cabeça. – ele sorriu levemente. – Passamos por grandes dificuldades juntos, mas este é um tempo de nos unirmos neste propósito, para que Panem seja forte e sobreviva aos malefícios que toda a humanidade já causou em si mesma. Bom Jogos Vorazes e que a sorte esteja sempre a seu favor.

Ele despediu-se, e os cavalos voltaram a andar, roboticamente. Percorreram o mesmo caminho de antes até alcançarem o Hotel dos Tributos. Quando finalmente pôde descer, Lunara tirou os sapatos que a machucavam e parou diante da acompanhante da Capital. Ela sorria e batia palmas, elogiando-os pela performance, embora nenhum deles realmente tivessem chamado a atenção do público. Por outro lado, a menina do Distrito Um agora estava cercada de olhares, e principalmente de Patrocinadores. Seu mentor afastava-os dela, que apenas acenava e lhes agradecia pela atenção.

– Será que é sincero ou ela apenas finge? – de repente o garoto com quem dividira a carruagem soltou, próximo a seu ouvido. Lunara virou-se e encarou-o. Estava realmente falando com ela? Mas ela não queria conversar no momento, será que ele não havia percebido?

– É visivelmente uma farsa. Ela nem ao menos parece surpresa com tudo aquilo. – apontou sutilmente. – Vê como ela acena e sorri, seus olhos não estão arregalados, e ela mantêm a pose de princesa. Parece querer ocultar seu companheiro, colocando-se a frente dele.

– Não havia notado. – o rapaz concordou – Ah, é mesmo, nós nem ao menos conversamos ainda. Você parecia muito segura antes do Desfile, Lunara, quem dera eu ter tanta autoconfiança.

Ele lembrava seu nome. Por que raios ele lembraria seu nome? Não havia sentido em guardar o nome de alguém que você veria morto dali poucos dias. Era simplesmente banal se apegar a qualquer coisa. Mas apenas deu de ombros, sem expressas espanto, orgulho ou alegria.

– Eu apenas pensei que não seria tão ruim ficar parada enquanto um bando de bobocas gritam histericamente.

Ele soltou uma gargalhada do fundo da garganta e então olhou diretamente para seus olhos. Ele era estranho. Era muito estranho.

– São mesmo bobos. – ele sussurrou, com medo de que a acompanhante ouvisse – Mas você deve ter conseguido alguns Patrocinadores, demonstrando a sua calma e força. As pessoas agora sabem que você tem autocontrole suficiente para estar diante de milhões, vestindo algo ridículo e mesmo assim manter a classe.

– Eu tenho prática. – respondeu, ironicamente – Todos os dias eu mato alguém enquanto bebo o chá da tarde. A classe é indispensável.

Ele gargalhou novamente.

– Não imaginei que fosse tão divertida. Você parecia quase entediada de tão silenciosa e neutra. Você é uma pessoa incrível, Lunara. Conheço poucos que possam ser tão interessantes.

Ela piscou, atônita. Acabara de ser chamada de incrível? Por um garoto com quem trocaram mal cinco frases? O rubor queria subir para o rosto e ela queria se sentir envergonhada, mas facilitou o trabalho, deu de ombros, moveu o cabelo para o ombro direito, escondendo o rosto corado e adentrou o elevador. A representante apertou o botão Três, onde eles ficariam hospedados. Cada Distrito tinha um andar, e eles correspondiam ao número, por exemplo, o Distrito Um ficava no primeiro andar, e o Distrito Doze no último. Mas Lunara não estava realmente preocupada com aquilo. Estava com o coração disparado em seu peito e esse era um mau sinal.

– Eu nem mesmo sei seu nome.

– Eu me chamo Corey – ele sorriu, amigável. – Desculpe, devo parecer um fanático ou algo assim. Eu só lembrei de seu nome pois seu sorteio foi primeiro que o meu, então eu ouvi seu nome e me senti aliviado por não ser alguém que eu conhecesse. Mas agora acho que é uma pena ser você. Uma pessoa tão legal...

– Não preciso de sua compaixão.

Corey murmurou algo em voz baixa, parecido com um pedido de desculpas e continuaram em silêncio. O coração de Lunara se acalmou lentamente, e quando as portas do elevador se abriram, ela esqueceu completamente do que acontecera antes. A sala era grande, com janelas que davam vista para todo o complexo de prédios enormes. O chão era de mármore branco e as cadeiras eram de madeira grossa e escura. A mesa de vidro estava transparente e os vasos ostentavam flores que ela nunca vira. O ar era gelado e penetrava as narinas feito lâminas na pele. Avox esperavam-nos e serviram a mesa com pratos de porcelana. Havia o cheiro de algo que Lunara imaginou ser carneiro, e só aquilo já lhe deu água na boca, imaginando o quanto poderia comer.

Corey também se impressionou com tudo aquilo, atirando-se no sofá felpudo preto. A televisão estava grudada na parede e era tão fina que Lunara imaginou quantos fios estariam lá dentro e quantas placas seriam necessárias para substituir as televisões antigas. Também notou as luzes, eram de alta tecnologia, econômicas e extremamente brilhantes. A acompanhante sorriu e lhes apresentou o apartamento. O corredor levava aos quartos, um para ela, um para Corey, outro para Lunara e para ambos os estilistas.

Ao menos teria privacidade em seu quarto. Apenas esperava que os treinos não fossem tão barulhentos ou tão entediantes quanto o Desfile ou a preparação. Lunara apenas esperava poder passar mais tempo consigo mesma para repreender seu coração e seu sangue, pois eles subiram à cabeça rápido demais.

Era imperdoável.