Saí da saleta tropeçando nos meus próprios pés.
Minha cabeça estava completamente aérea, as revelações de Zeniba dominando todos os meus pensamentos. Ao mesmo tempo que havia solucionado algumas das minhas dúvidas, centenas de outras perguntas se formavam na minha mente, enquanto eu tentava em vão organizar as novas informações que tinha.
Zeniba era uma feiticeira. Uma bruxa.
Por isso que ela sumia e aparecia nos lugares mais convenientes.
Ela e o seu amigo fantasma- que se chamava Sem Rosto- vieram de um outro mundo, um mundo onde existia criaturas mágicas, e que de acordo com ela, eu já havia visitado.
E a parte mais bizarra disso tudo, e que ela tinha dito que eu era como ela.
Uma feiticeira.

“Mas como?”- olhava para minhas próprias mãos confusa.

Eram tantas dúvidas. Sentia a velha conhecida mistura de medo e ansiedade queimando meu estômago. Só queria que tudo aquilo terminasse logo. Mas eu sentia no fundo do coração, que essa história estava longe de ter um fim. Suspirei desanimada, olhando para o elástico roxo no meu pulso.

“O que devo fazer?”-pensei

–Chihiro!- olhei em direção da voz saindo meu transe.

Eriol acenava, e só quando vi os dois tickets na mão dele, que eu me lembrei do porque de estava aqui. Senti minhas bochechas corarem. Tinha perdido na noção do tempo, esquecido completamente de que ele estava aqui me esperando.

– Oi...- murmurei sem graça- Desculpe por fazer você esperar tanto... Espero que a gente não tenha perdido a sessão e...

–Que nada!- ele olhou para seu relógio de pulso- Ainda está cedo, até para comprarmos pipoca.

“Cedo?”- pensei confusa. Tinha certeza que tinha ficado horas conversando com a Zeniba. Fora o tempo que levou para criar coragem para sair de lá. Na certa, pensava, Eriol estava tentando ser educado.

–Quanto...-pigarrei para que a voz soasse mais natural- Quando tempo eu fiquei fora?

Andamos junto com a fila, e estávamos de frente a vitrine de doces. Eriol não desviou os olhos das opções de guloseimas quando falou.

–Sei lá... Acho que nem dez minutos.- ele apontou para pipoqueira- Doce ou Salgado?

–Doce- respondi automaticamente.

Dez minutos. Tudo tinha levado dez minutos. “Como isso era possível?”, pensava. Eriol me entregou meu pacote de pipoca e eu tive de me concentrar no presente. Ri ao ve-lo tentar equilibrar a montanha de coisas que tinha comprado. Chocolates, balas, um copo gigante de refrigerante, um saquinho de batatinhas, um pacote gigante de pipoca salgada, e dois algodões –doce- coisa que alias eu nem sabia que vendiam em cinema. Eriol sempre foi guloso, costumava reclamar o tempo inteiro que tava com fome, quando saiamos para brincar depois do almoço. A balconista ficou com pena do garoto, e deu um saco de papel onde ele colocou os doces menores, mas não resolveu muita coisa.

–Chihiro, pega os ingressos no meu bolso, para ver qual é a sala.

Murmurei um okay, e comecei a vasculhar os bolsos dele. Não conseguia entender porque meninos não andavam com uma bolsa. Era muito mais prático ter tudo em um só lugar, ao invés de distribuir entre vários e fundos bolsos da calça.

–Não achei- desisti depois depois de alguns minutos.- Não lembra onde deixou?

Ele pensou um pouco, e quando estávamos quase voltando para lanchonete, e lembrou.

–Tá no bolso do casaco!

Rolei os olhos. A jaqueta dele também tinha mil bolsos. Por sorte, encontrei os dois papeis no primeiro que procurei.Já estava cansada de bancar a inspetora de aeroporto. Os ingressos estava muito amassados, e tive que me esforçar para encontrar o número.

–É a sexta sala.

Sexta...Parada...-pensei vendo tudo enturvecer ao meu redor.

“Encarava esperançosa o idoso, meio homem meio aranha a minha frente. Estávamos numa sala quase toda feita de madeira, extremamente quente, e mal iluminada. A única fonte de luz vinha de uma fornalha perto de nós. Não estava sozinha, além do senhor bigodudo, ainda tinha outras pessoas ali. Mas eu não prestava atenção, pois naquele momento intercalava meu olhar entre o homem de óculos escuros e um pequeno papel amarelado que ele me entregara. Eram quatro passagens de trem, e eram muito valiosas.

–Olha,é a sexta parada, o nome é Fundo do Pântano.- ele falou.

–Fundo do Pântano?- perguntei insegura.

–Isso mesmo, sexta parada.- ele confirmou, seu bigode balançando enfatizando cada silaba.

–Sexta parada- falei em voz alta, me esforçando para memorizar.

–Tome cuidado para não errar.....”


A voz dele foi sumindo, diminuindo ao mesmo tempo que a sala de madeira dava lugar ao escuro corredor das sala de cinema.
Tinha sido mais uma visão, mais uma daquelas cenas que apreciam do nada na minha cabeça. Estava ofegante.
A súbita mudança de cenário, fazia meu estômago embrulhar.Entreguei os bilhetes para o funcionário da sala seis, com as mãos tremulas. Para meu alívio nem Eriol nem o funcionário pareceram reparar meu estado tenso enquanto caminhávamos para as nossas cadeiras.

“Era a mesma criatura que eu vi no livro da Zeniba...- me esforcei para lembrar- “Kamaji. O nome do senhor de bigodes é Kamaji”

Minha cabeça parecia que iria explodir com o esforço, mas eu estava feliz. Era como se finalmente a fumaça que envolvia meus sonhos começasse a criar forma. Era como se eu me lembrasse.... de um velho amigo.

Sim, de um jeito bizarro, eu sentia que ele, mesmo com suas pernas de aranha e com as mãos enrugada com garras afiadas era meu amigo. E eu me vi com o coração apertado, cheio de saudades do velho Kamaji.

A tela se iluminou, e em pouco tempo as primeiras cenas do filme começaram. Na confusão, acabei nem lendo o nome do filme veríamos que no ingresso. Por entre uma espessa neblina, uma estrutura gigantesca e indefinida andava sob algo que lembrava pés de galinha mecânicos. A estranha construção continuou andando por alguns instantes, subindo perto das montanhas de uma vila de pastores.
Pulei da cadeira, incapaz de conter minha felicidade. Eu conhecia essa história, era meu livro preferido.

–O castelo animado! Falei em coro junto com o narrador.

Eriol me olhou confuso quase escondido em baixo de sua pilha de comida.

– Mas esse não era o filme que íamos ver.- ele olhou para trás, como se esperasse que fosse uma pegadinha ou algo assim.

Voltei a me sentar, pronta para protestar quando eu vi seu olhar irritado pra além das cortinas do projetor.
Era feroz, e por instante eu tive medo do garoto com os punhos cerrados ao meu lado.

– Eriol?- chamei incerta, encostando em seu braço.

Sua expressão se suavizou, e ele pegou um monte de pipoca na mão, jogando de uma só vez na boca.

– O filme que eu escolhi era mais divertido- resmungou de boca cheia.

Eu ri, e peguei um pouco da minha própria pipoca.

–Esse filme também deve ser muito bom.-comentei olhando pra tela- Foi inspirado no livro da Diana Jones, ele é fantástico e muito engraçado. Deixei de dormir três noites seguidas para acabar com a série.

Comi mais um pouco de pipoca, me impedindo de falar mais. Na verdade, eu tinha começado a ler para não dormir, e não o contrario. Na época, eu resolvi que já que não podia deixar de ter pesadelos, simplesmente não dormiria mais. Arrumei vários livros, e escondi garrafas com café e energético no quarto. Claro que a empreitada me rendeu uns bons dias internada no hospital, e um castigo de um mês. Mas apesar de tudo, descobri histórias maravilhosas como a série Castelo.

Voltei minha atenção ao filme. Era bem diferente o livro. Sophie não conversou com os chapéus, e o país parecia estar em guerra. As mudanças não me chatearam. O studio Ghibli sabia contar uma boa história, então eu só relaxei e aproveitando a beleza e a delicadeza do filme.

Até que Howl apareceu.

Sophie estava cercada pelos soldados, e ele chegou com uma desculpa esfarrapada, e colocando um dos braços firmente sob o ombro dela. Então com um aceno de mão fez com que os soldados saíssem de lá controlados por magia. Eu não sabia dizer se foi que ele dispensou os soldados, se foi os olhos azuis vívidos, ou se foi o jeito protetor e carinhoso que ele falou com a Sophie. Alguma coisa me deixou inquieta na cadeira. E foi assim durante o resto do filme. Nada me incomodava. Mesmo o Calcifer, meu personagem favorito sendo laranja e não azul , ou Marlk que na verdade era Michael e tinha 15 anos do livro. A única coisa de me inquietava era Howl com seus estranhos olhos intensos e sua voz suave. Depois de algumas cenas engraçadas, que me fizeram me lembrar o porque que esse era meu livro preferido. Howl estava deitado na cama, seus cabelos agora negros estavam espalhados pelo travesseiro. Nem mesmo prestei atenção no que Sophie disse. Meus olhos estavam grudados no rosto alvo do mago. E quando ele abriu os olhos, brilhantes como duas pedras preciosas, eu perdi o folêgo. Por um instante, não era o Howl na minha frente.

Era um outro garoto, com olhos esverdeados.

A câmera mudou para o rosto da Sophie, e eu pude respirar novamente, acompanhando o resto da história. Eu ri, gritei, roí todas minhas unhas, durante todo o filme, alternando e sentindo todas as emoções de Sophie.E quando a música final tocou, tinha tantas lágrimas caindo pelo meu rosto que parecia que tinha chovido no cinema. Eles estavam felizes, encontraram seu pequeno e particular final feliz, voando pelos céus no castelo animado. Suspirei secando o rosto com as costas da mão. Me perguntava se encontraria alguém assim.
Alma gêmea, amor verdadeiro... Víamos tanto em filmes e livros, e eu me via sentada na cadeira do cinema, invejando uma personagem fictícia.
Só poderia ser inveja, o nome do gosto amargo que estava na minha boca, apertando o meu coração no peito. Mas eu estava mentindo para mim mesma. Eu conhecia aquele vazio. O misto de sentimentos entre perda e impotência.
Saudades...
Era esse o nome desse estranha sentimento dentro de mim.
Mas como pode sentir falta de coisas que não se lembra?
Como seria possível, que eu sentisse saudade de alguém que eu não sabia o nome ou o rosto?

“Não... É só inveja, mesmo....” pensei ajeitando as dobras da minha camisa.

Eriol não falou durante todo o caminho de volta até em casa. Eu também colaborei para o silêncio. Minha mente tentava digerir a melancolia que o filme tinha me causado, e eu reagia mecanicamente, colocando o capacete e segurando em sua cintura, agindo no automático.

Já era noite alta. Ele parou a moto no meio fio, e esperou que eu descesse.

–Eu avisei que outro filme seria mais divertido.- ele comentou quando eu entreguei o capacete.

–Mas eu gostei desse. – respondi confusa.

–Fala sério, Chihiro. Você chorou o caminho todo. Provavelmente assassinaram sua história favorita, e você ficou esse tempo todo planejando as mais cruéis torturas para quem dirigiu esse filme.

Eu tive que rir. Eriol era dramático, e sempre consegui arrancar um sorriso meu.

–Realmente...-comentei rindo - Mudaram MUITA coisa do livro. Tipo MUITA MESMO. Mas nem por isso deixou de ser um versão interessante. Foi delicado, fantástico em sua própria maneira.

Ele se aproximou, encostando uma das mãos na minha bochecha. Recuei instintivamente, mas ele não se mexeu.
Delicadamente, ele secou uma das lágrimas perdidas no meu rosto com a ponta dos dedos.

–Muito melhor assim. Acho que você não faz ideia o quanto fica linda quando sorri, Chihiro.

Engoli seco, e senti meu rosto corar
Ele estava tão perto parado a minha frente, que a jaqueta aberta que ele usava encostava na minha camisa. Seus dedos desceram da minha bochecha para meu queixo, levantando-o e mantendo-o preso firmemente entre o polegar e o indicador.

Seus olhos verdes pareciam duas esmeraldas, densas e brilhantes. Não havia dúvida neles, nem um pingo de incerteza.
E como num encanto, eu me vi presa naquele olhar, incapaz de me mexer enquanto seu rosto se aproximava cada vez do meu.
Um dos seus braços desceu para minha cintura, me puxando para ainda mais perto e juntando os lábios dele nos meus.

Primeiramente, eu fiquei em choque.
Como se tivesse um alarme gritando “alerta garoto” na minha cabeça.
Nunca tinha beijado ninguém na vida. Nem de brincadeira. Eu não sabia o que fazer com as mãos, muito menos os lábios.
Devia ter ficado uns longos dois segundos parada como um estátua, até que conseguisse relaxar. A noite estava fria e Eriol era agradavelmente quente. Fechei os olhos e curti o momento. Obviamente ele sabia o que estava fazendo muito mais do que eu, então deixei que ele me guiasse. Ele pareceu estar esperando por isso, pois só então que ele me beijou de verdade. Desses beijos que a gente só vê em filmes.

Eu ainda estava meio confusa quando ele me soltou. Tinha um sorriso travesso nos lábios, e um brilho estranho no olhar.
Ele murmurou boa noite, colocou o capacete e saiu. O som do motor da moto cortando o silêncio da noite. Minha cabeça rodava, enquanto eu me virava para entrar em casa.

Meu primeiro beijo. Tinha sido com meu amigo de infância.
Subi os degraus me sentindo meio patética. Tinha passado tanto tempo tentando imaginar como seria meu primeiro beijo e tinha acontecido totalmente diferente do que tinha pensado. Não teve borboletas no estômago, ou sinos tocando com um coro de anjos.
Senti apenas um calor estranho no corpo. Quando diziam que garotos eram “quentes”, eu pensava que era apenas uma gíria gringa.
Mas de certa forma era verdade, pelo menos com Eriol. Seus lábios eram bizarramente quentes, e eu tive que tocar nos meus para ter certeza que eles não tinham se queimado. Era tão quente que parecia que tinha beijado uma fogueira humana...

Um arrepio subiu pela minha coluna, quase me derrubando da escada. Era um pensamento absurdo, mas que me fez dar meia volta, e tentar procurar inutilmente a moto do garoto na rua escura. Apertei a mão no peito, tentando inutilmente expulsar o pensamento.

“Um beijo tão quente.... quanto um beijo de um dragão.”