Quando Will se aproximou e eu mergulhei na escuridão, tudo que senti foi dor. Ele não me avisara disso. Uma dor que eu nunca tinha sentido, queimava, e algo protestava, de dentro de mim, como se não quisesse que aquilo acontecesse. Eu sabia que era minha alma em protesto.


Eu quis abrir meus olhos, mas fiquei com medo do que veria. E o medo que eu sentira por antencipação agora se intensificava naquele momento terrível. Já que não podia ver, decidi que me mover ajudaria. Mas eu não estava pensando, pois minha mente estava anestesiada. Eu agia por instinto.


Enquanto Will me dava seu beijo mortal, segurava minha nuca para que eu não escapasse. Não era de um jeito brusco, ele não me machucava, quer dizer, não fisicamente. Devia ser porque eu não resistira no momento final, agora ele me compensava, pelo menos do seu jeito.


Achei melhor também não me mexer, eu não sabia em que estado ele se encontrava e o que seria capaz de fazer agora que me tinha nas mãos. Então esperei e não fiz nada, embora a dor só aumentasse a cada momento. Engoli em seco enquanto ele devorava minha alma. Aquela dor queimava, aquele fogo me consumia por dentro. De algum jeito encontrei alguma coisa à qual me segurar, que me fez aguentar firme. Era aquele sentimento de que havia alguma coisa de boa nele que me fazia suportar toda aquela dor.


Era triste que eu nunca mais fosse ver minha família e meus amigos ou Drake. Mas aquele era meu destino e eu tinha que aceitá-lo, não podia simplesmente fugir. O destino não pode ser mudado. Ele molda nossas vidas como bem entende, e tudo que podemos fazer é lidar com isso, por pior que seja o que nos aguarda – como acontecia agora.


Parecia que nunca ia acabar. Eu já estava esgotada e sentia que os últimos laços que me ligavam ao meu corpo, como os elos de uma corrente, se soltavam. Eu ouvia um barulho, como um estalo, a cada vez que um desses elos era rompido. Eu não sabia, podia ser apenas minha imaginação, que fraca pelo que acontecia, me fazia ter alucinações. Ou não, talvez fosse verdade.


Devia estar acabando, certo? O que mais havia para tirar? Afinal minha alma não devia ser tão grande assim, se é que almas têm tamanho. E subitamente, quando eu estava completamente entregue à morte, aconteceu. Todos os elos haviam sido quebrados, e senti que ia sendo sugada do meu corpo. Não que isso não estivesse acontecendo antes, mas agora foi de uma vez, como quando você acorda assustado ao lhe jogarem água na cara. Estava feito. Will não mais me segurava, isso já não era necessário. Ele vencera.


Eu não sabia o que tinha acontecido, quer dizer, eu tinha sido engolida? Provavelmente sim, afinal o garoto tinha me devorado. Engoli em seco e foi isso que me fez acordar. Não havia mais dor. Ao abrir os olhos eu não sabia se estava cega ou se era assim mesmo, porque estava tudo escuro.


Mesmo depois de olhar pros lados nada acontecera. Era assim que eu ia ficar então, mergulhada nas trevas? Esse pensamento me fez olhar para baixo, para meu corpo. Estava lá, tudo nos devidos lugares. Vi também que estava sentada em um pedaço de chão xadrez, preto e branco. Não sabia o que aquilo significava, era bom saber que não havia só o preto. Foi ao tentar me mover que notei outra coisa.


As correntes. Havia uma em cada pulso, e depois duas grandes que formavam um X na extensão do meu corpo; elas se cruzavam. Por fim, também tinha outra no meu pescoço, dando a volta nele, mais como uma coleira. Todas estavam presas ao chão.


Fiquei com medo. O que eu havia feito de errado para acabar assim, presa? Eu não fizera tudo certo, havia ido embora com o demônio sem resistir e ele não devorara minha alma como bem entendera?


Ao me mexer, todas as correntes tilintaram, sem me machucar nem apertar ou coisa parecida. Por um momento, ironicamente pensei que fossem os elos que outrora atavam minha alma ao corpo, mas não podia ser isso. Era tudo cruel demais.


Então me veio um pensamento mais sensato; as correntes deviam representar o fim de uma vida e o início de outra, e serviam como um lembrete de que eu estava dentro de William, o que era de certo modo uma prisão.


Isso mesmo, Lyric. uma voz conhecida reverberou, como se ele estivesse usando um megafone dentro de uma caverna escura. William! O que aconteceu? tive que questionar, embora a resposta parecesse óbvia. Você sabe. Eu te devorei e agora se encontra dentro de mim – ele confirmou o que eu já sabia. Mas era estranho ver meu corpo, eu achava que ficaria como uma forma de energia ou algo assim, ou talvez um brilho, uma luz distante. Lyric, você realmente seria uma coisa parecida com o que está imaginando se sua alma tivesse sido destruída, mas você está em uma nova vida agora. Ele tinha razão. Meus sentimentos, minhas lembranças e os pensamentos, estava tudo intacto! De fato, ele cumpriu sua promessa, me deixando viva dentro de si. Obrigada, Will! Por ter cumprido o que prometeu. Você poderia ter me arrastado e me despedaçado ou coisa pior, porém me deixou viva! Sabia que tinha algo de bom em você. Eu não via seu rosto mas sabia que estava sorrindo. Eu sempre cumpro com a minha palavra, Lyric. Ei, essas correntes são pra valer? Aproveitei para perguntar. Estou presa mesmo? Assentiu. Sim. Você não vai conseguir levantar, minha pequena. Não pensou que doeria tanto, não é mesmo? – ele se referia à sua refeição. Balancei a cabeça.


De fato... eu sabia que ia ser assim, mas não contei para não te assustar ainda mais. Não deve ter sido uma surpresa muito agradável, certo? Concordei de novo. Não tinha muito o que dizer.



William


Estava acabado. Assim que terminei de me alimentar, e me afastei um pouco, o corpo de Lyric caiu para frente e eu o segurei, levantando-o nos braços. Estiquei minhas asas negras, revigorado pela nova fonte de energia que me fortalecia, enquanto olhava para o lago e a montanha naquele parque, já tocados pelo frescor da primavera.


Não havia nenhum humano em toda a extensão, mesmo que aquele fosse um lindo dia. Bem, então era hora de fazer o que minha vítima me pedira com suas últimas palavras. Subi em uma pequena elevação e abri as asas, levantando voo e segurando-a com cuidado em meu peito. Por um momento eu havia me esquecido de como era sentir o vento no rosto, balançando meus cabelos.


Fui subindo até ficar a uma altura onde nenhum humano poderia me ver. Escondido pelas nuvens, bati as asas uma vez e fui para a frente, em direção a Toronto. Em mais ou menos meia hora cheguei lá, pois não estava prestando atenção no caminho.


Desci lentamente em uma das avenidas principais, ao lado de um hotel. Escondido nas sombras, ninguém me veria, só quem eu permitisse. E só Drake Knight poderia me encontrar ali, já que eu lhe entregaria o corpo de Lyric, como ela pedira.


Não demorei para avistá-lo. Aquele maldito anjo estava em um beco escuro, o que não era um problema para mim. Estava de cabeça baixa, mas sem baixar a guarda – endireitou-se assim que me viu. Saí do esconderijo de trevas.


Ele parecia prestes a dizer alguma coisa, mas parou quando viu quem eu estava carregando. Cheguei o mais próximo que eu conseguia sem sentir aquela vontade forte de esmagá-lo contra a parede. Estendi a garota morta para ele. Limpei a garganta para acabar com aquilo o mais rápido possível.


– Como seu último pedido, ela quis que eu entregasse seu corpo para você – falei de uma vez. – E também... ela mandou dizer que te ama e sente muito. Ah, ela também quer que você diga isso pra irmã dela.


O anjo pegou Lyric de meus braços e saiu voando sem dizer nada. Controlei minha vontade de ir atrás dele e matá-lo. Não devia ser muito difícil, ele não era muito forte.


Respirei fundo. Lyric ainda não havia acordado dentro de mim. Mal sabia Drake que ela estava viva... e que seu corpo estava como um vegetal, seu coração ainda batia e seus olhos não estavam vidrados como sempre acontece com minhas presas. Ela ainda tinha uma chance.