Eu deveria ter percebido.

Mas já era tarde demais. Ela já havia percebido que eu havia entrado no lugar sagrado dela.

"Ora, ora." Escuto, e viro meu rosto em direção a ela, de olhos arregalados.

Noto que ela está usando um longo vestido cor de rosa escuro, que a deixa ainda mais bonita. Sinto meu rosto ficar cada vez mais quente e instintivamente, o escondo com as minhas mãos.

Espera, que?

O que está havendo de errado comigo?

"Olá?" A voz dela faz meu corpo congelar.

Oh, não. Ela viu tudo.

Que embaraçante!

"Ei, você está bem?" Ela pergunta, e eu engulo em seco.

Voz. Eu preciso da minha voz.

Eu afirmo com a cabeça, rosto ainda coberto pelas minhas mãos. Escuto ela dar risadas novamente e eu me agacho, ficando ainda mais embaraçado.

Pelos Deuses, o que está acontecendo comigo?

"Que fofo!" Ela exclama, e em meio ao pânico que estou sentindo, eu a olho por entre meus dedos.

Eu, agradecendo aos deuses por ter me precavido, ponho meu elmo da invisibilidade e me afasto.

~x~

Será que um dia serei capaz de derrubar

Este muro que construí ao meu redor

Com as palavras maldosas que escuto

Fico a me perguntar o por que insistirem

Em falar as mesmas palavras que eu já sei

Meus defeitos, minhas falhas, meus medos

Coisas mínimas que cortam a minha alma

Será que um dia tudo vai mudar?

Irá aparecer alguém capaz de pular o muro

E me resgatar bravamente de dentro dele?

Ou isso é apenas mais um sonho tolo meu?

Será que um dia vai aparecer alguém

Que estenderá sua mão para mim

No momento que eu cair no precipício

Ou isso é apenas mais um desejo inútil meu?

Talvez eu devesse procurar uma maneira

De quebrar esse muro com as minhas mãos

E quem sabe quando finalmente atravessá-lo

Poder ver várias mãos estendidas para mim?

Ou talvez devesse abrir minhas próprias asas

Como uma borboleta que acaba de sair do casulo

Poder voar para um lugar muito distante dele

Ou isso é apenas um sonho inútil meu?

~x~

Mas não consigo ir longe. Imediatamente estou de volta para ela, mas não porque eu quero. Eu fecho meus olhos, lutando contra a dor causada pela flecha fincada no meu ombro esquerdo. Eu sinto também uma estranha magia invadir meu corpo.

"Eu deveria imaginar que você é igual aos outros. e... ei, você está bem?" Eu escuto, notando que meu elmo havia caído de minha cabeça. "Você... me protegeu?"

Respiro fundo, ainda de olhos fechados, tateio o chão em busca de minha capa, pois preciso vendar meus olhos imediatamente. Escuto algo se rasgar e para a minha a minha surpresa, um pano com um aroma doce tampa meus olhos e eu instintivamente me afasto, tocando no pano.

"Muito obrigado." Eu escuto, seguido de passos que se aproximam de mim. "Não está doendo?"

Eu nego com a cabeça, tocando na flecha com a minha mão direita e a sentindo virar pó. Novamente tateio pela minha capa, arrancando um pedaço dela para substituir o pano que ela havia me dado.

"Uau. Eu rasguei parte do meu vestido para você usar e é assim que você me retribui?" Ela comenta, e eu me pergunto como devo estar usando um pano rosa choque no rosto. "O senhor assumiu um risco enorme. Perséfone o agradece profundamente."

Perséfone.

Deusa das ervas, flores, frutos e perfumes.

Deusa da Primavera e da Natureza.

Filha de meu irmão Zeus com minha Irmã Deméter.

"Está doendo?" Escuto, a sentindo tocar em meu ombro.

"Não." Eu e ela congelamos ao mesmo tempo ao som da minha voz. "Essa flecha não foi feita para causar ferimentos."

"Isso é verdade. Você me protegeu da flecha do amor de Eros."

A flecha de... Eros?

Eu respiro fundo, feliz pelo fato de ter fechado os olhos no momento que a flecha atingiu meu ombro e não ter causado nada que cause problemas para Lady Perséfone.

"Queira me perdoar a indelicadeza, Lady Perséfone." Digo, me curvando para ela. "Com a sua licença, eu devo ir para o meu reino."

"Seu reino?" Ela pergunta e eu engulo em seco.

"Me perdoe pela introdução tardia, Lady Perséfone. Meu nome é Hades, Deus da Morte."

"Oh." A voz de decepção dela me faz sentir uma estranha dor no meu peito, e eu com meu elmo em mãos, o coloco no rosto. "Espera!"

Mas eu decido não ficar mais ali. Eu entro na minha carruagem, que imediatamente parte para o Submundo.

Sozinho.

...

De volta ao meu palácio, eu tiro todas as minhas roupas e o pano do meu rosto. Instintivamente, eu levo o pano em direção ao meu rosto e respiro fundo, sentindo o cheiro de flores nele presente.

"Eu deveria agradecer a ela pelo pano. Mas eu não sei o que ela gostaria de ter em troca."

Além disso, há o fato de que estou sob a magia da flecha de Eros. Eu anulo a magia ao olhar para o meu reflexo nas águas do meu banho, causando um interessante paradoxo.

Afinal, o que é mais forte: O amor próprio forçado por uma magia que deu errado, ou o intenso ódio que sinto por mim mesmo?

Após o banho, decido ir descansar. Mas uma coisa é certa. Eu preciso tentar conhecer a Deusa da Primavera primeiro, antes de ter um presente adequado.

E pela primeira vez depois de tanto tempo, eu não me sinto mais entediado.

~x~

Eu não consigo tirar ela da minha cabeça.

Fico a relembrar o rosto, as risadas, o longo cabelo prateado, os olhos azulados dela...

Meu coração bate forte por ela. Sangra por ela.

E é por causa disso que eu decido visitar o Olimpo. Mas eu não posso ir como Hades. Eu precisaria ser alguém completamente diferente do entediante Hades. Alguém animado, sorridente.

O que eu não imaginava, era que um certo dia, eu teria a resposta. Mas seria da pior maneira possível.

...

O barulho de uma mulher chorando ecoa pelo Tartarus e aquilo me incomoda muito. Buscando pela alma em prantos, me direciono a uma das partes mais escuras, onde encontro uma jovem mulher aos prantos.

"Qual o problema, Mulher?" Pergunto, a fazendo me olhar com surpresa e dar um grito.

A vejo ficar apavorada, e começar a dizer coisas sem sentido. Inicialmente, eu penso em ignorar ela, mas mudo completamente de idéia quando ela fala o nome Zeus.

"Mulher. Eu sou Hades e você está no mundo dos mortos." Eu digo para ela, que empalidece com o que escuta. "Agora, gostaria que respondesse a minha pergunta. Qual é o problema?"

"Lorde Hades. Eu sou Sêmele, uma das filhas do herói Cadmo e da Deusa Harmonia. O senhor poderia escutar a minha história?" Ela pergunta e eu afirmo com a cabeça, me sentando perto dela.

Sêmele era sacerdotisa de Zeus, e em uma ocasião, quando ela abateu um touro em seu altar e depois nadou no rio Asopus para se purificar do sangue. Ela então percebeu voando sobre a cena uma águia, que a visitou várias vezes em segredo. Ela acabou se apaixonando pela águia, que dizia ser Zeus e um dia ficou grávida de repente após beber um estranho líquido que o pássaro havia lhe dado.

Então um dia aparece uma enfermeira chamada Hera, que fez amizade com Sêmele, e confidenciou que seu amante era na verdade o deus Zeus. Hera não acreditado nela e plantou sementes de dúvida na mente de Sêmele. Curiosa, Sêmele pediu a Zeus que lhe desse um desejo. Zeus, ansioso para agradar sua amada, prometeu no rio Estige conceder a ela tudo o que ela queria. Ela então exigiu que Zeus se revelasse em toda a sua glória como prova de sua divindade e embora Zeus tenha implorado para ela não pedir isso, ela persistiu e ele foi forçado pelo juramento a cumprir. Os mortais, no entanto, não podem olhar para os deuses sem incinerar, e ela pereceu, consumida por chamas acesas pelo raio que Zeus havia lhe mostrado.

Mas, a minha surpresa, eu não noto a presença do feto dentro dela. Me sentindo bastante interessado, sigo a linha que une a alma dela até o mundo terrestre, onde encontro a criança sendo entregue a irmã de Sêmele por Hermes. Mas, ao prestar um pouco mais de atenção na criança, noto que quase todos os fios a liga até a mãe. Exceto a Linha do Coração, que eu não preciso seguir para saber até onde vai.

Só há uma única resposta.

Lady Perséfone.