—Melinda? Está tudo bem? —

—Sim, está sim. Só liguei porque queria falar uma coisa com você. — me sentei na banqueta do balcão da cozinha após colocar a frigideira na pia.

—Claro, o que foi? —

—Você atende todas as idades, certo? — pressionei os lábios.

—Sim, por quê? Theo está com problemas? —

—Não. Ainda não, pelo menos. — suspirei. — Ele anda tendo pesadelos bem frequentes ultimamente e estou começando a me preocupar com a possibilidade de desenvolver um possível trauma depois disso tudo. Eu sei que pesadelos são comuns, de certa forma, mas eu só não quero que ele passe pela mesma coisa que eu passei. —

Encarei o mármore do balcão por um minuto.

—Eu ainda não falei com ele sobre, queria ter a confirmação de se você poderia atendê-lo primeiro. — pressionei os lábios.

—Claro, ficarei feliz em ajudar o Theo. — um pequeno sorriso apareceu em meus lábios. — Olhe, não estou reclamando nem nada, porque se o Theo aceitar conversar comigo farei de bom grado, mas... você sabe que hora é essa, Melinda? —

Franzi as sobrancelhas, confusa com a pergunta inusitada. Afastei o celular da orelha, encarando o visor.

04:47 am.

Voltei a aproximar o celular da orelha.

—Me desculpa, Richie. Eu realmente não me toquei no horário e nem na sua voz de sono. Desculpa. — ele soltou uma risada curta.

—Tudo bem, Melinda. Eu vou correr daqui a pouco mesmo, você só me acordou antes do despertador. Quer correr comigo? —

—Não, obrigada. Talvez uma próxima. — murmurei.

Um silêncio se fez presente.

—Não está um cedo demais para você estar acordada? Normalmente você só acordava depois das 07:00 am. — falou com aquele tom de quem sabe que estou escondendo alguma coisa.

—Normalmente, a população estava inteira e não pela metade. — respondi. — E os pesadelos do Theo hoje não deram sossêgo para ele, então não consegui dormir direito. —

—Só hoje ou você não tem dormido direito faz dias? — fiquei calada. — Você não conseguiu dormir nem 8h por dia? —

—Você sabe muito bem que eu não estou em condições de dormir 8h por dia. — fechei o punho com força, sentindo as minhas unhas perfurarem na pele.

—Eu esqueci que você só está conseguindo dormir 5h. Você tem dormido pelos menos as 5h, né? —

—Você está fazendo uma sessão por telefone? — tentei mudar de assunto.

—É o que me resta já que você se recusa a retomar as consultas. —

—Eu estou bem, Richard. Não preciso voltar com as consultas. O foco agora é o Theo, se depois que eu ter certeza que ele está bem posso pensar em voltar a flertar com você pelas consultas. — falei firme. — Quando eu falar com o papito te ligo informando o que ele decidiu. —

Desliguei o celular, largando ele no balcão e soltando um suspiro.

—Namorado? —

—Jesus, Maria e José! — pulei na banqueta com o susto e o som de vidro se partindo se fez presente, mas ainda assustada acabei ignorando. — Seja o que quer que estiver fazendo é melhor parar! Eu nunca escuto você chegando, mas que inferno. — resmunguei, voltando a me acalmar.

—Era porque você estava no telefone. — apontou para uma luminária do outro lado da cozinha. — Você estourou a lâmpada. —

—O que? —

Estiquei um pouco o tronco, vendo alguns cacos de vidro no chão. Pedaços de uma lâmpada agora estourada.

—Não fala isso para ninguém. — pedi, levantando e catando os cacos, colocando sobre o balcão da pia.

Peguei uma lâmpada nova na gaveta do armário da cozinha e troquei ela, jogando os cacos no lixo após enrolar em algum dos jornais que o Steve leu alguns dias atrás. Velhote.

—Então, namorado? — Carol voltou a questionar quando me sentei novamente na banqueta. A encarei confusa. — No telefone. Era seu namorado? —

—Ah, não. Era o Richard, meu terapeuta. Ex terapeuta já que não estou mais indo às sessões. — respondi, notando que ela usava uma calça jeans, regata preta e um par de botas preta cano médio. — São roupas da Natasha? —

—É, ela me emprestou algumas. Vou precisar comprar algumas já que vou ficar aqui até acharmos... como você o chama? Berinjela? — ela ergueu a sobrancelha, sentando do outro lado do balcão, a minha frente.

—Berinjela, beterraba, uva passa, napolithanos, desgraçado, pedaço de estrume, escroto filho da puta. Tem vários nomes carinhosos. — sorri, puxando o prato com a comida que eu preparei para mais perto.

—O que é isso? —

—X-tudão. — ela arqueou a sobrancelha. — Vai hambúrguer, bacon, queijo, presunto, ovo, mortadela, salsicha, alface, tomate, ketchup e maionese temperada, a qual eu mesma fiz. — a sobrancelha de Carol arqueou mais ainda. — É do Brasil. Ah, também coloquei frango desfiado que sobrou do almoço de ontem. —

—É isso que vocês comem no café da manhã? — perguntou, encarando os x-tudão.

—Não. Se algum deles, com exceção do Thor ou do Rocket, me verem comendo isso no café da manhã me matam. Ainda mais com uma coca cola de 2L. —

apontei para a garrafa.

—Os sete x-tudão são para você? — questionou um pouco incrédula.

—Ah, você quer um? Pode pegar. — empurrei o prato com três x-tudão para perto dela.

Carol estava um pouco incerta se deveria comer toda essa mistura que eu fiz dentro de um pão, mas por fim comeu um pedaço.

—E aí? — perguntei sorrindo em expectativa.

—Não está ruim. Achei um pouco exagerado a quantidade de ingredientes, mas está bom. O molho é ótimo também. — sorri. Ela apontou para a coca cola. — Posso? —

—Claro, pega um copo para você. — peguei um dos quatro x-tudão que tinha no meu prato, dando uma enorme mordida.

—Posso fazer uma pergunta? — assenti, pegando o corpão cheio de refrigerante e bebendo o líquido. — O que aconteceu com o Coulson? Vocês não citaram ele entre os que viraram pó. —

O refrigerante entalou na minha garganta por um tempo. Precisei de alguns segundos e uma respirada bem fundo para poder responder Carol.

—O Coulson ele... ele morreu. Alguns dias antes do Thanos. — suas sobrancelhas franziram.

—Morreu? Como? —

Desviei o olhar para a luminária atrás de Carol a qual tinha trocado a lâmpada que estourei sem querer com meus poderes. A lâmpada piscava e eu sabia que era por minha causa.

Respirei fundo, querendo evitar que acontecesse a mesma coisa que aconteceu na casa de Reginna quando descobri a verdade sobre o Pinguim.

—Eu... eu não quero falar sobre isso, Carol. Foi mal. Depois pergunta ao Steve ou a Nat, ou a qualquer outra pessoa. — baixei o olhar, encarando meus x-tudão. — Qualquer pessoa, menos eu. Por favor. —

—Desculpe, não quis... — a interrompi.

—Tudo bem, é só que... — não consegui falar.

—Vocês eram próximos? —

—O Pinguim cuidou de mim desde criança sem que eu tivesse ideia... vinha me ajudando desde que ganhei meus poderes. Fez de tudo para que eu mudasse meu nome para não ser associada a garotinha que sobreviveu da explosão, colocou um agente para me ajudar com meus poderes e ele acabou se tornando meu padastro, e logo ele e minha mãe tiveram o Will, meu irmão caçula. — sorri, brincando com o prato. — Me ajudou no velório da minha avó, quando me tornei uma Vingadora... mesmo sendo diretor da SHIELD dava o máximo para comparecer em alguns momentos importantes para mim. O Coulson me ajudou quando eu estava me culpando pela minha outra avó ter tentado matar a mim e aos Vingadores, ajudou o Tyler a se tornar um agente excelente. — suspirei, erguendo o olhar para Carol que tinha deixado o mega sanduíche de lado para me ouvir com atenção. — Assim como o Bruce, eu o considerava meio que um pai. E eu jurava que ele tinha virado pó, por isso... quando eu soube que ele tinha morrido... —

—Você se retraiu, preferiu ficar sozinha, vivendo o luto do seu jeito. — completou, fazendo-me assentir.

—Eu fugi, na verdade. — confessei. — Entrei no carro e dirigi sem saber ao certo para onde estava indo, não avisei a ninguém. Fui parar em Charlottesville e só parei porque a gasolina estava acabando. — respirei fundo, voltando a pegar o x-tudão que estava comendo. — Eu tenho o péssimo hábito de fugir quando perco alguém. —

—E pelo pouco que você me contou é compreensível. Você perdeu muita gente. —

—É, mas não se pode chorar pelo leite derramado, né? — forcei um sorriso. — Agora come, Danvers, se não eu vou comer os seus. —

—Teria que tirar eles de mim a força. — falou sorrindo, pegando o mega sanduíche.

—Eu não dispenso um desafio, fique sabendo disso. —

***

Carol folheava meu caderno de desenhos fazia alguns minutos. Tínhamos começado uma conversa sobre hobbies, filmes favoritos, cantor, banda e outras coisas. A Capitã acabou ficando confusa com a maioria das coisas que falei e prometi que se tivéssemos um tempo livre iria apresentar a cultura pop a ela, principalmente desenhos e filmes.

Quando comentei sobre gostar de desenhar, ela pediu para ver alguns desenhos e fui pegar o caderno que ficou no laboratório do Bruce. E até agora só chuva de elogios.

—Você desenha muito bem, Melinda. E os desenhos de pessoas, são mais perfeitos ainda. Você consegue desenhar bem as expressões dela. — virou o caderno, mostrando um desenho da Nat. — Essa sobrancelha dela arqueada? Igualzinha. —

Sorri, me aproximando mais para ver meus próprios desenhos.

—Obrigada, Carol. Esse daí foi o Steve quem fez, ele também desenha. — falei, apontando para um desenho do meu rosto.

—Também são muitos bons. Quem é essa? —

—Wanda, ela também é conhecida como Feiticeira Escarlate. —

—E esses negócios vermelho nas mãos dela? —

—Ela tem poderes, consegue manipular as coisas com a mente e outras coisas fodas. Quando os usa, feixes vermelhos aparecem em suas mãos. — expliquei. — Esse é o Sam, o Falcão. Ele é ótimo em combate corpo a corpo e tem um traje com asas de fibra de carbono. São incríveis. Esse é o Bucky. Até uns anos era chamado de Soldado Invernal, agora é Lobo Branco. A história dele é bem complicada, na verdade. —

Conforme Carol ia passando os desenhos, eu ia falando um pouco sobre a pessoa. Falei do Tony, T'Challa, Shuri, Okoye, Theo, Adam, Chris, Will, meus pais.

—E esse? Não está finalizado. —

—Eu estava desenhando o Tyler. — sorri. — Ele amava ser meu modelo de desenhos. —

—Quem é Tyler? — me encarou.

—Meu melhor amigo. Nos conhecemos quando eu tinha 7, 8 anos, e desde então não nós desgrudávamos. Esteve comigo nos piores momentos e... é o cara por quem sou apaixonada desde os 13 e ele também sente a mesma coisa por mim embora não teve tempo de dizer. —

—Como assim? Todos esses anos e ele não disse nada? —

—Lembra daquele rolo do Tratado que te contei? Que uma parte dos Vingadores teve que passar dois anos fugindo? — assentiu.— Eu era uma desses fugitivos e o Tyler já estava trabalhando como agente da SHIELD e a SHIELD estava enfrentando seus próprios problemas. Não nos encontramos, por escolha minha na verdade, não podia envolver ele nos meus rolos. Acabou que nos encontramos algumas horas antes do Thanos chegar e eu decidi falar para ele a verdade. Tyler do jeito que é, disse que só ia me contar quando eu voltasse. E agora... —

—Ele só vai poder contar quando trouxermos todos de volta. — assenti.

—Exatamente, gata. — sorri, levantando. — Eu acho que vou correr. —

—O que? Agora? Assim do nada? —

—É, eu preciso queimar as calorias dos cinco x-tudão que comi junto com 1L de coca cola. — enrolei, me preparando para começar a correr.

—Melinda? — girei nos calcanhares. — Theo acordou. Está tomando banho e disse que está com fome. —

—Acordou agora? —

—Faz alguns minutos, estávamos jogando conversa fora. — Natasha respondeu. — Prepara algo para o pirralho comer, vou tomar um banho. —

—Agora mesmo, mamãe. —

—Você não ia correr? — Carol falou, fazendo-me virar na direção dela rapidamente.

—Shh! Carol, shh! —

—Você ia correr? Você não corre desde de... sei lá, dois meses atrás? — Nat cruzou os braços. — Aconteceu alguma coisa? —

—O que? Você está morrendo de fome? Não se preocupe, pequeno, já estou levando seu comer. — gritei, olhando para um ponto qualquer atrás de Romanoff. — Desculpem, meninas, o dever de tia me chama. —

Natasha arqueou a sobrancelha.

—Acha mesmo que vou cair nessa? —

—Você não ia tomar banho? Devia mesmo, estou começando a sentir um odor daqui. — torci o nariz, passando por ela até a cozinha.

—Não pense que vai fugir de uma conversa, Melinda. —

—O que? Não estou conseguindo te ouvir. Está muito longe. — aumentei a voz, ouvindo ela respirar fundo e ir em direção ao quarto dela.

***

—Estava bom? — perguntei, sorrindo.

—Sim, tia, como qualquer comida que você faz. —

—Mentira. Sou péssima fazendo bolo. — comecei a juntar as coisas do café de Theo dentro da bandeja.

—Eles só ficam um pouquinho duro, mas dá para comer. — sorriu.

—Que fofo você levantando minha autoestima culinária. — apertei suas bochechas. — Queria conversar com você, pequeno. — deixei a bandeja em cima do criado mudo, me aproximando dele.

—Eu fiz alguma coisa que você não gostou, tia? —

—Não, papito. É só que... estou preocupada. — respirei fundo. — Seu pai já contou sobre mim? Sobre como eu ganhei meus poderes e tudo que aconteceu depois disso? —

—Só quando eu perguntei do pai dele, o vovô Richard. Disse que ele morreu quando você ganhou seus poderes, mas não falou muita coisa. — respondeu.

—Certo. Eu vou te contar tudo, está bem? —

—Tia, o papai disse que esse assunto não era fácil para você. — sorri, segurando sua mão. — Não precisa falar nada. Você é minha tia, eu amo você e confio em você. —

—Eu sei, pequeno. E faço das suas palavras as minhas, mas você merece saber sobre tudo para entender o porquê da proposta que farei depois. Ok? —

Theo ficou um pouco confuso, mas assentiu no final. Então respirei fundo, começando a contar sobre tudo que aconteceu comigo e com meu pai. Ele ouviu tudo com atenção. Fez algumas perguntas quando ficou confuso com alguns detalhes, mas no final consegui falar tudo, explicar tudo.

—Você se culpa por tudo isso, tia? Por quê? — ele questionou, levemente confuso.

—Desde criança, desde aquela explosão... eu sempre me culpei por tudo que aconteceu depois. Até se chovia num dia ensolarado e a chuva estragava os planos do Adam ou dos meus pais, eu achava que era minha culpa. — falei, encarando o lençol sendo torcido entre minhas mãos. —Eu fiquei traumatizada, papito. Por causa de tudo que passei, por ter perdido meu pai, por saber que se eu não tivesse entrado naquela sala talvez ele estivesse vivo. —

—Mas você ainda se culpa por isso, tia? —

—Um pouco. Sabe o que me ajudou? Conversar com alguém. — sorri.

—Com o tio Tyler? —

—Com ele também. O Tyler me ajudou bastante, mas eu estava falando de ajuda profissional. Um terapeuta. — Theo franziu as sobrancelhas. — Um terapeuta é alguém com que a gente conversa, fala sobre o que estamos passando, nossos problemas, e ele nos escuta e nos ajuda a superar traumas e medos. —

—Tio Richie é um desses daí, não é? O papai disse que ele era seu médico. — indagou.

—Sim, ele era meu terapeuta. — olhei Theo nos olhos. — Eu estava falando com ele e gostaríamos de saber se você não queria conversar com ele sobre seus pesadelos. —

—Por quê? Vocês acham que estou com problemas, tia? —

—Não, meu pequeno. É só que... tudo que passamos nessa última semana foi demais para todos nós, inclusive para você. E eu... eu não quero que você passe pela mesma coisa que eu passei quando criança, entende? Quero que, caso você aceite, óbvio, tenha um bom terapeuta, algo que não tive quando criança. — segurei suas mãozinhas. — Se eu tivesse um terapeuta como o Richie desde a explosão, eu não seria essa louca, acredite. —

—Você não é louca, tia. — arqueei a sobrancelha. — Só um pouquinho, mas é uma loucura legal. — sorriu, mas logo desmanchou o sorriso. — Não quero ter que tomar remédio, tia Mel. —

—E eu tenho 99,9% de certeza de que você não irá precisar tomar nenhum tipo de medicamento. Remédios são em casos mais graves e você apenas vai conversar com ele sobre como está se sentindo para evitar que desenvolva algum trauma com o passar do tempo. —

—Você promete que é com o tio Richie, né? — assenti. — E você vai estar lá comigo? —

—Eu posso ir até o consultório dele com você, mas não posso ouvir a conversa de vocês. É algo pessoal demais, um sigilo entre paciente e terapeuta. —

Theo ficou em silêncio por alguns segundos, no entanto ergueu a cabeça com um olhar firme.

—Tudo bem. Se você for comigo até o consultório e eu não precisar tomar remédios, eu converso com o tio Richie. — sorri.

—Certeza? — ele assentiu. — Vou falar com ele depois. Agora o que acha de assistirmos Star Wars, hum? —

—Só se eu vestir meu pijama do Mestre Yoda e você o seu do Darth Vader. —

—Quem se vestir primeiro fica com o último pedaço de pizza. — falei, observando ele sair da cama e correr para o quarto dele.