Era o aniversário de Courfeyrac e em uma quinta-feira a noite, os Amigos dos ABC se viam no meio de um baile dado pela família do amigo para comemorar seus 21 anos, nada mais natural considerando seu comportamento vivo e expansivo.

Adentrando o salão da casa dos pais de Courfeyrac, Enjolras esforçava-se para disfarçar todo seu desinteresse em relação ao baile que ocorria ao seu redor, o que não seria assim tão fácil, com toda aquela agitação, todo aquele barulho e tantas... Pessoas.

Enjolras sempre soube que se havia uma palavra que não serviria para descrevê-lo, essa seria “sociável” era perfeita para Courfeyrac, ou Combeferre e até mesmo para Grantaire, mas com certeza nunca para ele. Não que odiasse pessoas, pelo contrário, talvez fosse um dos maiores defensores do povo que se poderia encontrar, contudo não tinha muita inclinação e menos ainda disposição para manter relações além do necessário ou travar novos conhecimentos além de seu próprio circulo de amizades.

Olhou ao redor a procura de Courfeyrac que ainda não tinha descido. Era incrível, ou melhor, inacreditável a falta de pontualidade de seu exagerado amigo, até mesmo uma noiva no dia de seu casamento seria mais rápida para se arrumar! Entretanto, tranquilizou-se ao ver Combeferre, Jehan e seus outros amigos sorrindo-lhe e acenando discretamente de uma mesa detrás de uma enorme pilastra para mostrar sua localização ao passo que Grantaire com a mesma intenção e em ar de brincadeira balançava vivamente os braços para o alto em alguns momentos chegando assoviar e agitar seu guardanapo como se fosse uma bandeira em uma tentativa de sinalização, Enjolras deu graças aos céus que todos eles já haviam chegado e que poderia sentar-se ali sem precisar ser apresentado a outras pessoas sozinho, estando com eles, toda aquela situação poderia ser ao menos suportável e já se daria por demais satisfeito se essa noite terminasse sem que Bahorel arrumasse confusão com qualquer um que o olhasse torto, ou Grantaire rindo como uma criança, bebendo até desmaiar e tendo que sair carregado como geralmente acontecia quando iam a qualquer lugar onde tinha bebida grátis, essa ultima possibilidade, aliás, não estava muito longe de acontecer, já que em menos de cinco minutos que Enjolras havia chegado, Grantaire já estava em sua terceira taça de vinho e sonhando com a feliz entrada de um pouco de wiskey em sua terrível onde mesa nada chegava, que por culpa do destino, ou pior de Marius e Bossuet que chegaram cedo e ainda assim conseguiram escolher a pior de todas mesas.

—Não sei como não precisei de um mapa para achar vocês aqui. –Enjolras puxava uma cadeira tentando, em vão, se ajeitar entre Combeferre e Feuilly–Francamente! De Quem foi essa ideia tão estúpida?

Todos os olhares voltaram-se imediatamente para Marius.

— Ah, por favor! Vocês vão fazer isso quantas vezes? –replicou Marius, irritado-Além disso, Bossuet concordou, culpem ele também.- Marius agora emburrava-se e apontava para o amigo fazendo birra.

—Foi você quem disse para pegarmos uma mesa no canto como fazemos no Musain- resmungou Bossuet impaciente e jogando novamente a culpa em cima de Marius.-E ainda há pouco ninguém estava mais reclamando, foi só o Enjolras chegar que vocês já começaram?

Então a culpa é minha agora? Eu posso ir embora, não vai ser sacrifício nenhum. – Enjolras fez menção de ser levantar, porém o espaço entre a cadeira e a parede era tão absurdamente pequeno, que preferiu continuar onde estava.

—Vocês querem parar? –interveio Combeferre, tentando manter a paciência- Precisa mesmo de tanto drama por um probleminha à toa? A mesa é terrível, é verdade, a culpa é de Marius e Bossuet, isso também é verdade, mas deveriam parar de se queixar e tirar algo bom disso, ao invés de apenas discutirem por tão pouca coisa, ainda assim há pouco estávamos nos divertindo, há tantas outras coisas e tantas pessoas aqui para se observar há tanto para se ver. Vejam como a decoração está bonita, apreciem a música! Vocês se esquecem por que estão aqui? Pelo Courf, lembraram-se dele agora? Então pronto, parem com essas caras amarradas e sejam mais flexíveis, por favor.–Combeferre finalmente respirou aliviado.

Como de costume, Combeferre estava certo, na realidade Combeferre estava sempre certo e embora não fosse tão agradável ouvir que estavam se comportando como idiotas, tinham que admitir que realmente eles se portaram como idiotas. Tudo se tornava mais confortável quando vindo de Combeferre, toda a sua sabedoria e eloquência, seu jeito benevolente e sua franqueza de caráter o tornavam digno da estima e admiração de seus companheiros.

Uma breve pausa reflexiva se seguiu por uns instantes e Enjolras, ainda com a pouca mobilidade que seu remoto espaço lhe proporcionava, esticava o pescoço em uma nova tentava de localizar Courfeyrac, enquanto Joly e Bossuet procuravam incansavelmente alguma garota que pudessem tirar para dançar.

Embora realmente tivesse muitas moças pelo salão, Enjolras permanecia indiferente, até mesmo na verdade estava muito pouco disposto a aprová-las, eram bonitas de fato e não lhes faltavam elegância e provavelmente nem a capacidade de serem agradáveis quando queriam, mas eram frívolas, arrogantes e presunçosas. Contudo talvez, a maior dificuldade estaria em definir aquela jovem de 18 anos que acabava de sentar-se pela quinta vez e em que Grantaire havia encontrado uma ocupação em observar. Mas que criatura inconstante! Em tão curto espaço de tempo, ela já havia: sentado em diferentes cadeiras, se levantado novamente, conversado com um dos convidados e logo depois lhe virado as costas e agora, Enjolras a surpreendeu fazendo caretas: imitava as outras jovens, fazia biquinho, caras de surpresa, suspirava, arregalava os olhos, levava as mãos ao rosto, fazia encenações de cumprimentos e reverências tudo de forma propositalmente exagerada e caricata, algumas vezes debochada e impertinente outras engraçada e viva e ao perceber-se observada, não pareceu sequer intimidar-se, pelo contrário mudara o procedimento e para pior, tornando Enjolras a nova vitima das suas caricatas e exageradas imitações. O loiro não saberia dizer precisamente quem ou que era ela, mas a achou imprudente, mimada e talvez até mesmo desagradável. Grantaire pelo contrário, ria histericamente, batendo na mesa e acidentalmente derramando vinho para todos os lados.

Feuilly fora o primeiro a quebrar o silêncio avisando a Joly que havia uma folha caída dentro de seu copo, provavelmente pertencia ao arranjo de flores que estava sobre mesa, estava, porque Jehan Prouvaire já entretia-se em fazer uma coroa com elas. E agora Joly começava a tremer e soluçar alegando que iria morrer por contaminação se houvessem larvas naquela folha e que talvez a essa altura já estivesse hospedando um parasita, Bossuet consolava seu melhor amigo, Combeferre tentava explicar que isso seria praticamente impossívele o uso da palavra ”praticamente”, como seria de se esperar não tranquilizava em nada o doente imaginário, que já começava a procurar sinais da tal contaminação. Enjolras respirou fundo, agoniado e colocando o rosto entre as mãos, desejando estar em casa ou ao menos no Musain, lamentando o fato de que seria uma longa noite, porque se em apenas trinta minutos que estava ali, as coisas já chegavam a tal ponto, preferia não imaginar o que ainda poderia acontecer.

—Será que vocês estão competindo para ver quem se expõe mais ao ridículo?-indagou Enjolras retoricamente já sem paciência, contudo obteve uma resposta inesperada.

—Ei! Posso participar também? Sou bom nisso!-Courfeyrac finalmente aparecera com um ar brincalhão, um sorriso alegre e uma enorme animação na voz, fazendo com todos também sorrissem ao vê-lo e até mesmo fazendo Joly esquecer-se de nova doença fatal. -Mas francamente, como vieram parar aqui? E De que Joly está morrendo agora? -indagou tentando ajeitar-se no espaço apertado.

Novamente os olhares voltam-se para Marius.

— Então vão mesmo fazer isso toda vez?- perguntou Marius incrédulo.

—Não sabem o quanto procurei vocês. Não estavam se escondendo de mim, estavam?- Courfeyrac fez beicinho e uma voz manhosa enquanto mexia na coroa de flores que Jehan pôs na cabeça, fazendo o poeta corar.

Após convencerem Joly de que ele não estava em estado terminal, nem mesmo estava doente, Courfeyrac insistiu para que ao menos se mudassem para a mesa onde estavam seus parentes, assim ficariam todos próximos, isso resultou nos protestos teimosos de Enjolras, que no fim acabou cedendo.

Os pais de Courfeyrac demonstraram grande prazer em recebê-los, o que fez Enjolras se sentir mal pela teimosia anterior, ainda assim, mal teve tempo de arrepender-se porque entre os gentis anfitriões, estava a mesma criatura descompensada de ainda há pouco, agora já sentada em outro lugar diferente do que estava antes.

O loiro sentiu toda a cor fugir de se rosto ao vê-la o encarado com aquele mesmo ar sarcástico que tanto o havia irritado antes, não saberia dizer se maior era sua surpresa ou o seu desgosto quando Courfeyrac a apresentou como sua mais querida prima, mas chegou a conclusão que o constrangimento estava ganhando de disparada, visto que momentos antes havia indagado insistentemente a Courfeyrac através, de uma detalhada descrição (para piorar tudo por sinal) se conhecia a impertinente figura e ele tinha sido tão dissimulado a ponto de negar! Sua ultima esperança era que realmente o amigo não tivesse percebido que a querida prima era o alvo de toda indignação da qual não parava de se queixar desde que fora a grande vitima do comportamento debochado dela. Em vão, porque olhou para ela e ambos rindo bateram as mãos.

A intenção de Courfeyrac era provavelmente constranger a ambos, mas produziu o efeito desejado apenas em Enjolras que permanecia branco, mudo e imóvel como uma estátua. Ela pelo contrário ria, totalmente descomposta, a ponto de não conseguir se levantar, deixando seus tios confusos sobre a origem daquele ridículo espetáculo.

—Catherine! Não é assim que se comporta uma dama. Tenha modos!- sua tia chamou-lhe atenção.

—Ah, minha tia, se quer tanto uma dama, vá procurá-la onde a possa encontrar. Está cheio delas por aí, é só dar uma volta pelo salão e vai achá-las aos montes, posso lhe garantir. Quanto a mim, agirei da maneira achar conveniente.- disse em tom de irreverência levantando-se e beijando o rosto da mãe de Courfeyrac que revirou os olhos com uma ar de complacência como quem diz “ O que se pode fazer ?” e agora, a garota voltando-se para Enjolras, desculpou-se sinceramente por todo incomodo que lhe causou anteriormente fazendo com que ele abandoasse a ideia de ir embora.

Embora tivesse uma boa pronuncia do francês, o sotaque inglês era notável sempre que ela falava algo e sua voz, era de um tom grave porém suave, não era muito alta, pelo contrário, ainda com os sapatos de salto e esticando-se em seu vestido azul celeste, ela não chegava a altura dos amis, talvez sem os saltos não chegasse a 1,60m e isso talvez a tornasse até “engraçadinha” para eles. Tinha um rosto bonito de fato, não era do tipo que atrairia todas atenções, não era uma beleza clássica, contudo ainda poderia se dizer que era bonita, era uma garota pálida, de cabelos e olhos negros, esses últimos aliás, grandes e expressivos, um sorriso até mesmo gentil, embora algumas vezes tenha se mostrado sagaz e irônico, principalmente quando era dirigido ao tão indigesto rapaz loiro a sua frente.

Enjolras pretendia tratá-la apenas com seriedade e estudo, tanto para não desgostar a família do aniversariante, como para também não sofrer novamente as terríveis impertinências que a via praticar com outros a todo instante.

Ela, por sua vez, não lhe demonstrou nenhuma aversão, pelo contrário, seu comportamento mostrava-se ao máximo receptivo e gentil com todos e a recíproca era verdadeira, prometeu dançar com Joly e Bossuet, compartilhava com Jehan o interesse pela idade média e renascença, empolgou-se completamente ao conversar com Combeferre sobre política e filosofia e quando Courfeyrac apresentou Marius como o amigo que morava com ele, ela mostrou verdadeira felicidade, abraçando ambos e dando-lhes os parabéns, e dizendo-lhes que sabia que Courf iria encontrar a pessoa certa, fazendo Marius engasgar com a bebida e deixando até mesmo o desinibido Courfeyrac corar de vergonha com o engano dela.

Oh!- ela disse mordendo o lábio inferior com uma expressão constrangida logo em seguida abaixando a cabeça- Eu disse uma coisa muito idiota, não foi?.

—Fique tranquila, faço isso o tempo todo. Formaríamos um belo par, mademoiselle, temos muito em comum- Grantaire falou com um ar brincalhão de galanteio piscando-lhe exageradamente e os dois riram. Não demorou muito para que ambos começassem um animado dueto de piadinhas enquanto compartilhavam mais uma garrafa de vinho branco.

Era Catherine Higgins, uma estranha mistura de inconstâncias: dotada de uma inteligência viva, um humor sarcástico, altivez e caprichos, ao mesmo tempo possuía um coração sensível e gentil, ardente em excesso nas próprias afeições, poderia dizer -se que era uma alma cheia de mistérios.

Uma animada conversa paralela se seguia e Courfeyrac já inquieto batia os braços ao lado do corpo reclamando que ninguém ia dançar, E como nenhum deles o ouvia, de um tapa na mesa fazendo com que todos os olhares se voltassem para ele em silêncio , restando apenas o som da musica do salão.

— Bem melhor- respondeu orgulhoso de seu escandaloso gesto- Bom, vocês sabem que eu adoro ver as carinhas lindas de todos vocês se entreolhando-disse com impaciência- MAS SE FOSSE PARA FICAREM TODOS SENTADOS E COMENDO EU DARIA UM PICNIC E NÃO UM BAILE!-gritou eufórico.

—Taire, dança comigo?-Catherine perguntou espontaneamente estendendo a mão ao moreno ao seu lado que fixou lhe seu olhos cor de safira, com um olhar incrédulo e admirado.

—E-eu ?-Grantaire gaguejou apreensivo embora não pudesse deixar de sorrir.

Uhum-ela disse com naturalidade enquanto balançava a cabeça afirmativamente.

Grantaire sorriu tentando levantar-se, já havia bebido demais, e ainda assim aceitou.

Catherine puxava Grantaire pela mão, que ia rindo e tropeçando, algumas vezes quase ia ao chão, ela o ajudava a levantar e ambos riam com cumplicidade.

Quando os dois e Courfeyrac já estavam afastados, Enjolras balançou a cabeça em reprovação:

—Só eu estou achando que essa amizade vai ser algo lamentável?

—Por que acha isso? Eu a achei uma gracinha e gostei muito dela–disse Jehan docemente.

—Você não conta, Jehan, você tem uma tendência a gostar das pessoas em geral. Nuca vê defeito em ninguém, todos são bons aos seus olhos. –respondeu Enjolras.

—Só não gosto de ser precipitado ao criticar as pessoas, mas sempre digo o que penso.

—Sabemos disso –disse Combeferre com brandura – Mas sabemos também que sua candura não lhe permite ver mal nas pessoas, meu amigo. Mas querem saber o que acho? Na verdade a achei muito agradável, tem suas peculiaridades, é verdade, mas é muito mais interessante assim não acham? E embora ela não precise disso para nada, ao menos tem minha total aprovação. Mas francamente Enjolras, toda essa picuinha é apenas pela de brincadeira de horas antes?

Vocês não veem? –replicou Enjolras indignado– Eles aplaudem tudo que o outro faz, levam tudo na brincadeira. Ele mal está conseguindo andar, e ela olha para ele e o chama para dançar. Não, Grantraire já é tremendamente impossível sozinho, e agora se derrete por um rostinho bonito.

—Ao menos ela lhe deu um apelido melhor do que “Grant”, como nós fazemos-riu Marius–“Taire”, soa bem melhor assim, não?

—Acho que Enjolras está com ciúmes-debochou Bahorel­–Agora resta saber se é apenas do amigo ou... .

—Da garota–completou Joly.

Falando isso, levantou-se com um sorriso irônico, seguido pelos amigos indo em direção a Courfeyrac que os chamava para o centro do salão. Restando apenas um Enjolras furioso já a caminho da porta, afinal achava que ninguém daria muita importância mesmo.

(...)

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.