Wesen Para Matar

Riscos iminentes


− Chegamos.

Eu sei disso, idiota! O que você quer?

− Perguntar com quem fica o dinheiro. – Scheila cortou.

Ah! Deixem ele muito bem guardado aí. Ninguém mexe nas bolsas; vou sair e procurar umas casinhas pro Mikah.

− Mikah... É estranho chamar ele assim. Quando pensou nisso? O moleque tá acostumado com Miqui.

Miqui é infantil. Mikah é mais bonito. Mas enfim. Acho que hoje vou já pegar uma parte.

− E vocês já começaram? – A castanha sentou-se no banco, colocando o celular no viva-voz e soltando o cabelo. Naomi estava mexendo uma tintura para cabelos no potinho.

− Porque eu quis. Mas não se preocupe, não foi nada de mais, nem deveria ser considerado começo.

− Vamos começar ainda, então? – Naomi perguntou, delicada.

− Eu estou no viva-voz? – A líder perguntou, enfurecida, e desligou.

− Dramática – Scheila colocou os protetores nas orelhas.

− Não se preocupe, é sempre assim. Você sabe que vai dar trabalho deixar poucas mechas no seu tom natural, não sabe?

− Que seja.

*Alicia*

Eu estava completamente confusa. É tudo o que eu sabia.

Porque a última coisa que eu esperava é que alguém seguisse o meu exemplo, ou melhor, o nosso exemplo, lá no asilo. Nós tínhamos sido perseguidas; quase repudiadas. É de se esperar que a Verrat fosse fazer algo, uma coisinha que fosse, pra evitar isso de novo. Sua terapia de tratar a gente como rico não bastaria mais.

E então eu encontro não só um Mehinstinkte, mas sim o Mehinstinkte que, muito provavelmente, salvou minha vida. O híbrido bonito, que foi gentil comigo, que me levou comida quando eu estava de cama, que mostrou seus olhos em woge pra mim e que me disse seu nome sem hesitar, sendo que eu nunca tinha falado com ele.

Continuei andando, já razoavelmente perto de casa. Eu não queria pensar naquilo, mas ele não saia da minha cabeça: seu rosto charmoso, o cabelo repicado, cujo estilo eu sou muito fã, os olhos claros, e então, com uma piscada, coloridos. Laranja e verde. Um laranja bem neon, e um verde que oscilava entre o brilhante e a cor da folha na primavera.

Eu tinha mostrado os meus pra ele também. Nós nos lembrávamos do outro. Aquilo bastava. Só aquilo já era o suficiente.

Eu também tinha sentido meu coração bater um pouco mais rápido; acelerado com o choque de vê-lo novamente. Lembrar-me dele fez meu estômago retorcer como se tivessem espetado um garfo e girado até cansarem.

Ok, eu estava bem abalada. Precisava de um bom banho frio.

Banho...

O que está acontecendo comigo? Por que estou tão inquieta? E por que até nessas horas aparece o capitão?

Pronto. Só de pensar no nobre, senti-me à beira de um colapso nervoso. Encostei-me no muro e dei um tapa bem forte no meu rosto, do tipo que ficaria marcado. O fogo da minha palma fez meu rosto arder. Sentindo-me um pouco mais calma pela válvula de escape da violência, dei mais um. Soquei o muro quatro vezes, e já sentia-me melhor. Fiquei até um pouco surpresa; nunca pensei que eu fosse do tipo que melhorava ao sentir dor.

Vai ver não é a dor, e sim a força, a adrenalina gasta no ato da pancada. Preciso espancar alguém, meu santo. Vou falar com o Nick.

Mais controlada, voltei ao meu trajeto, andando até mais rápido. O caminho passou voando, e logo eu já estava perto da casa de Emily.

Mas o carro prata não era de Emily.

Estranhei. Era um compacto bonitinho da Renault; provavelmente alugado. Franzi a testa; eu não fazia muitas ideias de quem poderia ser. Negociantes? A garota já estava investindo legal na empresa então, mas o testamento dela...

Ignorei o carro e entrei em casa normalmente. Antes de qualquer coisa, analisei-me na água parada da fonte. Marcas vermelhas de ambos os lados do rosto, mãos com juntas também coradas, fora isso e um pouco do cabelo zoado, eu estava bem. Molhei a cabeça e entrei.

Bárbara estava deitada no sofá, uma das pernas apoiando a outra, olhando pra cima. Um segundo depois de eu entrar, ela me olhou.

− Ally! – Barbie pulou do sofá com seu jeito fofo. – Tudo bem? Tá mais tranqui... – Ela se aproximou. – Você levou dois tapas?

− Não se preocupe, não foi de ninguém. − Abracei-a. – Enfim...

− Ah, quanto as suas “exigências”, eu e Emy conseguimos nos dar bem com seu irmão.

− Era isso que eu ia perguntar – Suspirei de alívio. Acabou a guerra, weeeh! – De quem é o carro na frente da casa?

− Era isso que eu também ia te falar. É da meia-irmã da Emily.

− Quando foi que ela chegou?

− Hoje. – Bárbara apontou pra uma porta que ficava na parede que sustentava a escada. – Elas estão ali, e eu não ouço um pio. Você é a que tem a melhor audição; tenta lá.

Andei até a porta e encostei, devagar, um ouvido nela. Concentrei-me ao máximo, mas não captava nenhum ruído. Até fiz a woge, mas nada.

− Isolamento acústico – Reclamei. – E dos bons. Acho que nem se elas gritarem aí dentro vou conseguir escutá-las. E minha audição não é a melhor, é?

− É sim e você sabe disso. – Barbie olhou indignada para a porta. – Por que precisam de isolamento acústico?

− Ninguém de fora conseguiria escutar nada... Talvez pra evitar que informações que deviam ficar apenas na empresa vazassem. Coisa de traidor. – Passei uma mão no rosto, sentindo-me ser esgotada a cada segundo. – Acho que vou tomar um banho.

− Alicia, você parece muito abalada. O que aconteceu?

Fiquei quieta. Eu já estava escondendo tantas coisas delas; a história de supostamente estar atraída pelo capitão, o que, considerando nosso histórico de sinceridade, já era muito. Agora, eu tinha mais um detalhe a adicionar: o cara lindo que me tirou do rochedo quando eu achava que ia morrer estava ali, um pouco mais lindo e ainda se lembrava de mim.

− Verrat. – Falei simplesmente e corri escadas acima, sem deixar espaço para perguntas.

*

Deixei a água limpa; sem nenhum luxo, eu poderia respirar. Eu poderia jogar coisinhas na água depois.

Mergulhei na água pura e me transformei, recuperando o fôlego pelas guelras de Naiad. Fiquei encolhida debaixo da água por tempos, apenas organizando os pensamentos.

Mas eu só me lembrava de verde e laranja.

Ai, Michael, o que você quer aqui? Me deixar confusa?

Sorri e esfreguei um pouco minha pele. Eu não tinha visto ele sorrir dessa vez, mas gostaria de ter visto. Os dentes dele eram tão branquinhos e bem feitos... A boca dele era coradinha e os lábios eram levemente finos.

Não pude deixar de sorrir mais ainda. Ok, admiti pra mim mesma, ele tá um gatão. Aquela barba...

Uma coisa que me deixava de pernas bambas era o cara certo com barba. E Michael tinha barba, não muito cheia, apenas uma barba ralinha, e lhe caía muito bem.

Emergi, respirando normalmente, e então comecei o banho. Joguei meus pozinhos de costume e comecei a me ensaboar com tudo o que tinha direito. Eu continuei viajando com ele, aí me veio uma pergunta na cabeça:

E se Ruby fosse filha de Michael, como ela seria?

Começaram a surgir milhares de hipóteses na minha cabeça, mas a que melhor me coube foi a de trocar os olhos cinza frios do infame capitão pelos olhos cinzas mais parecidos com os meus, só que mais escuros, de Michael.

Ela tinha ficado linda, mas parecia deslocada. Um pouquinho. Seus olhos... Pareciam ter perdido o brilho.

Sacudi minha cabeça, como se os pensamentos fossem sair da minha cabeça pelas minhas orelhas, e continuei o banho sem pensar em mais nada, com muito esforço. Assim que acabei, vesti um vestido branco simples, por falta de vontade de vestir mais, e peguei meu caderno.

Eu queria escrever como nós nos conhecemos.

“Eu estava jogada no rochedo, chorando. Nira tinha realmente acabado comigo; eu não sentia forças nem para me levantar. Quando tentei, caí de novo, derrotada.

Milhares de cortes estavam espalhados pelo meu corpo. ‘É sua retaliação’, ela respondeu, quando eu já estava quase morrendo. Ainda estava. Eu presumia que aquele fosse meu fim; mal tinha chegado naquele lugar e ia morrer. Eu não teria nem a chance de fugir...

Acho que apaguei um pouco, porque eu meio que senti que estava sendo levantada nos braços de alguém, mas não ouvi nada além de uns sussurros vagos. Quando recobrei a consciência, estava na cama de um hospital. Não era tudo claro, a única iluminação do local era a natural, entrando por uma janela gradeada.

Eu não estava sozinha. Tinha um moreno comigo; bonito. Muito. Eu não via barba nele, só uns tracinhos bem pequenininhos no rosto. Um começo, já. Cabelo bagunçado, do jeito charmoso, olhos cinza, meio claros, meio escuros. Um pouco mais escuros que os meus.

− Oi. – Ele chamou. – Acordou?

Afastei-me um pouco da beirada da cama por instinto.

− Oi. E não, ainda estou dormindo, ó. – Larguei meu corpo na cama e fingi que dormia, apenas para ironizar. Ele riu. – Quem é você?

− Ah. Michael Van Healm. – Ele estendeu a mão pra mim, e eu a peguei. Quente e um pouco calejada, a pele grossa, levemente áspera. Definitivamente mão de homem.

Meu braço me chamou atenção também. Estava cheio de cicatrizes pequenas, como se um porquinho da índia furioso tivesse me atacado. E também, com marcas. Eu estava estragada.

– E a minha donzela ferida é...

− Não sei quem é sua donzela ferida, mas eu sou Alicia Burkhardt. Você que me trouxe aqui? – Olhei em volta.

− Sim. Admito que fiquei preocupado com você. Não acordava de jeito nenhum... Sequer reagiu quando te peguei. Estava toda machucada.

− Mas eu... – Fora as cicatrizes e manchas, eu não via nada mais grave. – Eu estou bem. Só toda arranhada.

− Mas não estava. Você estava com um braço deslocado, uma perna quebrada, tinha perdido boa parte do sangue, algumas costelas contundidas, uma concussão e outra sorte de coisas ruins que não quero continuar. Sorte sua que não apanhou desse jeito quando era Grimm, só.

− Eu não era... – Travei. Se eu tinha sofrido tudo aquilo, devia estar empacotada no meio de gesso. E o sangue? – Qual das pernas eu quebrei?

− A esquerda.

Dei um chute no ar com a mesma, que reagiu perfeitamente, sem nenhum gesso. Um desespero me tomou.

− Quanto tempo estou apagada?

− Hoje ia fazer uma semana. Se está estranhando, é bom se acostumar. Híbridos tem um processo de regeneração quase lendário. Vamos lá, isso foi rápido.

− Mesmo assim, o tempo que eu desmaiei... É muito.

− Tecnicamente foi um coma.

− Que seja. – Olhei pro outro lado, emburrada. Então percebi que não o havia agradecido. – Obrigada. Pode ter salvo minha vida. – Falei, sem olhar ainda pra ele.

− Eles bem que disseram isso. – Silêncio agoniante.

Eu remexia meus lençóis, sem ligar pra nada que não fosse a barra deles e o cara gato ao meu lado. Eu seria muito, muito grata a ele.

− Ei.

Quando voltei a fitá-lo, ele estava com os olhos transformados. Fiquei embasbacada; eram da combinação mais legal que eu já tinha visto: verde e laranja. Melhor até que a minha.

Sem dizer nada, mostrei meus olhos pra ele também. Senti um ardor leve com a mudança, e logo nós dois estávamos nos encarando com uma combinação de cores vibrantes.

− Eu trouxe um prato de comida. Desculpe se já está frio. – Ele se levantou e, surpreendentemente, deu um beijinho na minha testa. – Vou ver se volto depois.

Como fui dispensada no mesmo dia, ele não pôde voltar.”

*

− Voltou do seu outro mundo? – Bárbara perguntou. – Te fiz um prato. – Ela me estendeu um pouco de frango e arroz.

− Valeu. − Sentei-me à mesa e comecei a comer.

− A Verrat está aqui? Foi o que você me respondeu. – Bárbara disse.

− Ah. Sim. Não. Não sei direito. Eu vi um híbrido... – Travei. Eu não sabia se falava do Michael ou não. Como eu e ele não tivemos nada além de um pequeno momento de “salve a garota”, eu podia falar. – Michael. Mas ele não estava de preto. Nós só nos olhamos, e eu fui embora.

− E por isso que você estava tão abalada?

− Isso e o fato de que minhas amigas e meu irmão tentaram começar a terceira guerra porque eu chorei. Acho que essas coisas podem te deixar abalada.

− Ah, ok. – Ouvi uma porta se abrir, e a voz de Emily junto com mais uma voz feminina se aproximando. – Acho que posso acreditar em você.

− Meninas? – Emily entrou na cozinha. Junto com ela, estava uma mulher loira, alta e magra, praticamente nos humilhando, se também não fôssemos bonitas. Ela era muuuuuito bonita. – Essa é minha irmã, Jaline.

− Oi, sou Alicia. – Acenei. Eu não podia deixar na cara que tinha antipatizado com ela; mesmo que ela tivesse tentado ganhar a posse da joalheria de Emily, elas não sabiam que eu sabia disso.

− Bárbara. – Barbie disse e levantou a mão como se estivesse em aula. – Prazer em conhecer.

− Digo o mesmo.

− Está de visita? – Perguntei.

− Não, eu vim... Avisar Emily. – A mulher parecia sem jeito, como se tivesse vergonha de si.

− A Verrat está atrás dela. – Emily explicou, e isso me deixou alerta. As duas sentaram. – Uma Verrater fez um pacto com ela para conseguir informações sobre mim, mas à força.

− Se eu não aceitasse, eles iriam me fazer falar. – Jaline completou. As duas eram irmãs mesmo.

− Mas de algum jeito, eles descobriram os planos dela de vir aqui e me alertar que eles estavam atrás da gente. – Emily disse. – Dois empregados dela foram atacados.

Bem a cara deles.

− O que mais? – Perguntei. – Algum bilhete, desenho, ameaça?

− Não... Eu matei o cara antes que ele conseguisse assassinar meu pessoal. No dia seguinte, eu vim pra cá.

− Então eles não conseguiram fazer o que queriam. – Bárbara reforçou.

− E vão tentar de novo – Completei. – O que você vai fazer?

− Bem, acho que parte dos empregados dela poderia vir pra cá. Tem lugar pra eles ficarem e trabalharem a vontade. – Emily disse. – E aumentar a segurança de quem acabar ficando.

− O problema é que isso pode acabar causando um pouco de atrito dentro da empresa. – Bárbara comentou.

− Como assim? – Jaline perguntou. – Todos eles se dão muito bem, até onde eu saiba.

− É, mas escolher apenas alguns para vir para a segurança dos Estados Unidos e deixar o resto para morrer, por assim dizer? – Barbie tinha razão.

− Verdade, Boneca... Não pensei nisso. – Emily esticou uma mechinha do cabelo e começou a enrolá-la no dedo, como Jaline fazia, não pude deixar de reparar.

− Vocês são irmãs mesmo. – Deixei escapar. – São parecidas. Um pouco.

− E ficam enrolando o cabelo no dedo. – Eu ri. Até a bonequinha da Bárbara tinha reparado isso.

As duas se entreolharam.

− Fazer o quê, né. – Line deu de ombros.

− Então... – Bati com as unhas na mesa. – Ela pode ficar aqui quanto tempo quiser. E quem ela precisar também. A casa é sua. – Fiz um floreio com a mão para Emily.

− Alicia, pode ser por isso que o Michael está aqui. – Barbie esclareceu. – Ele pode estar procurando Emily, e assim, encontrar Jaline.

− Não! – Impossível. Por mais que ele nunca tivesse se manifestado contra a Verrat, ter fugido não simbolizava exatamente uma afeição por ela. – Ele fugiu. Como eu te falei, ele não estava de preto.

− Michael? – Emily perguntou.

− É, o cara que levou Alicia pro hospital. Lembra que a gente tinha visto ela toda espancada depois daquela demonstração melhor que a da Nira? Foi ele que levou ela lá. – OK, palmas pra ela. A oriental lembrou de tudo.

− Aquela vaca. – Emy soltou a mechinha cacheada que ficou enrolando. – Ah, lembrei. O gostosão.

− Ei! – Gritei, na defensiva. – Ele não é tããão bonito. Além do mais, você tem namorado.

− Você tem namorado? Quem é? Desde quando? Me apresenta? – Line pulou na cadeira, empolgada, e eu ri ao ver Emily ficar toda vermelha.

− Ele não mora aqui! Aquieta o facho, vai. – Emy colocou as mãos nos ombros dela, acalmando a mulher. – É uma longa história, mas enfim. Alicia, Barbie pode estar certa.

− Prefiro acreditar que não esteja.

− Mas... Deixe-me ver se estou acompanhando: vocês foram as primeiras a fugir.

− Certo. – Nós três confirmamos, o que gerou alguns risos antes de Jaline continuar.

− Se vocês foram as primeiras, então eles podem ter se tocado de que outros poderiam fugir também e colocado mais segurança no local. – O pior é que era verdade. E se eu conhecia bem a Verrat, eles poderiam colocar até tanques de guerra ali. Ou não, eles podiam ser um tanto imprevisíveis.

− Alicia...

− Tá, tá, entendi e faz sentido. Mas... – Fui interrompida pela minha querida amiga Barbie, muito delicada:

− Mas afe! Coisa teimosa, quer aceitar logo o fato e parar de discutir? – Ela gritou e bateu com as mãos no tampo da mesa, fazendo eu e as duas irmãs darem um pulo.

− Nossa, calma, Boneca. – Emily disse, colada às costas da cadeira.

− Ok. – Ela sentou-se. – Estou calma. Mas você me entendeu. – Ela apontou um dedo pra mim.

− Sim, entendi. Significa que tenho que evitá-lo.

− Não precisa. Se encontrá-lo, pode olhar pra ele de novo. – Barbie disse. – Faça o que quiser. Só não mencione nenhuma das duas nem o traga aqui pra perto.

− Certo. Se ele não souber onde estão... – Deixei o pensamento para Emily completar, porque eu sabia que seria tão eficiente quanto eu mesma terminar:

− Então não há risco. – Ela deu de ombros. – Reunião terminada. Vamos comer?

A refeição foi normal. Só que eu estava realmente viajando, pensando nele, no outro e na minha filha, e o porquê dos olhos dela terem perdido o brilho.

*

“− Por que você fez isso comigo?

− Hã?

Olhei ao redor. Era uma sala circular, de pedras, lembrando o labirinto de corredores do asilo, mas era totalmente fechado. Uma lâmpada no teto iluminava pouco o local.

− Por quê? Por que você fez isso comigo?

A voz parecia vir de todos os locais, como se me envolvesse em uma bolha. Era infantil e doce, mas lamuriosa. Me partiu o coração.

Ruby estava sentada na minha frente, encostada à parede de pedra. Sua cabeça estava baixa e ela chorava. Como ela havia aparecido ali, eu não sabia, mas ela estava toda acorrentada de novo.

− Filha. – Tentei andar para lhe soltar de novo, mas o tilintar de correntes me assustou. Eu estava presa também; meus pés e, logo, mãos estavam acorrentados, assim como os dela. Tentei quebrar as correntes, mas não deu certo. Comecei a sangrar, mas pouquinho.

− Por que você fez isso comigo, mamãe? – Ela olhou pra mim, e gritei. Eu tinha que gritar, porque a cena me assustou um pouco. Ela estava sangrando pelos olhos, que se mexiam sem controle e, várias vezes, rolavam para dentro das órbitas para então voltar e olhar para todos os lados em segundos. Ruby abriu as mãos.

Ela segurava dois olhos, com íris de cor cinza claro. Gritei mais uma vez, sentindo lágrima me escorrerem pelo rosto, e os olhos “dela” pararam. Agora, eles eram cinza escuro, opacos, sem vida, como se eu olhasse para um robô.

− Me conserte, mãe. – Ela soou muito mais velha, não só a maneira que ela falou, mas seu tom de voz também. – Me conserte. Esses não são meus olhos. Você não gostava dos meus olhos? Por quê? Por que você fez isso comigo? Você não me amava do jeito que eu era? – Os olhos de Michael voltaram a rolar sem nexo pelas cavidades oculares, me assustando.

− Não, não – Sacudi a cabeça. – Acorde! – Gritei para mim mesma. – Ruby! Pare, por favor!

Eu só sentia desespero. Era culpa minha; trocar os olhos de Ruby era culpa minha em me negar a aceitar que ela tinha os olhos do capitão. Levantei as mãos para tentar enxugar meu rosto, mas elas estavam cobertas de sangue, e não podia ser meu. O sangue da minha filha.

Em meio aos meus gritos, ouvi a voz dela, calma e temperada:

− Me conserte, mamãe. Você sabe que esses não são meus olhos. Você sabe que essa não sou eu.”

Acordei chorando, gritando desesperada para que ela parasse, para me acordar. Emily e Bárbara me sacudiam, parecendo tão desesperadas quanto eu.

− Alicia! – Bárbara falou, exasperada e nervosa. – Meu Deus! Você nos assustou, garota. Ouvimos seus gritos.

− Vou começar a te dopar pra você não nos acordar mais. – Emily brincou, mas parecia tão assustada quanto eu. – O que aconteceu?

− Eu... – Comecei a chorar de novo, e as duas me abraçaram. – Foi horrível... Foi...

− Calma – Barbie acariciou minha nuca, me acalmando. – Relaxe primeiro.

Depois de uns minutos respirando devagar para me acalmar, comecei a contar o sonho por inteiro. Ocultei o porquê dos olhos terem sido trocados, e a quem pertenciam os olhos originais. Acabei deixando que elas soubessem que os olhos cinza mais escuro pertenciam a Michael.

− Ai, que show de horrores. – Bárbara enxugou as lágrimas que começaram a me fugir no meio da narrativa. – Isso é muito, muito medonho. Se eu tivesse um sonho assim... – Um arrepio percorreu as feições delicadas de bailarina de Barbie.

− Vou te dizer: se eu tivesse um sonho assim, com certeza eu nem ia acordar. – Emily falou, a voz com um tom tão cômico que eu tive que rir.

− Ai, ai. Mas é sério, estou nervosa. – Esfreguei meus braços para afastar o calafrio. – O que isso significa?

− Que se você ficar com Michael, você não vai engravidar. – Barbie explicou, solene.

− Você tem que ficar com um cara de olhos cinza claros... Tipo o capitão. – Emily se balançou na cama.

Ai, como eu queria arrancar meu cabelo.

− E quem falou que o capitão tem olhos claros?

− Dedução, uma longa história que eu não preciso te contar. Só sei que liguei os pontinhos e “descobri” – Aspas flutuantes acentuaram seu tom de voz. – que ele deve ter olhos claros. Enfim.

− Não importa com quem eu fique! Eu não vou engravidar! – Bati as mãos nas coxas. – Assim parece que vocês querem que eu seja barriga de aluguel.

− Credo. – Emily alisou minha cabeça. – Fica tranquila, tá? Ninguém vai arrancar os olhos dela. Deus te livre disso, minha amiga. – Barbie me deu um beijinho no rosto.

− Boa noite. – Ela disse. – Relaxe. Nada assim vai acontecer.

− Ok... Eu sei. – Balancei a cabeça. – Boa noite.

As duas saíram e eu me agarrei a um pouco do edredom grosso que me cobria. Eu queria ter alguém para dormir comigo naqueles momentos, pra me abraçar. Mais lágrimas.

Ruby, me desculpe. Eu vou te consertar, minha filha. Inconscientemente, toquei meu ventre, como se realmente tivesse uma criança ali, uma criança que eu sabia que meu corpo nunca iria conceber. Eu vou te dar seus olhos de volta.

Seus olhos.

Os olhos do seu pai.

Senti como se jogassem uma pedra na minha cabeça. Acabei dormindo.

*

O dia acabou sendo tranquilo, mesmo com o sonho medonho que eu tive. Nós saímos mais uma vez, e até Carla tinha ido com a gente. Jaline também. Precisávamos refrescar a cabeça. Eu, principalmente.

Por isso que eu estava indo caminhar na rua depois da meia-noite.

Peguei uma blusa branca de pano fino, parecida com a que eu usei no dia que fui ver Nick e a Verrat nos atacou, causando um homicídio. Enfim, vesti-a singelamente e peguei um short também, simples. Nada de cerimônia; apenas roupas simples. Coloquei uma presilha para segurar as mechas de cabelo que caíam no meu rosto atrás da cabeça.

Desci as escadas, tudo muito comum para mim. Eu não sabia quanto tempo ia passar fora, então apressei-me em pegar um papel e lápis e deixar um bilhetinho na mesa, caso alguém acordasse:

Fui caminhar, aproveitar o ar fresco da madrugada. Não se preocupe, não vou explodir em lágrimas muito menos matar alguém. – Ally.

Fora da casa, respirei o ar puro e fresquinho da meia noite e meia. A lua estava cheia, e minha mão parecia até branca como neve. Para deixar tudo com um ar mais de sonho, nuvens leves cobriam a lua, concentrando alguns raios aqui e ali.

Tudo aquilo, aquele clima leve, a luz suave, as nuvens no céu, o friozinho e a brisa leve, me acalmaram pouco a pouco. Quando me aproximei do centro, diminui a velocidade e prestei atenção ao meu redor. A mistura de cidade e campo era tão gracinha que eu acabei sorrindo. Portland era legal mesmo.

Alguns minutos a mais de andança e sentei-me em um banco, para apreciar tudo em quietude. Olhei para frente.

Lá estava ele de novo.

Olhei nos seus olhos escuros, empurrando para o fundo da minha mente a lembrança de Ruby com os olhos rodando e sangrando, como se ela estivesse possuída. Mordi os lábios e continuamos nosso joguinho de quem encara mais, e deixei-me perder na escuridão cinza dilúvio dele. Se os olhos são a janela da alma, a alma dele estava com as luzes apagadas.

Michael me olhava tão intensamente que comecei a respirar fundo, como se seu olhar estivesse exercendo pressão no meu peito e eu precisasse forçar a respiração. Molhei os lábios, sentindo-me nervosa e agitada. Eu queria desviar o olhar, mas ele era tão magnetizante que eu não conseguia. Meu coração já estava bem acelerado. Como seria se ele me tocasse?

Um carro passou pela rua e, em uma fração de segundo, como nos filmes, ele estava na minha frente. Senti o começo de uma taquicardia no meu peito e tive a vontade de levar a mão ao coração e acalmá-lo, mas não podia fazer aquilo. Não pegaria bem.

Ele estendeu a mão para o meu rosto, e, impulsivamente, recuei. Senti meus lábios tremendo e tratei de me controlar, de relaxar. Meu corpo voltou para frente, mas meus lábios continuaram a tremer. Ele manteve a mão no ar, mas não me tocou. Deixou-a cair do lado do corpo e sorriu pra mim, um sorriso de deixar a perna bamba.

− Alicia. – Ouvir ele dizer meu nome foi estranho, familiar e fez meu coração falhar uma batida. Voz bonita, a dele. – Você não mudou nada. Quer dizer, não está mais toda cheia de marcas, mas isso já faz anos, então... Tá gata.

Eu ri.

− Michael. Bem, você mudou... Não tinha barba naquela época.

− Mas naquela época eu ainda estava tendo uns problemas pra controlar. A barba cresceu numa dessas. – Ele passou a mão pelo rosto. – Curtiu?

− Tá... Charmoso. – Abaixei o rosto, com uma subconsciência de que eu estava corando. – Bonito. É, tá bonito. – Olhei para ele. Seu sorriso estava despontando lindamente no seu rosto bem feito. – Quer sentar? – Cedi um pouco mais de espaço no banco e ele se sentou. Ficamos em silêncio, até que ele disse:

− Por onde quer começar?

Demorei um pouco para entender que ele se tratava de perguntas que eu poderia fazer a ele. Lambi os lábios e questionei:

− Por que está aqui?

Ele encostou-se no banco e olhou pro céu, dando-me oportunidade para analisá-lo. Sob as roupas, ele parecia ter um corpo musculoso, forte, viril... Hum...

Voltei meu olhar para seu rosto. Ele parecia estar concentrado.

− Vários motivos, gata.

− Diga o primeiro.

Michael ficou reto no banco e se virou para olhar beeem nos meus olhos. Senti um nervosismo despontando em mim, mas eu o evitei e retribuí o olhar. Ficamos assim por uns segundos, até que ele estendeu a mão para o meu rosto e me tocou com suavidade, superficialmente. No fundo do dilúvio de cinza, eu vi preocupação.

− Eu descobri um plano. E precisava te avisar. – A mão dele caiu na coxa. – A Verrat vem atrás de você.

− Ela sempre vem... – Dei de ombros, mas antes que eu desviasse meu olhar direito, ele se exaltou.

− Eu sei! Dessa vez... Tem algo a mais. Um plano, como eu disse. Eu não sei qual é, mas, pelo o que eu ouvi, eles acham impecável, e acham que vai te destruir... Pra sempre. – Ele estremeceu um pouco ao dizer aquilo. – Eu fiquei nervoso, linda. Foi minha última motivação pra fugir. Eu precisava te ver e te contar.

Naquele momento, fiquei nervosa mesmo. A Verrat não era de fazer planinhos quando se tratava de pegar ou matar alguém, mas quando faziam, faziam bem feito. Uma coisa que os traidores são é perfeccionistas.

− Plano...? Como assim?

− Algo sobre atacar seu ponto fraco... Eu tentei ouvir mais, mas tinha uns vigias chegando naquela área e eu tive que sair dali. Quando eu voltei, eles tinham parado de discutir. Era uma mulher, uma adolescente, quer dizer, e um homem.

− Reconheceu a voz da mulher?

− Não, nem a do homem, mas ele era velho. É só o que sei. Mas eu vim te avisar... Eu não podia deixar que você voltasse pra lá, docinho.

Fiquei quieta. Michael tinha mesmo fugido por mim... Para me alertar. Se fosse verdade... Além de estar correndo risco, ele poderia ter morrido. E para salvar minha vida uma segunda vez.

Mas, no fundo de minha consciência, ouvi Barbie dizer a mesma coisa que tinha dito durante a discussão com Jaline: ele poderia estar aqui pra terminar o que o cara da França não conseguiu.

− Michael... Olha, obrigada. Se for mesmo verdade o que você me disse, então... Eu vou ficar alerta. Embora não saiba que ponto fraco seja esse que eles querem atacar.

− Por nada. Eu também tenho que te agradecer... Você me deu a coragem para fugir, gatinha. Se não fosse por você, Alicia...

− Shh. Eu não fiz nada. Eu só fugi. Todo o resto é consequência. – Acariciei o rosto dele, contendo-me para não tornar o toque muito íntimo, mesmo que o toque por si só fosse íntimo. – Obrigada por se arriscar só pra me avisar.

Ele abaixou o rosto, sorrindo, e colocou a mão no espaço entre nós, aberta, como se me convidasse a segurar a mão dele. E eu fiz isso. Permanecemos assim por uns segundos, até que me senti meio estranha e separamos nossas mãos.

− Obrigada. Mesmo. – Levantei do banco. – A gente se vê.

Já havia mais pessoas nas ruas, mas tudo continuava calmo. Comecei a voltar, sentindo o olhar dele em mim, e sorri. Sorri mesmo. Nossa conversa tinha sido rápida, mas os toques que trocamos... Esses ficariam na minha cabeça por muito tempo. Ele estava mais homem, também... E eu, mais mulher...

Olhei para trás. Ele continuava sentado, olhando para cima, para a lua. Naquela posição, os raios se focavam no seu rosto e em seus olhos, e deixavam sua pele branquinha. Ele parecia até surreal, lindo demais...

Eu não queria, nem podia deixar que algo acontecesse a ele se ele não fosse um traidor. E Michael Van Healm não podia ser um traidor. Não era o jeito dele.

Eu me negava a acreditar.

Apressei o passo para longe dali, sentindo que, quanto mais pensava nele, mais ficava tocada, e mais meu coração acelerava.

Mais um homem na minha vida, e esse estava mesmo mexendo comigo. Ai, ai.

Imersa em pensamentos, nem notei que estava sendo seguida, e continuei até uns quatro ou cinco quilômetros para longe dali. Em algum momento, decidi parar e sentar na calçada, para descansar. Estava absolutamente deserto.

Quando o fiz, vi um vulto vestido de negro sair da esquina da rua e se aproximar de mim. Era um homem, e ele estava em woge. Cachorro, como a maioria dos outros. Uma mulher estava vindo pela minha esquerda e outra jovem apareceu na minha direita, no começo da rua.

Tirei a faca do short e fiz a woge, pronta para atacar. Mas ouvi um grunhido, e virei para trás. Outro homem, com uma arma comum, calibre. Apontando pra mim.

Ok, quatro contra um. Eu teria que evitar mais a arma, pois se atingisse a aglomeração de nervos, eu estava encrencada. Cortes não seriam tão preocupantes, logo...

Mas mesmo assim, eu estava em clara desvantagem. Com um, era moleza. Com dois, até que dava. Três, com um pouco de sorte. Quatro? Precisava de habilidade e um Nick ou uma Emily ou uma Bárbara. Eu só sairia viva dali se conseguisse lutar por eles.

Os três me atacaram, e ataquei-os com as garras, cortando os braços e parte da barriga do homem, e parte do braço das mulheres. Joguei-me para o lado e consegui escapar do tiro que previ. Pus-me, em menos de um segundo, de pé e soquei o nariz da mulher mais velha, sentindo o osso ceder à minha força. O homem me deu uma chave de braço, mas eu não tive que fazer nada, já que ele foi idiota o suficiente para se colocar na frente da outra bala. A jovenzinha rosnou pra mim, e nós rolamos para o lado para nos livrarmos de mais um tiro.

Ela conseguiu me acertar dois socos, derrubando-me no chão, e pisou no meu peito. Eu fiquei arranhando seu tornozelo e tentei mordê-la, mas ela se apoiou no pé em cima de mim e chutou meu rosto, minha cabeça acertando o chão com força, me deixando tonta. Ouvi um tiro, e esperei pela sensação da bala atingindo minha cabeça.

Mas ela não chegou até mim. O peito de Michael parou seu trajeto.

Os dois lutaram, e com a distração dela, consegui contrair minhas garras e cortei sua perna, o ácido amolecendo a carne e a pele como se fossem manteiga, quase cortando o osso. Ela gritou e pisou com força na minha garganta; mas eu tirei meu pescoço do caminho de seu pé antes de ter minha traqueia partida ao meio. Fiquei de pé o mais rápido que pude e lhe soquei mais algumas vezes, com ódio. Olhei para trás, vendo Michael com vantagem, e então cortei a cabeça dela com um golpe rápido.

De repente, virei para os dois homens e vi Michael ser derrubado. Desesperada, ouvi mais dois tiros; não deixei mais nenhum tiro atingi-lo. Voei no homem, ganhando outros dois tiros no peito. Atingi o homem e rolamos para o chão, comigo por baixo. Ele ergueu a cabeça, talvez para me morder, mas ele foi chutado no estômago com crueldade pelo sexy e impressionantemente resistente Michael. A arma dele caiu no chão, e eu a peguei no mesmo segundo.

− Abra a boca dele! – Ordenei, e ele o fez obedientemente. Enfiei o cano o mais fundo que pude e puxei o gatilho, o barulho meio abafado e a boca se enchendo de sangue.

Joguei a arma para trás e segurei Michael, que parecia mais pálido do que o normal. Ele já estava com o braço escorrendo sangue e sua blusa, antes branca, estava com uma grande mancha escarlate.

− Deite já! – Coloquei seu corpo no chão. – Tire as mãos. Me deixe ver.

− Você... Também está ferida – Ele falou, a voz fraca e rouca.

− Mas não como você. – Inclinei sua cabeça e observei a bala enfiada na sua jugular. A carne havia se regenerado o máximo que podia, apertando o metal, firmando-o ali. Um desespero me bateu; eu não queria que ele perdesse mais sangue, se eu tirasse a bala. Podia não ser muito, mas sua palidez não me tranquilizava. – Você precisa ver... – Eu ia dizer “um médico”, mas eu sabia que não era bom. Nenhum de nós tinha documentação; apenas falsa, e não queríamos arriscar.

− Só tire, gata. Eu vou me curar rápido. Você sabe como eu sou. – Ele falou, enfiando um flerte no meio, e eu não pude deixar de sorrir. Até naquele momento ele conseguia ser bacana.

Olhei nos seus olhos, mais escuros que os meus, e meu coração foi desacelerando. Ele não podia morrer. Era a segunda vez que ele salvava minha vida; eu precisava retribuir.

Enfiei as garras com cuidado para não empurrar mais a coisinha, e fui puxando a bala com cuidado, ouvindo seus gemidos de dor. Eu me recusava, com todas as minhas forças, a deixá-lo morrer.

A primeira saiu, e eu comecei a firmar minha mão na ferida. Eu não queria arriscar usar o ácido para cauterizar a ferida; não sabia quais seriam as consequências.

− Gata, calma. Eu não vou morrer – Ele tentou me tranquilizar.

− Cala a boca, Van Healm – Segundos depois, a ferida já estava fechada. O sangue tinha parado rápido, e a ferida, se fechado rápido também. – Parou.

− Você estava branquinha.

− Você conseguiu ficar tão branco quanto eu. Vou tirar a outra... – Escorreguei até seu abdômen e rasguei sua camisa. A bala estava próxima ao umbigo dele; não pude evitar deslizar minha mão pela barriga definida, sexy e firme...

− Gostou, gata? Pode continuar, se quiser. – Ele disse, sua voz fraca ganhando uma rouquidão sexy e um tom de flerte que me arrepiou. – Tô curtindo.

− Ah, eu vou te deixar morrer. – Repeti o processo de remoção da bala, e pressionei a ferida como antes, sentindo a ferida desaparecer em instantes. – Novinho em folha.

− Obrigado, gatinha.

− Não precisa me agradecer. Só estou te pagando o favor que te devo por salvar duas vezes a minha vida.

− É minha sina, docinho. – Nos levantamos, batendo a poeira de nossas roupas. Olhei para os corpos, e ele seguiu meu olhar. – O que fazemos com eles?

− Só... – Peguei a arma e lancei-a para ele. – Esconda isso. Tem nossas digitais.

− E meu sangue, gata? – Ele apontou a poça no chão.

− Vai secar, e não vai adiantar muito. O DNA vai ser inconclusivo mesmo. Nossa maior preocupação é com a arma. Tem nossas digitais, e se acharem, podem ligar a outros assassinatos que eu ou você cometemos.

− Eu não matei pra chegar aqui. Não muito. – Rimos juntos, o som parecendo relaxante e gostoso de ouvir. – Então agora eu ganhei uma arma. Legal. Bom, essa camisa cheia de sangue e com buracos de bala que não vai cair legal.

Ele colocou a arma na cintura da calça e, sem pudor nenhum, arrancou o resto da camisa do seu corpo, deixando seu peitoral viril totalmente exposto. A luz prateada tornava-o realmente meio surreal, como se a luz o moldasse, como um deus.

Demorou um pouco para que me caísse a ficha de que eu o estava secando na cara de pau.

− Gata, você tá me comendo com os olhos. – Michael riu de mim, se aproximando, e eu sacudi a cabeça. Por dois segundos, me lembrei do capitão, e seu corpo também sarado...

Não. Chega. Agora tem um cara que combina muito mais comigo, aqui na minha frente.

− Cara, desculpe, mas... Você tá bem... Em forma. – Minha voz falhou várias vezes, porque ele estava muito próximo; eu podia senti-lo.

− Ah, Alicia, não gagueja. Pode falar que eu tô sexy. Deixo até você alisar um pouco mais se quiser. – Eu ri.

− Não, obrigada. − Encarei-o. – A gente se vê?

− Alicia, agora eu não vou mais te perder da vista. Eu não posso; eu preciso te proteger.

− Mas, Michael...

− Linda, sem “mas”. Eu fui feito pra te salvar.

*

Voltei para casa com os sentimentos bagunçados. Eu me sentia confusa, mas irrevogavelmente atraída por ele, e eu me sentia bem com aquilo. Era diferente do que eu sentia pelo capitão: com o Michael, era estranho ficar perto dele, mas parecia certo. Ou, pelo menos, não me incomodava. E ele me passava um calor bom com o toque; não era eletricidade, nem arrepios. Calor. E era bom.

Além do mais, ele era lindo, e sexy, e me chamava de “gata” e “docinho” e “linda” e “gatinha”... Meu ego gostava daquilo.

Mas eu não sabia se aquilo era estar apaixonado. Eu precisava falar com alguém que estava apaixonado.

Peguei o celular e liguei para Nick sem pensar duas vezes. Não importava a hora; eu precisava saber se era aquilo mesmo. Tão rápido. Tão forte. Tão intenso. E gostoso de sentir.

Caramba, mana. Eu tenho que dormir, sabia?

− Eu também. Mas só me responda uma coisa: como é amar alguém?

− Posso basear-me no que a gente sente um pelo outro?

− Não. Diga-me o que você sente pela Juliette, o que é amar alguém.

Momentos longos de silêncio assolaram a nós dois; só o que eu ouvi foi ele se ajeitando antes de ficar ainda mais em silêncio e depois me responder.

− Alicia, o amor não é o mesmo para todos, eu acho. Tem jeitos diferentes...

− Não pode ser tão diferente, ou as pessoas teriam mais dificuldade em saber que amam. – Abracei meus joelhos e esperei por mais uns instantes pela resposta:

− Ok, ok. Amar é... É várias coisas. É perceber que você pensa regularmente naquela pessoa, que você quer saber como ela está e se ela está bem. É querer estar do lado e gostar quando acontece; é se sentir bem quando ela te abraça, é se sentir no seu lugar. É gostar dos toques e de ficar junto, e sentir que, se você não beijar a pessoa naquele segundo, você vai ficar mal. É ficar com ódio de quem machuque aquela pessoa, querer protegê-la de qualquer um, literalmente, em alguns casos. É não querer brigar, sentir que vai vomitar por ter brigado com, justamente, aquele ser... Isso é um enésimo do amor.

− Nossa – Eu disse, com um tom de riso na voz. – Vocês, amantes, são complicados. Como conseguem conviver com tantos sentimentos?

− Aí é que está, irmãzinha. Isso tudo é só um sentimento.

− Oook. − Balancei-me na cama. – Pode começar só com um desses... Enésimos?

− Pode começar de qualquer jeito, mas vai por mim, não importa como comece, no fim é avassalador.

− E como eu vou saber que estou apaixonada? – Eu quase gritei, e então tapei a boca.

− Oh, não. Quem eu tenho que matar?

− Nick! Não é assim! E, tipo, você não o conhece! – Gritei/sussurrei no telefone.

− Isso não me impediu de matar aqueles caras da Verrat aquele dia.

− Affe, homem, não arranje desculpas. Nem sei se eu o amo mesmo. E é Verrater.

− Hã?

− Designamos os “caras da Verrat” de Verraters. E eu não o amo, eu acho. Ainda. – Eu sorri. – Mas obrigada por falar. A gente se vê.

− Alicia!

− Oi.

− Eu fui na casa de Juliette.

Sem esperar o tchau, desliguei na cara dele.

*Nick*Horas antes da luta*

Eu tinha virado um metrossexual.

Pela última vez, analisei minha aparência na tela do celular. Droga, Juliette já tinha me visto de todo jeito e eu estava ali, agindo como uma adolescente apaixonada.

− Nick, vou dizer pela décima vez: você está bonito. – Monroe reclamou, batendo as mãos nas coxas. – Agora vai! – Ele fez um gesto para a porta, como se indicasse a saída.

− Calma. Rosalee vem aqui? – Provoquei, ficando de pé.

− Você vai se reconciliar e viver feliz pra sempre com ela?

Algo quebrou dentro de mim. Olhei para Monroe.

− Ok, desculpa, joguei sujo. – Ele ergueu as mãos em rendição. – Vá lá, meu filho pródigo. Seja feliz.

Saí da casa e entrei no carro, sem saber definir o que eu sentia mais: euforia ou tristeza, por saber que eu teria que ficar frente a frente com o amor da minha vida sem poder voltar com ela.

*

Eu queria ficar parado ali por mais tempo, mas não consegui. Tanto porque queria terminar logo com aquilo quanto porque ela saiu de casa para me receber.

− Nick!

− Olá.

Ficamos totalmente sem jeito por dois segundos, até ela dar um passo para o lado.

− Entra.

− Obrigado. – Avancei para dentro da casa na qual morei por tanto tempo. – O que queria dizer para mim?

− Muito. – Juliette se sentou no sofá, e bateu ao seu lado para eu me sentar. – Nick...

− Pode me contar. – Uma lágrima caiu de seu rosto, e eu senti uma urgência de puxá-la para mim. – Não chore.

− Vou tentar. – Ela enxugou o rosto com as pontas dos dedos, deixando-me fascinado. Totalmente delicada, como um anjo. – Você conhece uma garota... Com o cabelo preto, pele branca... Olhos cinzas, eu acho... Só vi por um instante...

Meu coração falhou uma batida. Alicia.

− Não estou me lembrando... – Menti, sentindo que todos os meus órgãos tinham virado chumbo. – Por quê?

− Uma garota assim apareceu aqui em casa. Ela... Disse que te conhecia, que você também a conhecia... E vocês eram bem próximos... – Juliette balançou a cabeça. – Nick, era incrível como ela era rápida.

− Ela disse... Que nos conhecemos? – Tinha fogo em mim. Uma raiva tão impressionante que eu estava meio assustado de conseguir sentir aquilo da minha irmã. Mas ela tinha machucado Juliette. – Nossa. O que ela queria?

− Que eu consertasse o que fiz com você e parasse de te magoar. – Ela me fitou, os olhos levemente vermelhos. – Nick, me desculpe, tanto, tanto... Eu estou me sentindo horrível, meu Deus, eu...

Não a deixei falar mais nada. Abracei Juliette sem me importar com a reação dela, apenas a puxei para mim. Seu corpo era tão familiar, e ela chorando estava me deixando tão triste, que senti uma lágrima pelo meu rosto. Senti culpa também. O motivo por que ela chorava era...

− Por isso eu te chamei aqui. Me perdoa... Me perdoa...

− Juliette, você não precisa pedir perdão. Eu nunca, nunca pediria isso. Você sempre teve. – Outra lágrima caiu de meu rosto, e senti ela enxugar a gotinha com seus dedos finos e suaves. Assim que outra escorreu do rosto dela, eu a enxuguei. Nos encaramos por mais alguns segundos, sem perceber que nos aproximávamos. Quando notei a diferença de distância, me afastei.

− Desculpe. – Eu disse, alterado, nervoso. – Desculpe, eu não...

− Shh. – Ela segurou meu queixo e encostou um indicador nos meus lábios. – Não se desculpe... – Ela se aproximou devagar de mim, tirando o dedo da minha boca devagar. Eu estava ansioso; queria logo que ela tocasse a boca na minha para que eu pudesse tocá-la como eu queria há tempos...

Até um momento em que olhou para o lado e se apavorou, como se tivesse visto um fantasma. Seu queixo tremia, os olhos estavam arregalados, e ela estava ficando branca.

− Juliette? Juliette?

− É você! – Ela apontou para a parede. – Ali... É você...

O olhar da ruiva se voltou para mim e então para onde ela dizia que eu estava.

− Mas como... Sou eu?

− Você não vê? – Ela se levantou e se aproximou daquele local. – Não mesmo? – Seu passo arrastado estava me arrepiando; fui até ela e fiquei ao seu lado.

− Não. – Ela estendeu o braço como se tentasse tocar algo, mas no segundo seguinte, Juliette bateu o pé como uma criança birrenta e cerrou as mãos em punho.

− Que droga! Sempre some. – Então ela começou a balançar a cabeça em negação e desabou; peguei-a em meus braços e sentei-me no chão com ela. – Estou louca.

Uma hipótese rápida surgiu na minha cabeça. Ela podia estar se lembrando! Alguém jogue os confetes!

− Não. Não está. – Ela me encarou, e balançou a cabeça.

− Nick, eu estou vendo fantasmas que são você. Diga-me de novo que eu não estou louca, e vou mudar de ideia sobre quem está louco aqui. – Ela riu, e inevitavelmente, eu sorri. A risada dela... Eu podia ouvi-la rindo o dia todo.

− Tudo bem. Não digo. – Ela se encostou em mim, e eu decidi não fingir que pelo menos aquele momento era como antes, porque eu iria me deixar levar. Precisávamos ir com calma. – Olha, quanto a garota... Eu posso tentar encontrá-la.

− Não... Eu nem deveria... Nick, eu nem deveria ter falado sobre ela. Você não veio aqui pra isso... – Juliette ficou de joelhos na minha frente, mas a silenciei com um dedo nos seus lábios. Minha outra mão segurou seu rosto delicadamente.

− Hey. Se um dia você pensar em me chamar aqui só pra pedir desculpa por qualquer coisa que tenha feito, não perca seu tempo, meu... – Mordi meus lábios. Quase que eu deixava escapar “meu amor”.

− Seu...?

− Esqueça. – Balancei a cabeça, como se quisesse fazê-la esquecer, mas Juliette se aproximou.

− Seu o quê? Vou ter que arrancar de você? – Ela tinha um bom sorriso no rosto enquanto se aproximava de mim. Como aquilo vinha dela, eu não tinha com o que me preocupar. Sorri também; de verdade, não o sorriso de uma felicidade breve, nem um falso, para disfarçar o quanto eu estava mal; o sorriso que Alicia tinha conseguido colocar no meu rosto de novo, e o sorriso que Juliette conseguia criar com tanta facilidade só por estar comigo.

− Acho que vai.

Aproximamos nossos rostos devagar, e observei sua língua deslizar devagar pelos lábios corados. Busquei meu autocontrole para que eu não a beijasse desesperadamente, e então senti quase tudo desmoronar quando senti sua boca na minha.

A mão suave dela pousou primeiro em meu ombro, deslizando para meu cabelo, enroscando-se ali e empurrando nossos rostos mais contra o outro. Pressionei-nos mais e coloquei minha mão em sua cintura, deslizando pouco e devagar, sentindo o corpo que eu já tinha tocado tantas vezes. Eu estava cada vez mais embriagado com o beijo, mesmo que simples, e tinha a sensação que logo nós estaríamos ofegantes no chão.

Quando eu criava coragem para aprofundar o beijo, o celular dela tocou.

− Ah! – Ela ofegou, quebrando o beijo. Era como se tivessem atirado em um vidro; foi o mesmo efeito para mim. – Me des... Nick, me...

− Não peça desculpas, eu disse. – Ela atendeu o telefone, e enquanto eu me levantava devagar, acordando de um torpor e provando o resto de seu gosto nos meus lábios, sussurrei: − O culpado sou eu, aqui.

Por ter retribuído. Por ter me deixado levar. Por não me controlar. Por quase tê-la chamado de “meu amor”, sendo que ela não é mais minha.

Senti a mão dela em meu braço. Quando olhei, quase que minha determinação foi pelo ralo. Ela estava parecendo meio... Triste?

− Fica... Mais um pouco.

Tirei sua mão do meu braço devagar, querendo que ela sentisse o quanto eu estava mal também. Parecia que cada parte do meu coração estava sendo esmagado por um salto alto. (Obrigado, Alicia.)

− Se eu ficar, vou me perder em você. E acho que isso não vai ajudar.

Fiquei do lado de fora, colocando o batente entre nós como uma barreira. Ela estava bem de frente pra mim, e eu pude ver o brilho aquoso em seus olhos. A lágrima, dessa vez, não foi notada até ela pousar em meus lábios. Ela também começou a chorar.

− E eu ia te chamar de meu amor. – Virei o rosto para o lado, ocultando o choro. Fechei os olhos com força, tentando expulsar a água de volta para onde veio. Ela voltou a segurar meu antebraço, mas eu o tirei da mão dela com um puxão fraco. – Tchau, Juliette.

Comecei a me afastar, sem dar a ela a chance de dizer qualquer coisa. Quando entrei no carro, dirigi apenas o suficiente para ficar escondido de olhares curiosos, encostei a cabeça no volante e deixei o choro livre.

*Depois da ligação*

Deitei-me exausto e sonolento na cama. Fiquei relembrando o beijo várias vezes, e lambi meus lábios mais uma vez, imaginando sentir o gosto dela. Meus olhos arderam de novo.

Virei-me na cama e enrolei mais os lençóis no meu corpo. Eu estava com raiva por chorar; queria que aquilo parasse. Deixei que a raiva me engolisse aos pouquinhos, para parar com as lágrimas. No dia seguinte, eu definitivamente precisaria daquela máscara.

Peguei no sono várias vezes, mas eu sempre acordava. Lá pelas cinco e pouco da manhã, desisti e fui tomar café. Talvez, se eu conseguisse entrar em coma de tanto café, eu teria um pouco de sossego na minha vida.

*Emily*Dia seguinte*

− Trezentos? – Jaline quase gritou. − Tem certeza?

− Ai, meu Deus, lascou tudo.

Eu e Line tínhamos achado uma planta da casa, e a parte superior era quase inteira de quartos, já que todas as salas “técnicas” estavam no andar de baixo. Se eu tinha lido o número feio bem, eram 121 quartos. Se colocássemos beliches, dobraríamos o capacidade de pessoas, mas segundo o número atual, não seria o suficiente.

− Ok, obrigada. – Line desligou. – Trezentos é aproximado... Ela disse que, pelo menos, não chega a trezentos e dez.

− Ah, meu santo... – Esfreguei minhas mãos nas coxas. – Foi quase. Chegamos perto, muito.

− Sobra mais ou menos 183 pessoas, sem trocar as camas por beliches. Se trocarmos... 62 pessoas.

− E aqueles beliches de três pessoas? – Sugeri. – Ainda cabe mais gente. E, se eu não estiver enganada, sobra.

− Sobra mesmo. Mas acho que vai ser difícil acharmos tantos “treliches” assim. Bom, não custa tentar. Mas, Emy... – Ela me encarou, uma mecha de cabelo dando voltas no dedo. – Você vai conseguir sustentar todo mundo? Essa casa teria que ter a capacidade de um hotel.

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− Mas tem. Um pouco... Se não tiver, a gente turbina. Só vou precisar de mais cozinheiros... E faxineiras. Mas dá sim, eu fiz a oferta, eu aguento as consequências. Vem, vamos comprar coisas.

− Mas já?

− Mas já. Por que não?

− Estou com um pressentimento ruim. – Line se levantou e alisou as roupas. − Mas vamos.

Apostamos uma corrida para ver qual de nós conseguia tomar banho, se arrumar, passar maquiagem e chegar primeiro na sala de estar da casa. Eu desci passando lápis de olho, basicamente.

− Ganhei! – Gritei quando cheguei no local combinado. – Yay!

− Não ganhou não! – Jaline saiu de trás do braço do sofá rindo. – Eu ganhei!

− Saco. – Bati o pé. – Mas você não passou delineador. – Line ficou olhando fixa pra um ponto atrás de mim, pensando, e então fez uma careta.

− Fresca. Vem, vamos.

Como nós não sabíamos muito bem onde ficavam as melhores lojas, ficamos dando voltas por alguns minutos, até eu ouvir um ronco conhecido.

− Espera. Não para o carro – Falei, inclinando-me para ver melhor no retrovisor.

− Que foi? – Line perguntou.

− Continue!

Com atenção, consegui reconhecer a moto que gerava o ronco; era uma Davidson, longe, mas era. Um cara de preto a dirigia.

− Ai meu Deus. Line, segue as direções que eu der. – Eu lembrava um pouco de um caminho para uma madeireira quase nos confins da cidade. Se não me falhava a memória, o cara estava abusando das áreas que podia desmatar e começado a extrair madeira ilegalmente, então fecharam.

Ela obedecia a todas as ordens que eu lhe dava, mesmo sem entender. Quando chegamos lá, quase pulei do carro.

− Vem! Vem! – Gritei, e ela saiu do carro meio tropeçando. Voltei e peguei-a por debaixo dos braços. – Tropece nos saltos depois, agora não tem tempo!

− Mas por quê?

− Verrat!

Palavra maldita.

Entramos na fábrica nos arranhando debaixo de tábuas pregadas na frente. Lá dentro, tudo era poeira e sujeira e máquinas velhas e quebradas. Line começou a tossir.

− Ai, por que aqui? – Ela espirrou. – Tenho alergia a poeira.

− Desculpe. – Passei a mão por uma tábua. – Não imaginei que estaria tão fuzilado.

O ronco das motos se tornou presente e foi aumentando, até parar, bem próximo de nós. Corremos o mais longe que pudemos da entrada, por entre máquinas e madeira. Acabamos escondidas, agachadas atrás de uma pilha de tábuas gigante.

Mordemos os lábios e fizemos a woge o mais silenciosamente possível. Os passos eram quase inaudíveis em alguns momentos, mas muito indiscretos em outros.

E, de repente, Line gritou.

Pulei de susto e vi um Verrater puxando o cabelo dela, arrastando-a por cima das tábuas. Impulsionei-me por cima dos dois e caímos no chão.

Larga! – Grunhi, e consegui cuspir uma quantidade legal de ácido no rosto dele. O bicho gritou e nos soltou, mas eu não saí de cima até pegar a arma dele e estourar o cérebro dele com uma bala no ouvido.

Outro veio por trás, mas Jaline conseguiu derrubá-lo e vomitar o veneno na garganta dele, se debatendo. Ela se levantou e saímos de lá o mais rápido possível.

Nosso caminho foi interditado por um cara com uma arma, mas eu simplesmente peguei a minha, mirei e atirei no rosto dele. Ele se esquivou, e dei mais quatro tiros, todos acertando e machucando feio, até a munição acabar.

Corremos dali desesperadas, ouvindo o som de máquinas se aproximando.

− Não, por aí não! – Chamei, já sem a woge. – Tem alguém vindo!

Fomos pela lateral da fábrica, e eu quebrei um buraco na parede para escaparmos. Ouvimos um homem gritar, nos mandar parar, mas não paramos. Tivemos que abandonar o carro e escalar as árvores, e usar todas as nossas habilidades para escapar.

Não olhamos para trás.

*Bárbara*

Eu estava comendo um pedaço de bolo e lendo um romance de Nora Roberts quando ouvi sons de desespero. Quer dizer, algo assim. Alicia estava ouvindo música, e não escutou. Então, quando saí da cama, ela me olhou estranha.

− Que foi?

− Acho que Emily e Line voltaram.

− Elas acabaram de sair! – Ally tirou os fones. – Que diabos passa na cabeça dessas ricas?

− Sei lá. Vamos ver.

Enquanto descíamos as escadas, as duas irromperam pela porta da frente, descabeladas e com arranhões pelo rosto e braços. Jaline mancava um pouco, e Emily estava ofegante.

− O que aconteceu? – Alicia perguntou.

− Nos atacaram! – Emily choramingou. – Três!

Jaline foi colocada no sofá, lágrimas escorrendo pelo rosto. Emy saiu correndo para pegar um saco de gelo e me sentei ao lado de Jaline.

− O que aconteceu, exatamente?

− Nós fomos ver alguns beliches para trocar as camas, mas começamos a ser seguidas. Aí a Emily me mandou ir até uma madeireira pra que nós não fôssemos flagradas, aí matamos os três, mas chegaram trabalhadores lá, e tivemos que escapar pela floresta. Quando caímos, torci o tornozelo.

Emily voltou com o saco de gelo.

− Ai, Line, eu sinto tanto, tanto! Se eu soubesse que você ia ficar tão acabada... – Ela colocou o gelo no tornozelo e começou a amarrar, mas antes que terminasse, a loira pegou a faixa, desamarrou e colocou a faixa de novo, reamarrando-a de um jeito profissional.

− Não esquenta. Eu sobrevivi.

− Acha que vão nos pegar? A arma... – Line perguntou, enxugando os olhos.

− Eu larguei na floresta. Não acho que vão encontrar. Mas ele nos viu, tem uma chance de me encontrar. Ou nos encontrar. De qualquer jeito, tenho receio. – Emily explicou.

− Como aprendeu a enfaixar tornozelos? – Alicia perguntou. – É coisa de pro.

− Eu fiz um curso de enfermaria, e acabei me aprofundando nisso. Sou boa com essas coisas... Um pouco. – Ela tocou a faixa.

− Bom, tomara que não encontrem vocês. Não quero uma sendo extraditada nem outra indo pra cadeia. – Ally sorriu e deu de ombros.

− Alicia! – Gritei, arrepiada com a naturalidade com que ela tratava aquilo. – Deus nos livre disso! – Olhei para as duas. – E pelo jeito, vocês não podem nem mais sair de casa.

− Não! – Emily se levantou e bateu o pé. – Eu não vou me esconder! Quando eles vinham, eu lutava! E vou continuar lutando, ok? Já matei trocentos, e não serão mais três que vão me fazer dar pra trás.

− Desculpe, então. − Afastei-me um pouco, levantando as mãos em rendição. – Mas talvez vocês devam... Andar mais protegidas.

− Tenho isso preparado. Pode parecer besteira, mas... – Ela mordeu os lábios. – Eu tenho guarda-costas. Pedi que preparassem uma equipe se precisássemos de proteção a mais. E aparentemente precisamos.

− Não, nós não...

− Emily, pelo menos pra intimidá-los. – Alicia cortou. – Quanto mais gente, menos chance ainda pra eles de chegarem em vocês.

− Mas eu não quero colocar a vida de mais gente em risco!

− Não vai, se forem bons. Emily, o trabalho deles é esse! – Eu reforcei. O problema é que ela era beem teimosa. – A segurança de vocês duas é muito importante! Se você for presa, acha que poderemos continuar aqui? Vai ser difícil, sabia?

− Faz isso pela gente! – Ally fez a carinha do gato de botas, e eu também, e a irmã dela, porque ela é muito legal, fez também. Emily olhou para nós três, sendo cercada por fofura.

− Ah, mas... Vocês... Eu não... – Emily começou a dar chilique.

− Admita, nós ganhamos. – Eu sorri.

− Ganharam! – Ela se jogou contra o sofá, tentando ficar emburrada, mas seu sorriso foi crescendo rapidinho. – Ah, suas fofas!

Nos abraçamos com força, ignorando os problemas que nos rodeavam.

Quem nos dera fosse tão fácil espantá-los.

*Mihaela*

− Que inferno! – O homem gritou. – Não derruba ainda essa porcaria! Chama a polícia!

Haviam três corpos. Dois estavam com os rostos corroídos, um deles tinha um buraco sangrento no ouvido, o outro estava ressecando, e o mais distante tinha sido baleado umas boas vezes, deixando uma mancha de sangue onde estava.

− Puta merda! – Outro gritou, chegando mais perto. – Acha que foram aquelas mulheres que saíram correndo daqui?

− Quem eram aquelas duas? – O chefe, um homem experiente e inchado, perguntou.

− Vai ver mulheres de rua! – O primeiro cuspiu. – Ladras! E umas monstras, olha como tá o rosto dos caras!

− Com aquelas roupas? Nem pensar, John! Chama os policiais mesmo! – O maior gritou. – Vão prender aquelas desgraçadas com dois palitos!