Wesen Para Matar

Explosão de pânico


Então eu engolia em seco. O suor escorria em profusão pelo meu rosto, cavava linhas molhadas em meu couro cabeludo. O som do meu coração quase que apagava todos os sons de fora. Nick me segurou enquanto eu entrava em um ataque de pânico, e pontinhos pretos iam enchendo a minha visão e também cercando-a, fazendo-me olhar por um túnel.

Eu não sabia se estava sequer conseguindo formar palavras coerentes, mas tremia demais pelo ataque e me engasgava a cada segundo. Ainda bem que era de noite, em seu carro. Era quase... Privado.

Calafrios cortavam meu corpo como facas de gelo; em contrapartida, todas as partes em que minha pele tocava algum tipo de material, após a passada do calafrio, esquentavam desconfortavelmente. Minha respiração formava pedras em minha garganta e eu engasgava ao tentar fazê-las descerem; minhas mãos, em meio a tremores, apalpavam tudo ao meu redor; eu não sentia o que tocava.

Era como... Se eu não me sentisse real. Eu, de repente, sentia tudo e nada. Era como... Se estivesse saindo de mim mesma. Eu via flashes, minhas mãos, meus olhos, eu. Uma náusea me tomou, e me dobrei toda, querendo muito vomitar. Parecia um sonho; eu não sentia mais cheiros, não percebia mais o que tocava, não sentia mais nada. Eu apagava, passavam-se mundos e eternidades e eu voltava; tudo me atingindo e fazendo-me perder as sensações.

Nick estava falando algo? Eu não ouvia. Minha cabeça tremia tanto, eu me sacudia tanto, que uma das últimas coisas que vi foram os rostos desfigurados, as caveiras e as woges sobre os ombros de Nick, abaixando-se para mim. Aí os pontinhos pretos e as bordas pretas, aumentaram, e engoliram tudo.

Foi um milissegundo em que pude sentir o gosto da morte e então morri por não querer morrer.

*

− Ela- pâni- A Ver- duas vez- não acho qu- cedo.

− Mas d- ela mei- tão ruim. Que- melhor do q- aconteceu.

− Alguém po- explicar o que- cendo?

Cada corte nas frases era causado ou pelo som das batidas do meu coração nos ouvidos, ou pelo som da minha respiração. Eu conseguia sentir o que estava ao meu alcance; mas não queria. Eu tinha medo de acordar, não queria acordar, queria...

NÃO! Repreendi-me mentalmente. Isso é consequência da despersonalização do ataque de pânico, Alicia. Para com isso. Você não quer morrer. Tudo é real, você não estava sonhando nem era uma robô. É tudo culpa da Verrat, de você ser um monstro, um monstro assassino, sua mãe nunca teria orgulho de você...

Morra morra morra morra morra

Minhas unhas começaram a arranhar o vazio, e senti que cordas prendiam meus pulsos um longe do outro. As garotas deviam saber dos meus ataques suicida depois dos ataques de pânico... Eu só queria morrer...

O Nick tem dó de você, o Renard, então? A Emily e a Bárbara vão te chutar assim que for bom pra elas, você não tem mais utilidade, morra, morra, morra...

Abri minha boca, pegando coragem, e fechei a mandíbula com toda a força, mordendo... Madeira?

Minha energia toda se dissipou, e simplesmente relaxei. Meus sentidos foram voltando à sua normalidade.

− Nick, vai embora. Não há nada que você possa fazer por ela.

− Mas eu quero saber o que tá acontecendo!

− Alicia tem ataques de pânico, e um grau leve de psicopatia, muito leve, quase nunca se manifesta. Isso acontece porque fomos transformadas. Em troca de uma melhora física, as mudanças e a experiência da mutação são tão terríveis que causam transtornos psicológicos em todos nós. A Ally acabou tendo esses ataques de pânico, e depois deles, ela fica tão mal que fica suicida. São dois ataques sucedidos.

− Quer dizer que isso é culpa da Verrat, também? – Alguma coisa caiu. Por que não caia na minha cabeça? – Desgraçados. – Ele suspirou. – E vocês?

− A Barbie tem descaracterização e despersonalização, e isso inclui algumas coisas de psicose, como alucinações. Ela pode ficar até dias assim, meio catatônica, balbuciando sobre nada. Eu tenho acessos de disforia e delírios.

Tentei engolir, e após muitas tentativas, consegui. Foi aí que notei/lembrei que minhas pálpebras abriam, e então voltei a enxergar.

Era tudo claro, e demorou um ano pra eu perceber que estava no meu quarto e que era de manhã, já. Meus pulsos tinham sido amarrados às bordas da cama, e tinha um monte de lápis enfiados entre meus dentes. Eu sentia minha cabeça tão fraca que mal conseguia movê-la para me livrar do obstáculo e morder minha língua de vez. Meus membros formigavam. Fechei os olhos de novo, sem vontade de falar, só ouvindo.

− O que fazemos? Quer dizer, Ally ainda está suicida?

− Vai ficar por uns dias. Temos que tomar cuidado, ela pode enfiar as garras na própria jugular, ou na carótida, do nada, e se não morrer, ela pelo menos fica perto disso.

− Eu queria dizer pobrezinha, mas faria a Ally parecer uma coitada.

− Ela é, Nick. Todos nós somos. – Ouvi passos. – O que passamos, só faz revelar um monstro dentro de nós. Você tem um, também. Só não sabe. – ‘Brigada, Barbie. Valeu mesmo.

− Tenho? Qual seria a minha paranoia?

− Eu não te conheço o suficiente... Mas tenho a sensação de que você é um amor. – Eu sorri internamente. Emily e Barbie completando frases e analisando meu irmão? Quase valeu a pena viver. – Você já fez umas pela Ally, se isso for aplicado a todos, e se você passasse pela transformação, tem a possibilidade de que acabaria com complexo de Atlas ou transtorno de personalidade dependente.

− Você deveria ser psicóloga. Agora... Eu lembro de ter visto que síndrome do pânico causa medo de morrer. Então, por que ela fica suicida?

− Teoria! – Eu podia ver Barbie levantar a mão em minha mente. – Alicia também tem descaracterização durante os ataques. A sensação de não existir se torna um gatilho pra querer morrer, porque a sensação se assemelha ao estado em que a pessoa se sente pré-morte.

Eles ficaram calados, como se esperassem algo.

− Genial.

Abri os olhos de novo, dessa vez, analisando o ambiente que parecia estranho, mesmo sem nada ter mudado.

Olhei cada um. Nick estava estranho, parecendo cansado e velho, trinta anos mais velho. Ele estava sentado na frente de minha penteadeira, Emily estava do seu lado, Barbie estava aos meus pés, na cama.

Encarei os três, alternando olhares, até ter certeza de que tinha suas atenções, e cortei as cordas que me prendiam e rasguei meus antebraços com as unhas.

*

Da próxima vez, acordei com as ditas partes de meu braço todas enfaixadas, e provavelmente, curadas. Nick estava fazendo carinho na minha testa, perto da linha do cabelo.

− Oi, irmãzinha.

− O-oi – Minha garganta arranhou. Meus pulsos não estavam mais amarrados; talvez as bandagens tivessem outra função além de deixar meus cortes se fecharem. – Tem água?

Nick me passou um copo, e com alguma dificuldade, ingeri o líquido frio e acalentador. A sensação dele descendo pela garganta foi boa e melancólica.

− Está melhor?

Eu não podia negar; a sombra de querer morrer estava ali, sentadinha, no meu colo. Mas... Não era tão forte.

− Eu ainda me sinto sem razão, mas estou melhor. – Sentei-me. – Ainda... Não sei. Tudo parece menos surreal, mas não me assusta.

Ficamos calados.

− Como é? – Ele perguntou. – O ataque?

Ficamos calados, enquanto eu pensava em como o descreveria.

− Quer dizer, se não quiser me contar...

− Eu vou te contar. Mas queria escrever, também. Quero sentir que posso tocar algo.

Eu lhe indiquei onde estavam o caderno e a caneta, e lhe descrevi o que sentia sempre que tinha um ataque de pânico, as sensações, a dor no peito que vinha com os batimentos acelerados, o calor e os calafrios, a sensação de ser irreal. A visão com pontinhos pretos, meus sentidos apagando, eu desligando. O medo de morrer que me matava.

Ele leu tudo enquanto eu cutucava meu braço com o lápis. Coloquei-o na junta de meu cotovelo, sobre a veia que pulsava, sentindo o movimento suave e quase imperceptível. Se eu apertasse...

O lápis foi tirado repentinamente da minha mão, e Nick o colocou no bolso da calça.

− Para. – Ele voltou a ler, e eu só fiquei cutucando a veinha. – Você escreve bem, maninha.

− Bom, obrigada. Não que isso vá acabar tendo alguma utilidade na vida de uma não-existente. – Peguei o caderno e fiquei escrevendo coisas com a ponta do dedo.

− É, falando nisso, você tem certeza de que quer ser registrada? É arriscado, se um dia te ligarem com as pistas...

− Eles vão saber porquê eu fiz isso, não vão? Nick, eu pensei nessas coisas. O Plano – Enfatizei a palavra “plano”, pra reafirmar sua importância – Cobre tudo isso. Justifica nossos assassinatos, fecha seus casos, e já faz quase duas semanas que estamos sem Verrat. Se chegarmos a um mês e uma semana, teremos um recorde.

Nick pareceu surpreso.

− Sério? Vocês não passavam um mês sossegadas?

− E você ainda reclama de si mesmo. – Balancei a cabeça em negação e sorri, sentindo-me menos suicida. – É bobo alimentar esperanças de que eu finalmente vou poder ter uma vida normal?

Ele sorriu pra mim.

− É improvável, mas bobo não é, maninha. – Ele se levantou. – Tenho que ir, papeladas a preencher. Não faça nenhuma besteira, e... Se quiser se registrar mesmo, posso te levar sábado. – Aquele sorriso aumentou. – Estou livre e vou ser só seu.

Eu ri baixinho.

− Tchau, mano – Ele se foi e fechou a porta. Fiquei com o caderno na mão, revirando as páginas, fechando os olhos e imaginando o que poderia colocar ali.

Nada vinha. A melancolia foi voltando, me engolindo, batendo na porta e pedindo pra entrar. Eu sentia que, se ficasse presa naquele quarto, iria morrer. Precisava sair, respirar. Ter a certeza de que aquela cidade tinha me acolhido e estava, provavelmente, se tornando um porto seguro.

Mas eu tinha consciência de que seria difícil sair de casa, principalmente no meu estado pré-suicídio. Mesmo assim, vesti-me o melhor que pude, admitindo a mim mesma que seria um desperdício me matar agora que eu poderia estar finalmente livre. Tirei também as bandagens do pulso, vendo linhas grotescas e rosas nos pulsos e pelos antebraços. Dei de ombros e coloquei um blazer, passando um pouco de maquiagem em cima. Ninguém notaria.

Quando desci, Barbie pipocou na minha frente.

− Eita!

− Desculpe, Ally, mas...

− Eu sei, Barbie, não preciso do discurso amiguinho agora. – Sorri para amenizar a frase. – Não me sinto mais com aquela vontade. Não se preocupe. Eu estou bem, mas bateu uma melancolia e eu precisei sair.

− Ally... Se algo acontecer, eu vou me sentir mal porque eu pude te impedir e não o fiz.

− Por amor a você, não farei você se sentir mal e vou tomar conta de mim. – Abracei-a. – Relaxa, Barbie. Estamos bem. Eles estão do nosso lado, e a Verrat nunca mais vai tocar em nós.

Ela relaxou no meu abraço.

− Sim, Ally. Nunca mais. – Ficamos mais uns segundos ali, nos abraçando, e então nos soltamos.

− Cuidado, Alicia. Por favor.

Afirmei a ela que me cuidaria, disse tchau às meninas e me fui, subindo na moto e sentindo-me como antes. O vento, o motor.

Cada ataque de pânico fazia eu me sentir diferente. Como se eu tivesse mudado, quando não tinha. A verdade era que a sensação de morrer me deixava inconscientemente mais afetiva pela vida, e isso era a única coisa boa daqueles ataques. Eles... “Esfoliavam” a minha alma. Tiravam as cascas e carapaças que cresciam em mim como defesa. Isso era bom e ruim. E não era só isso.

As experiências mexiam comigo de um modo que eu não entendia. Mas, após uns dias, a situação ficava pra trás e ela se juntava a outras cicatrizes que cobriam o que eu tinha sido um dia.

Deixando a melancolia pra trás, perguntei-me se eu poderia, agora que estava situada em uma única cidade, e segura, comprar meus remédios para controlar o transtorno. No asilo, nós tínhamos acesso quase livre aos medicamentos que cada um de nós precisava. Hum, talvez eu precisasse arrumar trabalho também. Ficar pendurada puxando o saco da amiga rica, mesmo que fosse rica, não era lá muito legal.

Passeei pela cidade e logo, cansada, parei em uma pracinha pra observar o sol. Fiquei pensando em como estavam Nick e meu não-desejável aliado vulgo capitão até que uma presença escorregou no banco.

− Oi, gata. Você foi bem ruim de me deixar com aqueles caras e um trabalhão de noite.

Michael estava do meu lado.

− Oi, Michael. – Sorri, sentindo uma leve insinuação de um palpitar mais rápido no meu peito. – Desculpe, foi... Inesperado.

− É, eu sei. Mas não se preocupe, todos estão, provavelmente, sendo devidamente digeridos no estômago de algum animal por aí. E você, está bem? – Ele ergueu a mão e colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. Eu gostei do toque dele.

− Tô. Finalmente me estabelecendo.

− Ah, é, a coisa da Emily na tevê. Muito bom. Eu até caí por uns dois minutos de mimimi. – Ele sorriu pra mim. – Acha que a Verrat se mantém longe?

− Eu espero. Estamos percebendo uma bela folga nas buscas deles. – Retribuí seu sorriso, aquele sorriso brilhante de dentes branquinhos... Foco, mulher. – E você? Tá bem?

− Eu? É, já estive em piores, e já estive em melhores, mas tô legal. E na companhia de uma gata... É, já estive em piores.

− Você vive me chamando de gata, Deus me ajude.

− Mas você é! O que eu vou fazer, fingir que não tem uma filha de Afrodite aqui na minha frente? – Cobri meu rosto com as mãos. – Tá, tá bom, flor do campo. Eu vou passar um dia sem te chamar de gata.

− Há! Du-vi-do um muito.

− É sério, gata! – Eu quase falei, mas sua mão erguida me interrompeu: − Ainda não começamos! Podemos passar um dia juntos, almoço, janta, se você quiser, até dormir. Eu falo dormindo, aviso logo. – Eu ri pelo nariz e balancei a cabeça, mas a proposta não era ruim. Um dia... Um dia com Michael, o Homem Que Me Salvou. Comendo, passeando, conversando... Conhecendo-o melhor...

Um calor chegou ao meu peito. Michael era tão carinhoso comigo, tão... Cheio dos flertes... Seria divertido.

− Ok. Um dia. Chame-me de gata uma vez que seja e eu escolho a punição. – Sorri. Isso seria muito divertido! – Por onde começamos?

− A gente pode dar uma volta na cidade. Ei, mas a gente combinou que eu não posso te chamar da Palavra Com G... E flor? Linda? Bela? Pode?

− Não. Me chame de Alicia, só. Ou... Burkhardt. É, esses podem.

− Nem florzinha? Chata. – Ele me deu a língua. – Vamos, então.

Começamos a andar, sentindo a brisa leve que soprava pela cidade com um leve odor de rosas.

− Ei, que tal aumentarmos essa aposta? Dois dias. Dizem que um casal que consegue passar dois dias junto tem uma probabilidade bem maior de ficar junto pelo resto da vida.

− Então você quer testar se vamos dar certo como um casal?

− Ué, por que não? Quer dizer, o máximo que pode acontecer é a gente acabar passando 48 horas juntos e bem. Aí, queeeeem sabe, nós podemos continuar essa história e namorar, depois podemos...

− Ok, entendi. – Meu rosto estava pegando fogo e eu me sentia a própria Katniss. – É, vou pensar no caso. Mas enfim, puxe assunto. Eu estou... – Ele pegou meu pulso de repente. – Ai! Michael!

− O que é isso? – Ele tocou as cicatrizes rosadas em meus pulsos. – Alicia... Você... Se corta?

− Como você viu? – Puxei meu pulso de volta, e ele o soltou, mas estávamos, agora, um de frente pro outro.

− Eu simplesmente olhei pro seu pulso. Alicia... Isso...

− Foi só dessa vez – Menti, mas, ok, não era tão mentira assim. Eu já havia me automutilado... Mas... É, longas histórias. – Coisa da transformação.

− Você se corta por causa da transformação? – Ele enlaçou o braço no meu, do nada, e recomeçamos a andar. – Que tenso, g... – Olhei, pimpona, pra ele. – Greta Garbo.

− OI? – Comecei a rir, e afundei meu rosto no pescoço dele, inconsciente do que fazia. – Greta Garbo! – Minha voz saiu abafada pelo couro da jaqueta. – Michael, essa foi uma pérola!

− Ok, Greta. De Greta eu posso, né? – Eu terminei de rir, abafando o riso com a mão, e confirmei com a cabeça. – Yay, Greta! Vamos lá.

Continuamos andando, em silêncio, por um tempo, até que ele falou:

− Eu tenho ataques de raiva.

Fiquei meio confusa, mas então entendi o que ele disse.

− Sinto muito.

− Não precisa. É até bom... Mas depois vem as alucinações, eu vejo pessoas inocentes feridas... É terrível. – Ele balançou a cabeça. – Eu sei da sua psicose, você devia saber da minha.

− Mas eu não me corto por nada. Eu tenho ataques de pânico e nem sempre me corto. – Apertei o meu braço com o dele. – Também é terrível. Eu queria poder comprar meus remédios, me livrar disso.

− Talvez possamos. Talvez Portland, depois de tudo, possa ser nosso porto seguro. – Ele sorriu pra mim, e então fez uma cara de dor. – Nossa. Porto, Portland. Essa foi a pior frase que eu já disse em toda a minha vida, depois de “mamãe, eu quer fa’inha”.

− Oi? – Com muito esforço, eu consegui segurar o riso.

− É sério! Minha mãe era essa cinematógrafa amadora doida, e ela vivia gravando eu e meu irmão. Aí, um dia ela tava fazendo bolo, e decidiu nos gravar cobertos de farinha de trigo, e eu falo isso lá. “Mamãe, eu quer fa’inha.” Qualquer dia eu taco fogo nessa fita e me mato junto.

Eu ri de imaginar um Michael bebê, gordinho, coberto de farinha de trigo e repetindo a dita frase. Como será que era a vida dele antes dele ser raptado? Coisa estranha de se pensar...

Bom, ele tinha um irmão, isso estava claro. Mas e o resto? Seus pais, família... Era muito estranho pensar naquilo, que todo mundo no asilo, na verdade, tinha uma vida antes do asilo. Era como se Nira, Kevin, Michael, e todo o resto só tivessem começado a existir a partir do momento em que eu os vi no asilo. Pensar neles, como pessoas, pessoas com histórias que nem eu... E se alguém de lá, na verdade, não tinha os pais? E se uma garota dali tivesse sido uma prostituta? E se um garoto dali fosse um viciado? Aquele novo ponto de visão tinha me aberto os olhos. Nada é o que parece.

− Que fofinho, Michael. “Quer fa’inha”.

− Para, Alicia, para. – Ele balançou a cabeça. – E você? Algum podre de infância?

− Nenhum que eu saiba. Quer dizer, minha infância... É complicado. Eu sou complicada.

− Ainda bem. Adoro desafios. – Sorri. – Sabe, Alicia, isso é fácil de ver em você. Você é como uma cebola, ou um mundo de Minecraft. Você acaba uma camada e depois vem outra, só que as camadas uma hora saem. E quando elas saírem, quando eu tiver te revelado toda, então eu serei o cara mais realizado da vida.

− Estou encantada, se ignorar a parte da cebola. – Ele riu. – Mas, realmente... Você foi bem poético. E... – Eu não queria falar aquela parte, mas eu queria que ele tirasse as minhas camadas. Eu queria que ele me visse como só Emy ou Barbie me viam, ou até mais intimamente. Eu sentia uma vontade de confiar nele. De me entregar.

− Eu sei, Alicia. Mas, um dia, quem sabe, eu serei a sua faca, minha cebolinha. – Tava demorando!

− Affe, homem, não gosto de cebola. – Balancei minha cabeça em negação. – Ah, uma camada sai mais fácil se você souber cozinhar.

− Sério? Putz, eu até que sei fazer umas coisinhas... Frito ovo. – Michael deu de ombros enquanto eu ria um pouco. – Saladas, sanduíches, não sou mestre, poxa. Mas posso fazer cursinho.

− É, podemos melhorar isso.

− Uma pergunta, madame... O que acontece se eu te chamar de G-pontinho-pontinho-pontinho? – Ele passou a mão nos cabelos, aqueles cabelos lindos e bagunçados...

− Eu te punirei. – Já eu sorri maquiavelicamente.

− Como? – Ele sorriu também, e quando vi, eu estava atraída por aqueles olhos cinza escuro, cinza tempestade, cinza...

− Bom, eu não sei como te torturar...

− Seu toque já é uma tortura. – Droga, também era pra mim... E se... Meu Deus, eu não me controlaria... Quando eu o tocasse...

Estávamos perto de uma área verde, com algumas árvores ali. Puxei Michael naquela direção, para um pouco de privacidade.

Já debaixo da sombra da árvore, aproximei-me dele. Era incrível como eu sentia aquilo emanando dele... Como... Uma aura, me chamando... Pra eu me perder nele, beijá-lo e nunca mais parar.

Nossa senhora sabão*, esse seria meu primeiríssimo beijo! Eu não prestaria como torturadora, eu estava mais nervosa que ele, com certeza. Michael sorriu.

− Primeiro beijo?

− Sim. Mas fica quieto! – Ergui minha mão e toquei seu maxilar, a textura áspera da barba arranhando a pele da minha mão. Um centímetro mais perto, e nossas respirações se misturavam. Meus olhos... Estavam fixos nos dele, perdidos, engolidos por aquele charme em pessoa.

− Macia. – Senti o toque de seus dedos nas costas de minha mão. – Essa tort-

− Calado. – Segurei sua mão com a minha, usando a palma que sobrou para segurar seu queixo. Michael era bem pouco mais alto que eu, mas coloquei-me na ponta dos pés, bem pouquinho, e encostei nossos rostos.

Esses lábios...

Aproximei meu rosto aos poucos, aos poucos... Já podia sentir seu beijo, quente e hesitante, ele apertou minha mão, seu hálito me causou uma onda de calor...

E nos separei totalmente.

− Vamos? – Sorri, diabólica, vendo seu rosto ficar vermelho, decepcionado e irritado.

− Você é uma súcubo, Greta. – Ele voltou para o meu lado e continuamos.

− Obrigada. – De repente, meu celular tocou, e eu praguejei internamente. Estava tão bom! – Licencinha.

Quando peguei o aparelho, quase que enviei um belo “vai pro inferno” por ondas eletromagnéticas de volta pro capitão.

− Que você tenha um motivo muito, mas muito, mas muuuuito bom pra me ligar!

− Eu preciso de sua ajuda. – Uou. Posso morrer agora. – Vou ver um aliado hoje, à noite. Eu preciso que me acompanhe, é arriscado e você é boa com autodefesa.

− Eu passei de aliada a guarda-costas? Conveniente.

− Guarda-costas não. Respaldo. Vou te passar o endereço por mensagem, e vá vestida discretamente. De preto. – E desligou. Nenhum “de nada pela preferência”, “tchau” ou “obrigado”; só desligou. Depois eu bato nele e eu que sou ruim.

Coloquei o celular de volta no bolso e me aproximei de Michael novamente. A sensação restante do beijo veio se arrastando em mim, e eu queria abraçá-lo, e ficar perto dele pelo resto do dia, e ignorar o capitão.

E, pelo menos por enquanto, era isso que eu faria.

− Quem era?

− Um carinha chato e desinteressante. Vem, vamos continuar. – Minha barriga revirou ao me referir ao capitão daquele jeito. Caramba, ele tava me ajudando.

Quer saber? Dane-se.

− Olha, eu devo confessar... O seu castigo me tentou muito a te chamar da palavra com G, mas como eu disse que consigo passar uma dia sem te chamar da Palavra Que Não Pode Ser Dita nem derivados, vou ficar calado. – Ele mordeu os lábios e grunhiu, como se, de repente, ele tivesse se dado conta de algo. – Que saco, Alicia! Olha o dilema que você me colocou! Eu quero te beijar, mas quero provar que não sou viciado em te chamar d’A Palavra Que Não Pode Ser Dita.

Senti meu rosto queimar furiosamente. Ele quer me beijar! Michael Van Healm quer me beijar!

Enquanto eu dava pulinhos por dentro, entrelaçando meu braço com o dele e segurando sua mão, me veio, mesmo que de leve, a lembrança de um toque faiscante e elétrico, pertencente a outro homem.

− Michael... – Ele olhou pra mim. – O que você era? Antes de tudo?

Ele sorriu, compreensivamente, pra mim.

− Kerhseite Schlich-Kennen. – Arregalei os olhos. – Um dos poucos.

− Como você não morreu?

− Um golpe de sorte. Mas, no meu lote, eu era o Nira da parada. – Eu e ele rimos da comparação. – Mas eu queria não ser.

− Você comentou que tinha um irmão. Ele não foi?

− Meu gêmeo... Ezequiel. Éramos univitelinos, então éramos praticamente uma duplicata do outro. Quando nos acharam, espancaram a nós dois até o osso pra ver quem seria o mais forte, e acabou que fui eu. Por isso ele não foi, e foi surpreendente. E doloroso.

− Sinto muito.

− Não tanto quanto eu. Era como se tivessem arrancado metade de mim, a única que prestava. Ezequiel vivia pra mim e eu vivia pra ele.

− E isso, um dia, passou?

− Eu tinha pesadelos com ele todos os dias. Ou melhor, todas as noites. E me torturava, ver o meu irmão sem poder estar com ele, sentir o sofrimento dele e não poder fazer nada porque a droga da culpa era minha. Mas eu comecei a sentir aquilo sumir. E foi sumindo em mim também. E, uma noite, ele apareceu pra mim em um sonho e me disse pra seguir em frente. E eu segui.

Fiquei processando o que ele disse.

− Você... Preencheu o vazio?

− Não, ele continua aqui. Eu só aprendi a conviver com ele.

Continuamos andando.

− E você?

− Eu não sei. Senti muita falta da minha mãe, mas o pior foi ter me transformado. Eu me sentia suja e errada. Também aprendi a conviver com isso. E qualquer coisa era melhor que aquela dor.

− Que dor?

Olhei pra ele.

− A dor. Da transformação. Aquela terrível, que eu não esqueceria nem se tivesse amnésia.

− Mas, Alicia, o que eu senti foi um ardor, nível baixo-médio, e um formigamento bem pesado. Depois de um tempo, meu corpo foi ficando pesado, mas eu parecia flutuar. Até doeu um pouquinho, mas pouquinho.

Eu fiquei surpresa. Quer dizer que, de todas as pessoas transformadas, eu era a única que tinha sofrido como se estivesse sendo banhada nas lavas do inferno? (Não, shiu, não pergunte.)

− Nossa. Que sorte a minha de passar por uma dor daquelas.

− Deve ser porque você é Aquele Tipo De Pessoa, e... Bem, nós sabemos o que seu sangue faz.

− Eu só queria não ser nada disso, às vezes. Queria poder morrer e me mudar toda e...

− Calada! – Ele me puxou, como se tivesse raiva de algo. – Nunca, nunca, nunca dos nuncas diga que quer se mudar. Alicia, você é aquele tipo de coisa, pessoa ou... você é aquilo que não se pode mudar, não se pode sujar, não se pode ser nada além do que já é. Você é perfeita, você é a coisa mais perfeita que eu já vi. Não se mude, porque não há o que mudar.

− Eu já fui mudada. – Sussurrei, sentindo uma alegria melancólica e um calor no coração pelo que ele me disse.

− Mas essa mudança não te destruiu. Te melhorou, de um jeito bom e ruim. A garota que eu conheço agora, sim, é perfeita.

− Eu me corto. Eu não sou perfeita.

− E eu sou perfeitamente imperfeito. Que tal? – Sorrimos juntos. – Você não merece sofrer. Acho que finalmente poderemos descansar aqui.

− Deus te ouça, Michael!

Ficamos andando e conversando sobre coisas aleatórias, até um momento em que os assuntos passaram. Ficamos calados, enquanto eu analisava aquele homem com jeitinho de bad boy, e uma pergunta me veio à cabeça, desceu pelo escorregador da língua e pulou pra fora da boca:

− Você tem tatuagem? – Michael me olhou impressionado. – Ai, minha nossa senhora, desculpa! Essa escapou do filtro mente-boca, desculpa!

− Não, tá tudo bem! – Ele riu do meu embaraço. – Com toda a sinceridade, tenho sim. Fizemos uma depois de contrabandearem uma pistola de tatuagem pro asilo. Eu tinha dezessete anos.

− Quem conseguiu? – Eu estava curiosa. Quem era o “bando” de Michael lá dentro?

− Lembra do Shannon? – Afirmei. – Ele era uns dois anos mais velho que todo mundo, e tinha saído pra fazer algo lá pelas bandas dos nobres. Ele voltou com uma pistola daquelas e tinta preta.

− E você tatuou o quê?

− Uma triskele. – Fiz cara de confusa. – Três espirais, em disposição de triângulo. Entre as minhas omoplatas, com 12 centímetros de comprimento entre as espirais. Tem vários significados, mas... Bem, enfim, você não quer ouvir o resto.

− Eu quero, mas, me chame de burra, eu não consegui imaginar. Quer dizer, primeiro eu imaginei de um jeito, depois de outro, agora estou na dúvida. – Burra, burra!

− Se quiser, eu te mostro qualquer dia. Mas as espirais estão onde seriam os vértices do triângulo, todas convergindo pro centro.

Aí sim eu conseguia imaginar, e, pô!, era bem bacana. Era... A cara dele.

− Qualquer dia você me diz o que significa. – Sorri. – E está me dando fome.

*

Depois de uma troca de acordos, Michael me levou pra uma lanchonete, que eu queria, e eu deixei ele pagar nossos x-saladas. Então, estávamos andando com nossos almoços super saudáveis, bicando nossas cocas e comendo aqui e ali quando achamos um banquinho pra sentar.

− Ai, meus pezinhos – Ele reclamou. – Sinto-os doídos.

− Vamos descansar. Mas eu não estou mal, olha – Mordi o hambúrguer, saboreando o gosto. Era bom ser uma garota mais... Frouxa, sem comida chique, andando por aí com um cara, simplesmente. Eu me sentia meio rebelde, jovem, e má. – Estou aguentando mais que você.

− Vamos lembrar que você já teve que correr muito por aí pra escapar dos nossos coleguinhas, querida. Eu sou mais stealth, chegar na discrição e quebrar cabeças. – Ele sorriu. – Sou ninja.

− Tá certo. Mas eu prefiro ser ninja quando ainda não me perceberam. E quase nunca é o caso.

− Poxa. Daríamos uma boa dupla. Eu matando discretamente os inimigos enquanto você distrai quebrando caras e dando um show de feromônios pros machos. – Ergui as sobrancelhas, na minha melhor cara de “what the fuck?”. – Quer dizer, não é que... Mas você fica super sexy lutando, eu me lembro nas análises de luta que faziam da gente. – Multipliquei meu rosto wtf a mil pra ele. – Bom, se você não gosta de ser sexy lutando, então pode distrair os caras só quebrando a cara deles. Já tá ótimo assim.

− Finalmente. Obrigada. – Na verdade, eu estava meio lisonjeada por ter sido chamada de sexy por um cara que também era sexy.

− Por nada, parceira. Quem é Batman sem Catwoman, no fim das contas...

MEU DEUSO!

Ele, por um acaso de nossa senhora sabão de coco, sabia que eu shippava esses dois? Por favor! A Selina é PERFEITA pro Bruce e ponto! Mini-gatinhos-voadores AGORA!

Respirei fundo, até porque eu adorava o estilo da Catwoman, e se ele fosse o Batman, a gente acabava sendo automaticamente shippado... Mas... Dei uma analisada de canto no Michael. Não seria ruim eu ser Catwoman se ele fosse o Batman...

− Verdade... Afinal, eles são uma boa dupla.

− E eles tem um relacionamento bem íntimo, sabe. Naquele nível, a Catwoman até teve um sonho acordada de casar com o Batman...

Opa!

− Bom, não é como se ela não tivesse razão... Vamos lá, ele é sexy. – Sorri pra ele e terminei meu almoço atrasado, dando bebidinhas na coca aqui e ali.

− Sexy, é? – Ele também tinha terminado. – Gostei dessa. − Nossos olhares se prenderam um no outro, um sorriso aflorando em nossos lábios. Coloquei a mão entre nós, bem clichêzona, ele colocou a mão perto da minha...

Meu celular apitou.

AH MAS VAI PROS CAFUNDÓS DE JUDAS TOMAR CHÁ COM O CAPIROTO CAPITÃO SLENDER MALDITO*!

“Lotus Café, 8:00 p.m”

Tá bom, né! Nenhum agradecimento, mensagem, agradinho? Nada mesmo?

Revirei os olhos e levantei.

− Vamos continuar? – Ele sorriu e continuamos, de fato, enquanto eu lhe perguntava quais outros heróis ele era fã e com quem ele os shippava...

Aí me ligaram.

Infelizmente, não era o capitão Slender maldito, e sim a Barbie.

− Você não vai voltar?

Oh vida, oh vida. Eu nem poderia passar o tempo com o Michael? Ver se ele ia me chamar de gata? Caramba, meu BV tava dependendo disso!

− É, eu achei que não precisaria... Já comi por aqui mesmo. Eu nem ia voltar pra casa...

Mas Ally! A gente tava preocupada!

− Mas não precisam ficar. Estou com o Michael. – Fôlego preso. – Quero ficar com ele por causa de uma aposta. E quero ganhá-la.

− Oh, uou. Bem, se for voltar, me ligue. Não faça nada estúpido.

− Não vou, prometo. – Desliguei o telefone. – Pra onde vamos?

− Bom, Greta, eu estava pensando em andarmos pela cidade para acharmos a paisagem mais linda possível e irmos aos pulos em sua direção.

− Bom, não tem nada melhor, né. – Ele se fingiu de ofendido. – O que prova que sua ideia é ótima, se for pensar!

Ele franziu as sobrancelhas por uns segundos.

− É verdade. Vamos? – Enrolei o braço com o dele e voltamos a andar. – Santa mãe da bicicletinha, o que eu não daria por um carro.

− Você poderia tentar comprar um. – Michael me olhou com uma cara que dizia “maninha, tu tá lesa?”. – É, ia demorar, mas não podia tentar?

− Acho que não, Ally. Mesmo que Portland tenha se tornado segura, ainda somos assassinos. Eu prefiro não correr riscos.

− Pois eu quero. Eu quero... Sei lá, quero poder me sustentar, começar a trabalhar, ter uma casa só minha, quem sabe... Encontrar algum cara que goste de mim.

– Como você acha que teria sido sua vida se você não fosse... O que é? Eu vivo pensando nisso.

− E o que você acha?

− Acho que eu teria ficado ao lado do meu irmão, e mesmo que tenhamos conseguido uma carreira boa, tipo direito, ainda estaríamos pensando, lá no fundo, em sermos jogadores de basquete. E acho que seríamos tipo uns bad boys, mas não baaaad. Tipo, só com jeito, mesmo. E você?

Eu fiquei pensando em como seria se eu fosse uma mulher normal. Se eu tivesse estudado... O que será que eu seria? Eu gostava muito de escrever, mas também tinha um apreço por medicina ou direito. A ideia de me sentir poderosa e defensora de quem precisa no tribunal, discursando para ganhar meu pão parecia atraente. Ou de salvar pessoas. E falei:

− Acho que eu seria uma mulher comum... Estudaria, conseguiria um trabalho, algo em medicina, ou até escrever. E, quem sabe... Talvez encontrar um homem que eu amasse pra, talvez?, ter uma família. E seria interessante ver meus filhos crescerem e terem netos, e meu marido do meu lado pra ver nossos netos... Sabe... Eu penso nisso.

Michael sorriu comigo.

− Bom, pena que nós não podemos ter filhos. Queria ver como seriam suas crianças, Greta. – Eu senti meu rosto queimando. Em que sentido ele tinha dito nós? “Nós”, os Mehinstinktes, ou “nós” eu e ele?

− Bom, é uma pena mesmo. Mas eu imagino... A minha filha, igual a mim, sabe? Tipo, uma mini-eu com os olhos do meu marido... – Ruby.

Mas eeeeita, freio, mulher! Desde quando o capitão Slender maldito é seu marido? Nunca! NUNCA! Mulher de um cara daqueles, prefiro casar com a Nira, beijo.

− Que fofinha! Acho que... Eu ia querer ser o padrinho. – Ele me sorriu, e eu sorri de volta.

− Michael... – Engoli em seco. Aquilo ia ser arriscado. – Acho que você seria o pai.

Ele arregalou os olhos, parecendo se deliciar com aquilo.

− Eu adoraria ser o pai, Greta. – Ele se aproximou de mim. – Ga.

− Vai completar?

− Não... – Ele se esticou pra trás. – Foi só pra matar a vontade. – Ele sorriu. – Já que eu seria o pai, vamos planejar, de zoeira. Só uma filha? Eu queria mais. Três.

− Caramba, pra quê tanto?

− Oras, dois meninos e uma menina. Aí eles podem protegê-la quando eu não estiver por perto.

− É, ok então. Uma menina... Escolhe o nome dos meninos primeiro. – Porque a menina era MINHA! – Eu escolho o da bebê.

− Hum... Tem que ser nomes parecidos... – Ele ergueu os olhos pra pensar. – Cara, não consigo. Me dê um tempo. – Ele franziu as sobrancelhas por uns segundos até dizer: − Elijah e Isaac. Que tal?

− Ok... Um é um vampiro Original lindo, o outro, um lobisomem cheio das echarpes. É, eu gostei. – Ele faz carinha de ciúmes.

− Poxa, você só gosta porque os caras que tem os nomes são bonitos. Ofendido. – Ele fez biquinho e eu ri.

− Ok, ok, desculpe. Tá, a menina... Elijah... Isaac... – Eu queria falar o nome dela. Queria, queria, queria, mas parecia que as letras estavam grudadas em minha língua como velcro. Eu simplesmente não conseguia; era como se dizer o nome dela, sendo filha de outro homem, fosse quase uma traição. Sem conseguir dizer Ruby, acabei pensando em outro nome: − Isabel. Combina com Isaac. Ou Savannah. Eu gosto de Savannah.

− Savannah é nome de uma cidade, mas é legal. Isabel Savannah. Que fofa. – Ele pegou um cacho meu nos dedos, alisou e soltou. – Não tem muito o que decidir nas aparências, somos parecidos.

− Mas eu ia querer a Isabel com o seu cabelo, lisinho.

− Ela ia ficar linda. E com seus olhos. – Michael encostou a perna na minha, balançando-a. – O seu olho vermelho, o meu laranja. Ou... Não, ficou horrível.

− Só não pode ser vermelho e verde! Ia ficar parecendo semáforo. – Nós rimos, mas a piada tinha sido horrível. Ele tinha acabado de ganhar um lugarzinho no meu céu. – Elijah, Isaac e Isabel. Eu gostei deles.

− Eu gosto de você, Grimmzinha. – Ficamos quietos e calados, olhando para o céu e pensando.

Mas, caramba, qual tinha sido a dificuldade de dizer Ruby? Era um nome, como qualquer outro, não era sagrado nem nada.

Mas era o nome da minha filha, da minha verdadeira filha.

E, segundo cores de olhos vistas em sonhos, filha do capitão também.

Mas, ah, que idiotice. Primeiro, em minha sã consciência, eu não dormiria com o capitão. (Tanto por não querer quanto por causa do tamanho dele... Gente, aquele homem é enorme! Ele poderia me esmagar! Medo!) Segundo, eu era estéril. Estéril é igual a não ter bebês. Sem Ruby, Elijah, Isaac ou Isabel que fossem; eu não teria.

Triste.

Terceiro, alguém aí tente perguntar se o capitão queria ter filhos comigo! Ele riria de primeira. Eu e ele éramos tipo... Água e óleo. Óleo de carro, de preferência. Obrigada.

− Que horas são? – Perguntei, finalmente caindo a ficha de que eu precisava voltar pra casa às cinco, pelo menos.

− Com sinceridade, eu não sei, bo... Bonnie Bennett! Rapaz, eu tô raspando hoje. – Michael suspirou de alívio. – Que saco.

− Ok. Vamos conversar. Como era sua vida antes do asilo? – Virei-me pra ele. – Quero conhecer o pai dos meus filhos melhor.

− Poxa, já? Ok então. Huuuum... – Uma pausinha enfática. – Eu era um menininho feliz, basicamente. Morava com meus pais e era vizinho da minha avó, e cara, ela era a melhor avó do mundo. A clássica vovó, que sabe cozinhar muito bem, sabe de plantas e remédios caseiros, com uma poupança goooorda de grana e que é muito carinhosa com os netos. Ela nos adorava. A gente morava numa casa clássica, bonita, com umas cestas pra basquete lá na frente. Meu pai era meio desmantelado, mas boa gente, só não conseguia... Se ajeitar. Mas a minha mãe sempre ajudava ele. Eu tive uma vida bem normal, pra falar a verdade. Acho que só. E você?

− Garotinha sem registro de existência, sobrevivendo com a mãe, sem saber o que era ter uma família grande e amorosa, nem o que era dormir em uma cama decente, nem o que era ganhar presentes de natal ou ir à escola. Sabe, bem normal. – Ele estava com uma carinha triste.

− Sinto muito. Eu não...

− Tá tudo bem. – Ergui a mão para barrar a onda de desculpas que vinha. – Eu já subi de nível. Estou melhor agora, com certeza. – Graças ao meu irmão. Estou muito melhor, mesmo. Pronta pra recomeçar.

− Olha... – Olhei para ele, surpresa com seu tom de voz. – É que... Com toda a sinceridade... Eu posso fazer parte desse recomeço?

Eu podia ver esperança nos olhos dele. Algo claro, que fazia um luzinha brilhar através daquelas nuvens de tempestade.

Suspirei internamente. Ele era... Tão fofo. E carinhoso, e uma gracinha. E me tratava bem.

− Claro que pode. – Toquei o rosto dele. – Por que não poderia? Acabamos de planejar três filhos juntos! Pense, Michael, pense.

− Ah, sim, claro. Desculpe. – Ele ficou de pé, se alongando. – Linda, não sei quanto a você, mas eu estou ficando sem ideia do que fazer, e perdoe-me por isso, mas entediado. – Deixei ele terminar, enquanto o olhava de um jeito malvadinho. – Que foi? – Continuei calada, e ele entendeu. – Aaaaah, capeeeeta! Perdi! Não acredito!

− Acredite. Está na hora da tortura. – Olhei em volta, procurando um cantinho mais isolado. Tinha um bequinho entre duas construções; talvez servisse.

Fomos pra lá e eu lhe empurrei contra a parede, deslizando as mãos sobre seus ombros.

− Você tem que ficar parado. Se você se mexer, eu te dou um beliscão. – Desci as mãos pelo seu tronco, chegando ao cós da calça; engatei os dedos nos passadores e puxei-os com força, jogando seu quadril contra o meu. Inclinei-me para recostar meu corpo no dele, respirando perto de seu pescoço, insinuando beijinhos. Ele estava tenso.

− Alicia... Não faz isso, eu não vou conseguir ficar parado... – Michael parecia pedra enquanto eu me movimentava perto dele. Meus dedos foram arranhando o jeans enquanto eu os tirava devagar dos passadores e os deslizava por dentro da barra da camisa, com carinhos e arranhadinhas pequenas. Desci minha boca para a clavícula dele, encostando a ponta do nariz, fazendo carinhos com ele. Ouvindo sua respiração forte, dei um risinho.

Mas ele me jogou contra a parede e passou a pressionar meu corpo com o seu, nós dois subitamente muito próximos. Seus olhos brilhavam da woge e de algo estranho, quente.

− Não brincasse comigo antes, Alicia Burkhardt, você pode se tornar o brinquedo. – Ele encostou a testa na minha, o rosto no meu. Faltava um nada pra nós nos beijarmos. – Lembre-se que Mehinstinktes são animais de muitos instintos. E muito mais propícios a segui-los. O que significa que eu posso arrancar suas roupas aqui e te fazer minha antes que alguém perceba. – GENTE!

Eu estava ofegante pela pressão que ele fazia em mim, e eu sentia nossos corpos MUITO próximos, especialmente nos quadris, e minha nossa senhora sabão eu tava quase beijando ele e...

− Ei, eu quero que meu primeiro beijo seja melhor que isso, ok? Mas está bem gostoso aqui. – Remexi-me para nossos corpos se pressionarem mais, só insinuando algo. – Mas, bem, ainda teremos muitas chances... – Ele sorriu, o melhor sorriso Colgate que eu teria a chance de ver na vida, e...

MAS QUE DESGRAÇA DE CELULAR! AAAAAAAAAARGH!

Era o capeta de terno.

Suspirei, com o aparelho na mão.

− Atende, gata, pode ser importante. – Ele deu um apertinho na minha cintura. – Ainda terão muitos dias pra nós dois repetirmos isso.

− Ai, Michael. Amém. – Atendi a droga do celular, quase dando um pontapé nele. – Que é, diabo?

Só achei que seria bom a gente conversar antes de irmos pra lá.

− Mas são só... – Olhei no visor do coisinha. – Cinco horas. Meu Deus. Como que passou tão rápido?

Talvez qualquer coisa que você esteja fazendo tenha feito o tempo passar rápido. Deve ser bem interessante. – É, pela primeira vez eu tinha que concordar com ele. – Você vem?

− Não estou a fim. – Mas talvez eu fosse. Não; eu teria que ir. Eu estava lhe devendo uma. – Nos vemos mais tarde.

Guardei o trocinho barulhento de volta no bolso.

− É, querido, não foi dessa vez. – Dei de ombros e Michael se desencostou da parede.

− Mas pode ser um dia, né? – Ele colocou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. – Quer dizer...

− Claro que pode. Nos vemos qualquer hora, gato. – Pisquei para ele, fazendo questão de rebolar um pouco enquanto me afastava.

Só garantindo os encantos.

*

− Oi, stalker. – Renard estava realmente como tinha dito que deveríamos estar: de preto. Ele ficou me encarando por dois segundos antes de me dar passagem.

− Olá, queridinho. – O ambiente já era tão familiar, eu podia andar de costas e com os olhos fechados que não bateria em nada. – Então, qual a missão impossível de hoje?

− Eu já disse. Preciso ver um companheiro. É uma chance única ele poder vir, e eu preciso saber o que está acontecendo entre as Famílias.

− E eu sou a guarda-costas. Liiiiindo. – Cruzei os braços e encostei-me na parede, ainda sentindo as coxas quentes de quando Michael me empurrou contra o prédio e sussurrou aquelas coisas pra mim.

− Não, você não é guarda-costas, você é minha aliada. Se estamos realmente do mesmo lado, não tem problema e é até melhor você saber o mesmo que eu, e além do mais, seria interessante você conhecer outro aliado meu, outra pessoa do nosso lado.

− Lembre-se que eu só estou nessa jogada toda por causa do Nick. Vocês poderiam todos se matar que eu não me importaria. – Dei de ombros, mas Renard já estava pegando o casaco.

− As coisas não são assim, Alicia. Você não pode só ficar parada. Não no nosso mundo. E como eu me sinto nessa obrigação, como homem, vou te dar carona. – Ergui as sobrancelhas, surpresa. – Sem discussão. Você vem no meu carro e pronto. Não vou tentar te estuprar no caminho.

− Ah, não, isso não. Obrigada.

Pelo momento, os direitos sexuais sobre minhas partes íntimas ainda eram do Michael. Conscientemente.

*

Fomos bem quietinhos no carro, uns mini-flashbacks da primeira vez que estive ali. Eu tive que abrir um pouco a janela, porque (gravem esse momento, só farei isso uma vez) por mais que eu o odiasse, eu tinha que admitir: aquele cheiro dele, pelo carro todo, era inebriante. Masculino, amadeirado, amargo. Era até sensual.

Não, Ally, quê isso. Lembra, é o cheiro de uma hexenbiest, de forma natural*. Ele ainda é híbrido... Mas caramba, ele tem um cheiro sexy. Que... Affe, ele poderia ser seu pai, Ally! Foco, foco... Sua mãe nunca ficaria com ele. Relaxa.

Mas, nossa... Acho que... Eu, por pouco...

...

Vou me atirar na frente desse carro. Desculpa, Ruby.

...

Pelo amor, o cheiro dele é viciante. Quase uma droga... Força, força... Se fosse outra, aposto que ela já teria lhe feito parar o carro...

Eu só preciso sair daqui. O cheiro dele em si não é tão forte, mas o carro tá cheio dele... Del-

− Alicia! – Senti o toque dele em minha mão e dei um pulo de bater a cabeça no teto do carro. As faisquinhas ficaram flutuando no ar e correndo pela minha pele. – Tá tudo bem?

Eu estava ofegante, então ajeitei o cabelo e tratei de controlar a respiração.

− É, é, tô bem. – Puxei minha mão. – Chegamos?

− Chegamos, mas você estava respirando fundo. Achei que estava... Passando mal, não sei. – É, eu estava. Passando mal de sentir esse seu cheiro de deus grego, de sexo andante, de puro tesão, serve?

− Estava? Nem percebi. – Engoli em seco. – Vamos logo.

Saímos do carro, e o ar fresco e frio de Portland foi tanto um alívio quanto uma tristeza. O cheiro dele era desagradavelmente bom. Um pouco menos de autocontrole e eu e ele não sairíamos daquele carro. Se fosse qualquer outra mulher com faro apurado, ela não teria se aguentado. Mas tem eu.

MINHA NOSSA SENHORA SABÃO EU NÃO QUERO ELE NU NA CAMA EU SÓ CURTI O CHEIRO DELE!

O local estava com uma quantidade de gente boa, e ele me deu espaço para ir na frente, me guiando com uma mão no ombro. Fomos pra uma mesa no cantinho, onde tinha um carinha gracinha sentado com uma taça do que me parecia ser Martini Rosato. (Quê?) Sean dispensou a mulher muito educadamente.

Nos sentamos, e o carinha ficou encarando.

− Bom ver que ainda está vivo – Renard começou. – Ela é uma aliada.

− É bom estar assim também. – Ele acenou com a cabeça pra mim. – Devo passar o final de semana em Veneza, ficarei no Cipriani. Bruening está no meu lugar.

− E como ele está?

− Nervoso. – Fiquei entediada tão rápido que, pra evitar dormir, fiquei olhando o espelho ao nosso lado. Um cara chegou com uma maleta, colocou-a do lado do balcão e se sentou. Ele estava... Não, parecia normal. É, simplesmente um cara que tinha saído do trabalho e queria beber.

− Para onde meu irmão está estendendo sua influência? – Sean perguntou. A voz dele me trouxe da distração, e por algum motivo meus olhos foram pros olhos deles, só que fiquei tão desconfortável que comecei a olhar a taça.

− Em Guangzhou*, volta em dois dias.

− E o que estamos fazendo aqui? – Sean era todo perguntas, perguntas, "blá blá blá eu mando aqui”. Eu já ia dar um tapa na cara dele pra botar esse vadio no lugar. Bastardo.

− A situação se agravou. – Pera, espelho, tem fofoca por perto. Já volto. – Os governos estão cheios de conspirações, e conspirações dentro de conspirações. Ninguém mais sabe precisamente quem está controlando o quê. Mas, agora, suspeitamos que seu irmão e as outras Seis Famílias estão por trás de um esforço para dissolver a União. – Ouvi um bip esquisito. Olhei em volta, mas tudo parecia igual. O cara da bebida não havia tomado um gole do copo à sua frente. – Temos documentos secretos de seus planos para tomar as rédeas do poder de qualquer maneira que for precisa. Se os meios legais falharem.

Uma coisinha prateada pequena foi colocada em cima da mesa e deslizada, do carinha para o Renard. Ele pegou a coisinha, apoiando-a em seus dedos, e eu percebi que era um pendrive minúsculo. Gente, eu perderia aquilo assim, ó.

− E o jogo de xadrez começa. – NOSSA. QUE TÍPICO. VOU BATER NELE.

− Os nomes dos envolvidos estão encriptados. Conseguimos identificar alianças e apoios.

− O importante para nós é permanecermos fortes e não assumirmos compromissos que possam enfraquecer nosso relacionamento com a Resistência. – Algo no jeito do mais alto falar, o “nós” dele, o jeito que ele meio que excluiu a Resistência do jogo todo... O carinha parecia bem especial pra ele. Como se os dois fossem parceiros foreveeeer. – Voltei a olhar pro espelho. O cara tinha tomado um só gole, estava com um rosto tenso. A barulheira diminuiu, e ouvi outro bip. Que diabo?

Respirei fundo e puxei o cabelo pra frente do rosto, escondendo minha woge lateral, aguçando minha audição.

− Alicia, tudo bem? – O capitão me perguntou, e quando vi, os dois me observavam.

− Tudo. Voltem a conversar. – Realmente, tinha um bip bip bip contínuo vindo de algum lugar por ali. Ele estava meio abafado...

− Esse relacionamento me incomoda demais. Alguns morrem sob tortura, e outros falam. Ninguém confia de verdade no Meisner e nos métodos que ele formulou durante seus dias de vadiagem em Viena. O que ele quer é fortalecer a própria posição, sem se importar com a nossa. – Concentrei-me. De onde aquele bip...

Deitei o rosto na mesa, esperando que o chão e toda a matéria me ajudassem a ouvir melhor, mas foi quase inefetivo. Pelo espelho, vi o cara se levantando...

Meu Deus.

− Nós precisamos do Meisner. Pelo menos até não precisarmos mais. Eles disfarçam o que realmente querem, que é o fim da democracia e a volta do imperialismo, e todo o seu poder e privilégios.

Era uma bomba.

Fiquei reta o mais naturalmente possível, e com os olhos fixos na imagem do homem, falei:

− Sobretudo claro saindo, pasta no canto do balcão. É uma bomba. – O carinha ficou impressionado (parecia) com aquilo, e os dois poderiam me perfurar com os olhos. – Me deem uns segundos...

− Alicia, você tem certeza? – Renard me perguntou, mas eu não respondi essa pergunta.

− Vai atrás dele!

Levantei da mesa assim que o cara saiu, só ouvindo o moreno dizer pro companheiro “abaixe-se!” enquanto eu corria, ou andava bem apressadamente, pelo corredor. Ele estava livre, então pude pegar a valise fácil.

Desviei pra outro corredor, um que acabava na porta dos fundos. Empurrei uma garçonete que estava no meu caminho de volta e praticamente me joguei contra a porta.

Bip bip bip bip bip.

Calada, coisa infernal!

Com um movimento do braço, joguei a pasta para longe e para cima, e desviei o rosto, transformando-me toda meio segundo antes da bomba explodir e me atirar contra uma mesa, virando a ambos e acertando dois caras bebendo cerveja.

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Só ouvi um fuzuê de gente pirando e correndo, enquanto eu sentia cacos de vidro causando cortes na minha pele e carne, alguns entrando e ainda cortando as áreas que estavam tentando se regenerar antes que elas os expulsassem naturalmente. A explosão...

− Você está bem? – Era o carinha, que continua sem nome. Voltei ao normal, sentindo meu corpo todo fraco.

− E-estou... – Meu corpo estava trêmulo, mas consegui me ajeitar, sentindo coisinhas afiadas caírem no meu colo, alguns com sangue. – Cadê ele?

Ouvimos tiros lá fora, pessoas gritando, ofegando, surpresas.

− Qual seu nome? – Ele tocou minha maçã do rosto, que tinha um corte causado por um pedaço de vidro. Poderia ter até outra bomba...

− Sebastian. – Vasculhei meu rosto por cacos de vidro, sem achar mais nenhum intrometido. – Como você ouviu a bomba?

− Habilidades. – Ele sabia, obviamente, mas se eu wogasse pra ele tudo provavelmente acabaria. Eu estava ficando nervosa. Tinha outra bomba? Aquele cara...

Ele era Verrater.

Mas eles... Meu Deus... Eles ainda estavam... Eu não estava... Ainda não era...

E tudo começou.

− Ele tentou me matar... – Eu sentia aquilo. Meu peito começou a doer. Um calafrio me transpassou, gelado como uma faca que estava no freezer. – Ele era... Ele era... – Comecei a tremer mais ainda, comecei a me sentir desesperada. Eu precisava fugir. Meu corpo também estava esquentando... Minha visão foi escurecendo...

Ouvi Renard me chamar, senti seus braços me pegando, me puxando pra perto. Seu cheiro sexy penetrou em meus pulmões, mas eu não estava nem conseguindo respirar direito. Eu estava suando. Estava alucinando. E logo, nem mais estava sentindo.

− Fica comigo, Alicia, fica comigo – Sua voz estava tão perto... Achei que ele estava me segurando perto, seu rosto próximo à lateral do meu. – Pronto, querida... Eu tô aqui... Eu tô aqui... – Parecia que eu estava sendo erguida; agarrei-me nele imediatamente, encolhendo-me em uma bolinha perto ao seu peito, ouvindo meu coração bater nos ouvidos... Ou era o dele?

Eu estava chorando? Tudo estava ficando irreal demais, estranho demais. Eu via as coisas passando por nós, mas não prestava atenção. Logo, estávamos em seu carro, no banco de trás. Sua mão segurava firmemente a minha, e ele parecia não ligar que eu estava suando profusivamente.

− Alicia. – Eu já estava me acalmando, mas a ideia não saia da minha cabeça. Verraters ainda tendo permissão para entrar em Portland... Eu não estava segura. – O que foi? Por que você está assim?

− Portland! Eles ainda vêm pra cá, ainda podem me matar! – Minha respiração parecia socos feitos de ar, entrando e saindo de meus pulmões. Tentei focar meu olhar nele. Ele estava com dois dedos sobre meu pulso, mas eu não me liguei naquilo.

− Por favor, não me soque por isso, porque é pro seu bem – Eu nem consegui processar as palavras dele, mas de repente ele estava quase colado comigo. Seu rosto também. E seus lábios.

Ele estava...

Me beijando?

Eu paralisei.

Capitão Renard.

Beijo.

Capitão Renard?

Beijo?

Como se coloca essas duas palavras em uma frase só?

Eu nem respirava mais, de tão estranho. Nossos lábios só se tocavam, mas ele fez com que se encaixassem, e eu senti de levezinho o gosto dele. Lembrava chocolate amargo, café... E uma pitada de algo selvagem. Algo feroz, arriscado. Como o cheiro dele, que eu não estava mais sentindo por ainda não estar respirando. E meus olhos foram fechando.

Meio sem noção de qualquer coisa (eu juro que quase não lembrava meu nome) eu levei a minha mão ao seu ombro, querendo empurrar, querendo segurar. Mas eu estava tão inerte que minha mão só ficou ali. Senti a sua outra mão segurando meu pulso, como se quisesse medir meus batimentos cardíacos. Mas seus dedos pareciam estar fazendo movimentos...

Depois de mais alguns segundos, ou dias, ou anos, ou eras ali, ele separou os lábios dos meus.

− Pronto. Desculpe por isso, mas você estava respirando muito rápido e tendo uma taquicardia, e eu precisava desacelerar seu coração. – Pisquei duas vezes. Eu não tinha entendido.

− O quê? Como assim? O que...

− Diminuir o fluxo de oxigênio que entra no organismo acaba desacelerando o coração. E quando se beija alguém, a pessoa para de respirar. – Era verdade. Eu estava respirando mais normalmente agora. E estava mais calma.

− Você conseguiu parar meu ataque de pânico. Como? – Eu estava surpresa. Eu não me lembrava das meninas já terem feito algo parecido.

− Primeiro eu te tirei de lá. O pânico causa a reação de lutar ou fugir, e você estava mais pra fugir, então precisávamos sair de lá. Segundo, eu tirei sua mente do que te preocupava quando te beijei, o que acabou te acalmando. – Estava me dando um sono, também. Encostei-me no carro.

− Obrigada... Estou melhor agora, mas estou com sono. Eu não quero dormir... Se eu dormir eu morro... – Fui recostando-me nele, de soninho, e ele me abraçou.

− Não vai não, eu tô aqui.

− Mas sono... É que nem morte... E morte é que nem sono...

− Você não vai morrer. Amanhã eu vou te acordar. Dorme, Alicia, pode dormir. Eu vou ficar aqui com você.

*Renard*

Já era quase uma da manhã e Alicia dormia, toda bonitinha enrolada em cima de mim. Eu não. Estava muito confuso pra dormir.

Alicia tinha tido um ataque de pânico. Nunca que eu adivinharia que ela teria esses problemas, mas vê-la tremendo, apavorada, foi quase... Foi tocante. Ela, uma vez na vida, pareceu indefesa.

Eu simplesmente não pude deixá-la ali, sofrendo daquele jeito. Foi como se ela tivesse tocado minha parte mais humana e eu quis ajudá-la, protegê-la. Quase instintivo.

Quanto ao beijo, eu não iria mais tocar naquilo. E preferia que ela fizesse o mesmo, mas eu sabia que não. Mesmo assim.

Aquela atitude só teve uma intenção: diminuir o ritmo da respiração dela. Mas foi estranhamente carinhoso... Ou não? Eu não entendia mais nada. Eu e ela não tínhamos nada em nenhum nível fora uma aliança frouxa. Então...

Ela se mexeu sobre mim, e suspirou. Aquela garota.

O que quer que tivesse mudado em mim, eu iria manter aquilo guardado e trancafiado no mais fundo de minha mente. Com tantas conspirações, vingança e negatividade em que se baseavam a minha vida, aquela fagulhinha brilhante iria ser massacrada.

Mas talvez não fosse o que eu queria.