O som gutural invadiu meus ouvidos, despertando-me com um sobressalto. Enquanto roboticamente calçava os chinelos acolchoados e tateava pelo escuro até a estreita porta, reconhecia os gritos e gemidos como quase habituais.

— Steve... Está tudo bem. Ei, você está bem. — murmurei delicadamente enquanto afagava seus cabelos loiros, empapados de suor.

Parecia que a cada vez ele levava mais tempo para acordar de seu transe. A toalha e a bacia de água já se encontravam em seu criado mudo, e enquanto umedecia sua testa com a toalha, Steve abriu os olhos, cristalinos e assustados.

— Você está seguro agora. — afirmei maviosamente.

— Foi horrível, ele... — Steve balbuciou.

— Foi só um pesadelo. — interrompi-o, pois tinha medo de que ele adentrasse em estado babélico novamente.

— Não, Nat, não foi só um pesadelo. — eu podia sentir todo o pesar em sua voz, como se fosse sólido e pairasse sobre nós.

Naquele momento tudo que consegui fazer foi aninhar meu corpo no dele e suspirar. Sua respiração tornava-se mais lenta, e começava a compassar com a minha.

Fazia quase um mês desde a batalha em Wakanda. Steve, eu e os outros Vingadores que restaram retornamos a Nova York. Thor e Bruce retornaram à Torre junto de Rhodes, mas Steve não se sentia confortável em abrigar-se lá na ausência de Tony, sem nenhuma resolução do confronto entre os dois. E é claro, eu não poderia deixa-lo sozinho. Por dois anos e meio fomos nós dois e Sam, e nossa conexão era demasiada profunda para ignora-la.

Desde então, estávamos todos com intensos danos psicológicos, frutos de assistir mais de metade de nossos amigos desmancharem-se em cinzas. Das vezes que visitei Thor e Bruce, reparei sinais de exaustão e dor, mas minha convivência com Steve me levava a acreditar que ele era o mais impactado de toda essa situação. Seus pesadelos constantes e o desalento para exercer qualquer atividade me convenciam de que ele desenvolvia um quadro de depressão.

Quanto a mim, eu ainda não havia me dado espaço suficiente para sentir toda a dor. Acreditava que se a suprimisse, se a escondesse por trás de milhares de camadas de falsa estabilidade, ela desapareceria. Nunca fui do tipo que realmente sentia a dor, sempre preferia reprimi-la. Além disso, eles precisavam da minha ajuda, aqueles que restaram. E ainda mais, temia que se me permitisse derramar uma lágrima, elas nunca cessariam.

Quando acordei novamente, foi com um feixe de luz que atravessava uma brecha na cortina. Steve não estava mais ao meu lado, e levantei-me num salto, preocupada com seu paradeiro. O aroma de panquecas subiu por minhas narinas quando sai do quarto. Steve estava na cozinha, desajeitadamente preparando o café. Sorri aliviada. Fazia um bom tempo que ele não se levantava por livre espontânea vontade, e muito menos cozinhava.

— Acho que isso vai melhor com música, você não acha? — disse enquanto colocava o disco favorito de Steve no vinil que ele tanto apreciava.

Ele esboçou um sorriso, e eu juro que faria de tudo por momentos como aquele, que infelizmente tornaram-se tão raros. Comecei a mexer meu corpo levemente no ritmo da música, um jazz tranquilizante, enquanto ajudava Steve cortando os morangos.

— Deveria ser uma dançarina de jazz. — ele debochou com um sorriso no rosto.

A luz do sol iluminava seus traços delicadamente, e aquela imagem fazia meu coração descompassar-se.

Steve e eu nos envolvemos em um caloroso relacionamento durante os anos pós separação dos Vingadores. E nunca entramos no mérito de em que passo estávamos. Nunca precisamos, para ser honesta. Nutríamos um sentimento amoroso mútuo, e não havia necessidade de rotular. E agora, tudo estava diferente, e uma parte de mim gostaria que tivéssemos esclarecido esse quesito.

— Não estão exatamente como eu esperava. — Steve declarou ao servir as massas duras nos pratos.

— Devem estar boas por dentro.

Mas não estavam. Estavam massudas e um pouco salgadas, mas evitei dizer isso.

— Alguma notícia sobre Tony? — Steve quebrou o silêncio.

— Ainda não.

— Já se passara quase um mês, e eu começava a desacreditar no retorno do Homem de Ferro. Se ele realmente estivesse em outro planeta, não deveria já ter voltado?

— Talvez ele tenha voltado, visto o mundo como está, e ido embora outra vez.

Steve abafou um riso constrangido.

— Queria eu poder fazer o mesmo. — Censurei-o com o olhar.

— É verdade. Não precisamos ficar aqui.

— Como é?

— Temos um mundo inteiro para explorar, um mundo deteriorado, mas em recuperação. Digo, não precisamos ir para outra galáxia. Mas... Que tal Washington? Nos divertimos lá. Ou Amsterdam... — minha referência e piscadela fizeram-no corar. Amsterdam tinha sido lar para o início de nosso romance e... dentre outras coisas.

— É tentador... Mas... E se encontrarmos uma solução?

— Não estamos exatamente tentando... — ele baixou os olhos, triste. — Eu respeito você, sei que precisa de um tempo para processar tudo que aconteceu, mas Steve... Não posso assisti-lo destruir a si mesmo. Você desistiu de tentar e eu...

— Eu não desisti. Eu... Estou tentando todos os dias, porra! — Steve bateu o punho no balcão, me fazendo estremecer. Podia ser que aquela fora a primeira vez que ele falara algum palavrão.

— Ele tentava disfarçar os olhos marejados, desviando-os dos meus. Puxei seu queixo para forçar contato.

— Eu sei que tem sido difícil. Me desculpe. — Acariciei suas bochechas, como não fazia há um bom tempo. — Me desculpe se pareci insensível.

— Não... Eu quem lhe devo desculpas. Você está certa. Sei que não tenho sido o melhor amigo do mundo e nem o melhor... — ele hesitou, não sabendo que palavra usar. Nem eu sabia, na verdade. — Eu costumava pensar que o mundo precisava de mim, como um heroi, entende? Mas a verdade é que sou um fracasso... Eu devia tê-los salvo, eles precisavam de mim. — Steve ameaçava desmoronar, e eu não sabia o que fazer.

— De quem está falando, dos humanos ou... Bucky?

— Todos. Bucky, Tony, Wanda, Sam... Todos eles precisavam de mim.

— Não seja tão egocêntrico, Steve. Thanos tinha as joias do infinito. Era mais poderoso que qualquer um de nós. Era tarde demais.

— Então acha que acabou? Nós perdemos? Esse é o nosso destino?

— Eu... Não sei. Eu não sei, Steve.

Nossa conversa tensa foi interrompida com meu celular tocando, me retirei do cômodo para atender Bruce Banner.

— Alô?

— Nat? Tenho boas notícias, precisamos de vocês na Torre imediatamente.