Os corredores pareciam mais longos e estreitos conforme avançavamos por eles, a temperatura ali embaixo diferente do início do porão não era quente e sim bastante fria e úmida. Eu já tinha me acostumado com o cheiro de ferrugem que vinha do sangue seco em minhas roupas, mas a imagem de Dominic sendo cortada ao meio por aquela coisa ficava rodando na minha cabeça insistentemente me causando náuseas e uma dor insana. Eu ainda era arrastada pelos meus pés ao longo do corredor enquanto seguia os passos de Jonathan. Depois de ver todo aquele sangue e carnificina, Jonathan conseguia agir quase normalmente sem parecer abalado o bastante por todas aquelas mortes e aquele terror. Tudo isso fazia eu questionar minha sanidade como se somente eu pudesse ver tudo aquilo e ele estivesse apenas sendo gentil em concordar com minha história bizarra. Claro que isso também era loucura, Jonathan estava lá todo o tempo, viu as mesmas coisas que eu, seria impossível não ter visto. Ele ainda mancava por conta da perna, percebi que em todo o tempo em que estivemos juntos eu sequer cheguei a ver o ferimento. Minha mente começou a inventar teorias malucas sobre tudo e sobre todos, cheguei a acreditar em um momento que tudo não passava de um delírio causado por algum alucinógeno ou bebida. Talvez eu estivesse em um sonho, dormindo ainda no carro com a testa colada no volante, talvez fosse isso, talvez eu ainda estivesse lá no início da cidade com meus amigos tentando me acordar. Eu queria acreditar em qualquer coisa mais sensata do que monstros e pessoas mortas andando por aí com facas e bisturis tentando nos matar.


— Tem alguma coisa aqui. - a voz de Jonathan ecoou pelo corredor me arrancando dos meus pensamentos como um despertador.


Ele estava parado diante de uma das inúmeras portas de madeira espalhadas ao longo do corredor. A tinta verde já quase totalmente gasta pelo tempo escondia alguns arranhões cravados na porta. Jonathan se aproximou um pouco colocando sua mão sobre as marcas estendendo os dedos e os encaixando nas pequenas fissuras. Era assustador como elas se encaixavam perfeitamente com a linha de seus dedos me fazendo deduzir algo lógico e terrível: Seja lá o que tenha feito aqueles arranhões, devia ser humano.


— Parece que alguém tentou abrir essa porta por este lado. - concluiu Jonathan afastando a mão da madeira e dando um passo atrás olhando para o topo do batente.


— Acha que essa é a saída? - o interroguei.


Sem me dar uma resposta Jonathan avançou contra a porta tentando abrir a mesma com a força de seu corpo. Fiquei assustada no início ao vê-lo se debater contra a madeira daquele jeito violento sem qualquer resultado visível, mas então finalmente a porta se abriu diante dele nos deixando estáticos do lado de fora da sala misteriosa. Diante da entrada não conseguiamos enxergar nada do que havia lá, a não ser a total escuridão que provia de dentro. Eu podia ouvir sussurros, como se alguém tentasse me dizer alguma coisa, algo que eu ignorei quando vi Jonathan passando pela porta e sumindo na escuridão. O pequeno feixe de luz que veio lá de dentro era um sinal de que Jonathan ainda estava com a lanterna e que por sorte ainda estava funcionando bem com as pilhas que havia nela.


O interior da sala parecia com um consultório médico, com uma grande estante cheia de livros cobertos por teias de aranha colada na parede a esquerda seguida por uma mesa de madeira escura com suas gavetas abertas e bagunçadas. Havia uma poltrona com o estofado rasgado e com a espuma suja pulando para fora da mesma, assim como uma cadeira quebrada diante da mesma mesa. e uma segunda cadeira jogada atrás da porta, era possível ter a visão bem ampla do local sempre que Jonathan girava a lanterna para todas as quatro direções. Ele se aproximou de um arquivo plantado a direita da poltrona vermelha e usou um pedaço de madeira quebrado que apanhou do chão para abrir o mesmo.


— O que tá procurando? - questionei logo atrás da mesa.


A lanterna foi parar em sua boca, enquanto ele usava o pedaço de madeira para forçar a gaveta sem responder a minha pergunta. Desviei o olhar algumas vezes para a porta, esperando que alguma coisa assustadora acontecesse, mas foi o estalo da gaveta de metal abrindo que me assustou. Jonathan se livrou da perna da cadeira jogando-a no chão e se dedicou a abrir o arquivo e verificar o que tinha dentro. Ele tirou de dentro da gaveta uma pilha de pastas e as jogou sobre a mesa espalhando tudo e abrindo uma por uma, como se estivesse desesperado atrás de alguma coisa.


— Jonathan, tá me assustando. Me fala o que tá procurando? - minhas mãos estavam apoiadas sobre a borda da mesa enquanto eu o analisava.


— Quero saber o que tinha aqui embaixo. - respondeu.


— Pra que?


— Pra saber do que estamos fugindo. - seus olhos fitaram os meus e eu pude ver medo dentro deles.


— Tá... eu te ajudo. - fiz a volta em torno da mesa indo parar ao lado dele, apanhando também algumas pastas e começando a ler o que tinha dentro delas.


Os documentos ali espalhados continham informações sobre antigos pacientes internados no hospital. Havia uma lista de tratamentos, e manipulação de remédios fortes, tratamentos de choque eram descritos como terapia para insanidade de alguns pacientes, alguns eram apenas crianças e continham fotografias registrando os acontecimentos. As imagens contidas naquelas pastas eram aterrorizantes. A dor daquelas pessoas, a crueldade a que eram submetidas naquelas mesas de tortura. Não conseguia acreditar no quão cruéis aqueles homens e mulheres poderiam ter sido com aquelas pessoas doentes. Tudo aquilo tinha acontecido enquanto a cidade ainda estava de pé, com seus habitantes vivedo suas vidas lá em cima, sem ter sequer noção do terror que aqueles pobres coitados passavam ali embaixo nas mãos daqueles monstros. Uma pasta em particular caiu aos meus pés enquanto Jonathan me mostrava um recorte de jornal sobre um dos médicos do lugar. Me abaixei para recolher os documentos e ao passar os dedos sobre uma das fichas o nome Alessa Gillespie saltou aos meus olhos. Ao que tudo indicava, a garota de nome Alessa dera entrada no hospital há trinta e dois anos com queimaduras por todo o corpo, depois de ser encontrada por um policial da cidade que a levou ainda viva até os médicos. Alessa tinha dezessete anos na época e fora submetida a tratamentos frequentes e cansativos. A meneira como o médico descrevia a paciente era cruel, e em nada lembrava um médico preocupado em assegurar a vida de um paciente, mas sim um sádico determinado a atormentar a pobre garota com terapias cheias de medo e horror. Era como se a idéia não fosse ajudar Alessa a se recuperar e sim usar a tragédia que aconteceu com ela para enlouquecê-la, torturando-a mentalmente, aprisionando-a em um pesadelo contínuo.


— Meu Deus! Isso é horrível. - cobri os lábios enquanto concluía a leitura. — O que fizeram com ela.


— Dr Michael Kaufmann. - Jonathan estava sentado na mesa, com as costas voltadas para a entrada da sala. Seus olhos estavam focados em algo suspenso na parede atrás da mesa.


— O que disse? - eu me virei para fitar o mesmo ponto para o qual ele olhava tão fixamente.


— Era o diretor desse lugar. Sei quem ele é...


— Ouviu falar dele?


— Kaufmann era o médico responsável pelo tratamento do meu avô. Meu pai costumava me levar ao sanatório onde ele estava internado quando eu tinha dez anos. - Jonathan começou a me contar a história como se as informações estivessem surgindo como um filme em sua memória. — Eu ficava apavorado quando saía de lá. Meu pai fazia questão de me atormentar com aquilo por meses. Ele dizia que me largaria naquele lugar cheio de malucos se eu não fizesse tudo o que ele dizia, era como ele me fazia obedecer.


— Por isso não se dá bem com seu pai?


— Ele é um babaca! - ele riu olhando pra mim. — Tive medo dele a vida toda achando que ele ficaria como meu avô, mas no final das contas ele é que tinha medo de ir parar naquele lugar.


Jonathan voltou a fitar o mesmo ponto mantendo o olhar neutro sobre as escrituras no quadro. Eu toquei em seu braço gentilmente fazendo-o tirar os olhos do diploma na parede e voltando a olhar pra mim.


— Sinto muito. - ele sorriu sutilmente desviando o olhar por um segundo, depois voltou a me encarar com o rosto virado de lado.


— Nunca me disse porque foi embora aquela noite... - eu reconheci a expressão em seus olhos.


— Fala da festa na fraternidade? - ele apenas concordou com um aceno de cabeça. — Quer mesmo falar disso agora? - me senti desconfortavel com a idéia de debater meus sentimentos no meio daquele lugar horrível.


— Posso não ter outra chance.


Eu me vi no meio de uma guerra interna lutando contra o desejo de me confessar a Jonathan, e contra todo o medo que aquele lugar tinha provocado em mim. Talvez em qualquer outra situação eu teria sido categorica em lhe responder a pergunta, mas no meio daquele hospital assustador, naquela sala escura e silenciosa, sem saber se teria uma chance de sair daquela cidade ainda viva, não era tão fácil. Mesmo assim, eu levei em consideração o que ele falou sobre não ter outra chance.


— Pensei que estivesse com a Lindsey, mas nada disso importa agora.


— Importa sim. Eu ia ligar, devia ter feito isso, mas não liguei. Sinto muito.


— A gente vai sair daqui.


— É eu sei. - disse baixando o rosto em direção ao chão como se não acreditasse nisso.


— Jonathan, a gente vai sair daqui. - eu me afastei da mesa saindo do seu lado e me coloquei de pé diante dele, fazendo-o olhar em meus olhos. — Eu não teria chegado até aqui sem você, então se você tá pensando em desistir...


Jonathan se afastou da mesa e veio pra cima de mim, segurou meu rosto entre suas mãos e cobriu meus lábios com um beijo pelo qual eu não estava esperando e tão pouco naquele momento. Foi apressado e de repente, mas conforme eu ia me situando do que estava acontecendo, conseguia mexes meus lábios junto aos seus. Eu toquei seu peito sobre a camisa tateando-o como se tentasse provar que ele era mesmo real e estava ali. Aquilo me acalmou de alguma forma, e me tirou por um pequeno instante daquele mundo de trevas e escuridão. Quando acabou, eu abri meus olhos devagar e admirei seu rosto bem diante do meu. Ele ainda segurava meu rosto e fitava meus olhos.


— Por que fez isso? - minha voz soou mais baixa do que eu pretendia.


— Posso não ter outra chance...


Me perdi por um longo momento olhando no fundo dos olhos de Jonathan, um momento que foi interrompido quando alguma coisa começou a acontecer dentro da sala. O chão e as paredes começaram a se desfazer em torno de nós. A sala foi se tornando maior e mais escura, revelando os seus alicerces por trás das paredes. Estava começando tudo de novo.


— Vamos sair daqui. - disse Jonathan me segurando pela mão e me arrastando para fora da sala.


Nós corremos pelo longo corredor vendo as paredes ficarem pelo caminho como pedaços de madeira queimada, e tinta derretida. O chão se cobria por uma coloração escura avermelhada como sangua vertendo das suas profundezas. O horror havia recomeçado e estavamos novamente bem no meio dele.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.