SUNNY

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Tudo estava funcionando.

Tudo estava indo tão bem…

E então eu a senti.

E meu mundo desabou.

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Por anos, esperei que Kyle finalmente me aceitasse e me amasse. Sabia o quanto ele sofria; sabia o quão insuportável toda aquela situação deveria ser. Ter sua companhia me bastava e, talvez, fosse até mais do que eu poderia desejar. Sua companhia era um milagre; ele era o meu milagre.

E eu o conquistei. Não imediatamente. Ah, não mesmo. Ele demorou para finalmente desejar a minha presença e apreciar a minha companhia. Antes disso, simplesmente me mantinha por perto para tentar encontrar Jodi. Eu sabia. Eu tinha ouvido.

Escutei um pequeno fragmento de uma conversa entre Kyle e Ian. Por um longo tempo tive a memória em minha mente e não fui capaz de associá-la a momento algum; pareciam vozes aleatórias de algum sonho qualquer que eu tinha tido. Somente depois que pude descobrir que elas eram reais.

Antes de acordar novamente no corpo de Jodi, ouvi Kyle dizendo que tinha aceitado me colocar no corpo de Jodi simplesmente para tentar resgatá-la. Eu era um mero objeto. Segundo ele, era impossível se apaixonar por uma alma. Quase como um pecado, uma infâmia.

Mas então tudo mudou.

Era evidente que Jodi não voltaria. Minha mente estava silenciosa como sempre tinha sido. Mesmo que tentasse resgatá-la, conseguia apenas memórias passadas e mortas. Eu sabia que ela estava morta. Sabia que não voltaria.

Kyle insistiu bastante e eu tentava por ele. No entanto, em algum momento de nossa jornada, ele percebeu que era impossível. Uma missão improvável. Mas aquilo que ele também julgava impossível tempos antes se concretizou. Ele me aceitou não como uma pessoa que era caminho para ele reencontrar seu amor passado, mas sim como uma pessoa que podia amar.

Ele me amava. Eu sabia. Eu sentia em seu olhar intenso e carinhoso.

Ele me amava.

No dia que ele me beijou… Deus, foi a sensação mais incrível que eu já senti. Sua mão firme, calejada, segurando tão suavemente o meu rosto e a minha cintura, e a sua boca — que eu imaginava rude — selando os nossos lábios delicadamente. Mantendo-me perto. Tão perto. Era desconcertante, apavorante. Perfeito. Magnífico.

E, ao mesmo tempo, um medo insano me apavorava: Jodi. Ele tinha sentido Jodi. Ele beijava a Jodi, o corpo, e não a mim, a pequena alma prateada. Ele não estava me beijando. Havia passado por meses de forte segurança pensando que ele me amava; segurança destruída em um único beijo, quando a realidade caiu sobre mim. Ele não podia me amar. Era sim impossível. Ele tinha estado certo o tempo todo.

Ele amava Jodi. E eu era uma alma iludida.

Afastei-me dele. Tentei que ele não quisesse mais ficar perto de mim, que não quisesse repetir o beijo. Foi um vazio tão grande. Porque eu queria e o amava mais do que meu peito podia suportar; e sabia com a minha alma que ele não podia me amar, que eu era uma alienígena que tinha roubado o corpo de sua amada e que, se ele queria alguma coisa comigo, era por causa do meu corpo e não por minha causa.

Foram duas semanas insuportáveis cheias de dúvidas e receios. E então eu tive um pesadelo. Sonhei que era Jodi e estava em uma floresta na companhia de Kyle e Ian. Observava uma fogueira e não sentia nada ao fazê-lo. Não me fascinava com as chamas, com as cores, com o calor. Não sentia.

Algumas palavras saíram da minha boca sem que eu ordenasse.

— Kyle, se eu fosse capturada… acho que não lutaria — vi o susto nos olhares de Ian e Kyle, mas continuava indiferente. Quis tomar alguma atitude, falar que era besteira, mas o corpo de Jodi não obedecia. Eu não o comandava. Seus sentimentos eram vazios e cinzas, cheios de dor e sofrimento. Ela falava sério.

— Mas… você não pode simplesmente desistir — Kyle disse em um sussurro.

— Eu posso. Eu desistiria. Não tenho mais nada que me prenda a esse mundo e… ser desligada não me parece mais tão ruim.

Kyle ficou arrasado. Vi o choque em sua expressão e as lágrimas se acumularem em seus olhos. Nunca o tinha visto tão triste. Quis tomar o controle do corpo de Jodi e abraçá-lo, falar que era mentira, que nós conseguiríamos superar aquela fase juntos. Mas Jodi não queria fazer isso. Ela percebeu o quanto tinha machucado Kyle e pensou que fosse uma consequência da vida e que ela estava bem pior. Ela pensou que aquilo que tinha dito não era nada.

Mas eu sabia que era. Tendo convivido tanto tempo com Kyle depois da perda de Jodi, eu sabia o quanto ele a amava. Sabia o quanto pensava que ela tinha sido sua salvação. E ela o destruíra com aquelas palavras…

Acordei gritando e sem fôlego. Kyle rapidamente firmou seus braços ao meu redor e tentou me acalmar, mas eu continuava tremendo. Tinha sido um pesadelo tão nítido. Ver o sofrimento tão explícito de Kyle e não poder fazer nada para apaziguá-lo tinha sido insuportável.

— Foi um pesadelo — tentei explicar. — Era a Jodi falando que desistiria de você e não tinha nada que a prendesse à Terra.

Ele pareceu desconfortável e só então percebi que talvez ele não suportasse o mero pensamento de ouvi-la falando aquilo. Tive um impulso de me desculpar, mas ele falou antes que eu pudesse fazê-lo.

— Shh — ele murmurou e acariciou meu braço. — Está tudo bem. Tudo bem…

Fiquei algum tempo simplesmente tentando me acalmar. O abrigo de seus braços era um dos melhores calmantes; vê-lo mais calmo e propenso a sorrisos também era um bálsamo para minhas preocupações. Enquanto eu ainda visse o brilho no olhar do Kyle, tudo poderia ficar bem.

— Kyle — sussurrei quando finalmente consegui acalmar minha respiração. — Eu nunca desistiria de você. Nunca. Eu… queria que você soubesse disso.

Ele me olhou por alguns segundos. Nunca tinha visto tanta intensidade, tanta decisão, tanta resignação. Tanto entendimento. Ele tinha acreditado em mim. Então, quando ele disse sua próxima frase, eu acreditei nele também.

— Eu também nunca vou desistir de você, Sunny.

Conversei seriamente com ele depois daquela frase e ele me revelou que não tinha sido apenas um pesadelo o fato de Jodi ter dito que tinha desistido dele, mas sim uma lembrança. E reconfirmou que nunca desistiria de mim. Confiei tanto nele naqueles minutos… eu sabia que ele não mentia. Sabia que não seria capaz de me magoar tanto. Se eu já o amava, consegui o amar ainda mais.

E mais e mais e mais a cada dia que passava…

Durante dois meses, depois de quase dois anos que tinha finalmente entendido que ele me amava, ele foi para a floresta procurar por Jamie junto com Susi, sua irmã mais nova por parte de mãe. Foi horrível viver os dias na caverna; dias arrastados e infinitos, cheios de preocupação. Eu não tinha notícias suas. Somente me restava acreditar que ele estava bem e esperar que ele viesse ao meu encontro.

Eu não tinha ninguém. Peg e Ian também estavam fora; somente me restava a minha própria companhia. Travis queria me consolar e conversar comigo, no entanto eu não queria sua presença. Não era dele que eu precisava. Portanto, deitava no colchão que eu dividia com Kyle e sentia seu cheiro, chorando e esperando. Esperei tanto…

Quando ele voltou, quase desabei sobre minhas pernas. Estava em nosso quarto, deitada na cama e chorando. Ele tinha que voltar aquele dia; caso contrário, sairíamos em sua procura. Eu acreditava. Sempre tinha acreditado que ele voltaria. E, mesmo assim, naquele dia todo o peso da realidade caiu sobre mim. E se ele não voltasse?

Seu corpo grande parou na entrada de nosso quarto. Ele tremia de frio e suas roupas estavam amarrotadas, sujas e úmidas. Ele devia ter tomado chuva. No entanto, quando o vi, vivo, o mesmo de sempre, apenas com mais barba que o habitual, senti o meu ar faltar.

Comecei a soluçar. Eu não tinha forças para levantar e recebê-lo. Somente conseguia chorar e chorar, ajoelhada em nosso colchão. Ele se arrastou os poucos passos que nos separavam e se lançou de joelhos no colchão em frente a mim. Trêmula, alcancei seu rosto com as minhas mãos e comecei a tateá-lo. Era real. Algumas lágrimas escorreram de seus olhos azuis e eu limpei-as com afinco. Elas eram reais. Ele era real.

Senti suas mãos fortes segurarem em minha cintura, aproximando o meu corpo do seu. Ele deslizou então seus dedos por toda a extensão de meu braço até chegar em minha mão e entrelaçar nossos dedos, suavemente, como se para nos confirmar. Com a outra mão ele alcançou o meu rosto. Colocou o cabelo atrás da orelha e limpou as minhas lágrimas. Seu olhar era carinhoso e fascinado.

Ele sorriu. Foi um sorriso sincero, real, amplo. E não pude evitar que meus lábios imitassem o gesto.

Ele quebrou a pequena distância e juntou nossos lábios. Sua barba crescida não era um incômodo. Eu não me importava com ela; Kyle estava ali, o que mais importava no mundo? Segurei em sua nuca e estreitei o espaço entre nossos corpos. Ele segurou em minhas costas e me firmou perto dele. Bem perto.

As minhas lágrimas e meu soluço se confundiram com nosso beijo repleto de carinho, amor e saudade. Era um momento que eu queria preservar para sempre. Sabia que ele nunca me amaria tanto quanto tinha me amado naquele dia, quando me reencontrou nas cavernas depois de meses de espera.

Depois que separamos nossos lábios, apoiei minha cabeça em seus ombros. Ele acariciou meus cabelos.

— Eu estou aqui — ele sussurrou. — E não pretendo sair tão cedo.

Fechei meus olhos e ergui meu rosto, encostando nossas testas.

— Por favor…

— Sim?

— Não faça mais isso. Nunca mais. Não saia para uma floresta e passe dois meses nela.

— Não pretendo.

Respirei fundo.

— Mas se tiver que ir… me leve junto.

Ele encostou nossos lábios delicadamente, uma vez.

— Ah, Sunny… eu não quero sair de perto de você. Então, sim, onde quer que eu vá, te levarei junto.

Um mês depois, ao encontrá-lo vestido com somente uma calça de moletom em nosso quarto, não pude evitar um pensamento malicioso. Eles estavam ficando cada vez mais frequentes desde o retorno de Kyle. E, naquele dia, eu tomei coragem e falei o que estava sentindo.

E ele aceitou. Ele fechou seus olhos e me beijou; aceitou me conduzir. Ele queria me conduzir. Eu sabia que sim. Sabia que era o momento.

Seus lábios estavam em toda parte. Eu o sentia em todos os lugares, em cada centímetro de minha pele, em cada terminação nervosa. Ele estava em todos os lugares. Meu corpo se reduziu a Kyle; meu corpo não era mais meu, não mais me pertencia. Seus lábios eram tudo.

E então houve uma mudança repentina.

O silêncio de minha cabeça foi quebrado. Eu não estava mais reduzida a chamas; as chamas se transformaram em cinzas confusas e disformes. Eu não conseguia me concentrar em mais nada. Havia uma voz, distante, mas indiscutivelmente viva. Não era uma lembrança. Não era meu pensamento. Era a minha voz, mas não era… eu.

O que era aquilo?

Kyle? O que está acontecendo, Kyle?

Era a voz. Cada vez mais nítida, cada vez mais próxima. Ela estava encontrando seu caminho. Tentei desvencilhar-me de Kyle. Era aquilo que eu estava pensando? Será que…

Não, espera. O que você está fazendo, Kyle? KYLE!

Senti a raiva inflamada. Raiva que nunca tinha experimentado sentir; era desconfortável. Eu queria bater em alguma coisa. Queria canalizar. Mas, espera, aquela raiva não era minha. Não era o meu sentimento de raiva. Antes eu estava sentindo simplesmente prazer e alegria; eu nem mesmo estava pensando.

O que era aquela voz?

Imediatamente, uma conversa voltou para os meus pensamentos. Foi quase três anos antes, quando Kyle tinha me “sequestrado” do mundo das almas. Peg havia me perguntado se Jodi não estava presente em meus pensamentos, se não conversava comigo. Apesar de suas explicações, nunca tinha conseguido ao menos imaginar a sensação de dividir uma mesma mente.

Mas, naquele dia, eu não somente imaginei, como conheci a sensação.

Jodi tinha retornado.

— Sunny…? — Kyle perguntou.

Não me chame assim! — a minha voz gritou sem que eu permitisse. — O QUE VOCÊ ESTAVA FAZENDO?!

Ela tinha tomado o controle. Foi por apenas alguns segundos. Segundos o suficiente para apavorar a Kyle e a mim. Encaramo-nos com os olhos arregalados, transmitindo a mesma pergunta: como? Como isso foi acontecer?

Não sabíamos a resposta. Nem mesmo Jodi, em minha cabeça, não sabia. Ela estava confusa e tentava ultrapassar novamente a barreira já fechada. Eu não me concentrava nela. Via apenas os olhos consternados de Kyle, refletindo o mesmo sentimento que os meus: medo.

Quem é você? Por que estava beijando o meu marido? O que aconteceu? Por que não posso controlar o meu corpo?

Eu não queria respondê-la. Deixei que revisse suas memórias por conta própria e que descobrisse o que tinha acontecido em seus quase nove anos de ausência. Eu não me importava com ela. Naquele momento, somente me importava com Kyle. Senti meus olhos se encherem de lágrimas.

À medida que Jodi acessava suas memórias, perguntava-me coisas que eu não respondia. Estava percebendo as nuances do olhar de Kyle; elas me assustavam. O medo que antes a nós era comum se transformou em compreensão. E depois da compreensão veio a raiva. Raiva sólida.

— Você mentiu para mim, Luz do Sol Através do Gelo — ele sussurrou; e foi mais ameaçador do que seus gritos. Sua expressão estava transtornada. — Por que não me disse que Jodi estava dentro de você o tempo todo?

Meu queixo caiu. Ele achava que eu estava mentindo? As lágrimas escorreram pelo meu rosto.

— Kyle, não… Kyle — tentei convencê-lo a ficar, mas ele já tinha pegado alguma camiseta e saído do quarto.

Ele não me escutaria. Como poderia explicar para ele que aquilo tinha acabado de acontecer e que Jodi sempre tinha estado ausente? Por que ela tinha voltado? Pra estragar com a minha vida?

Você roubou o meu marido, ela resmungou. Tinha terminado de acessar suas memórias. Nada mais justo do que estragar sua vida.

Por que voltou?

Ela demorou a responder.

Eu senti uma agitação. Foi a primeira vez que consegui sentir alguma coisa. Nada tinha me despertado até então. Teria sido melhor não ter sido despertada de nenhum jeito do que chegar em um momento tão… íntimo — senti seu desconforto — Enfim, você sabe que ele dormiria com você só por minha causa, não sabe?

Fechei meus olhos. Não, não era por isso que ele dormiria comigo.

Ah, não seja tão ingênua. Se ele realmente gostasse de você, não teria te acusado de mentirosa na primeira oportunidade.

Eu detestava seu sarcasmo. Detestava sua petulância. Sua presença. Nunca tinha experimentado aquele sentimento, o sentimento de repugnância.

Eu procurei por você enquanto ainda não tinha acontecido nada. Por que apareceu somente agora?

Não sei. A vida não costuma ser justa… Eu te odeio também, sabia?

Eu não te odeio — sabia que estava sendo sincera —, só não gosto que você tenha surgido em uma hora tão errada e seja tão desagradável.

Bem, eu te odeio. Com tudo o que ainda tenho. E o Kyle vai ser meu.

As lágrimas não paravam de escorrer pelo meu rosto. E se ele nunca acreditasse na minha versão? Trêmula, encontrei a minha camiseta e a vesti. Encolhi-me na cama.

Vá atrás dele. Diga que mentiu por todos esses anos. E então ele te odiará e será somente meu.

Não. Eu não vou mentir para ele agora.

Em sua mente, você mentiu para ele esse tempo todo.

E a verdade algum dia vai ser revelada.

Até lá… até lá ele já vai ter te retirado. Esse corpo não é seu. Você é apenas uma alienígena que manteve o corpo vivo para que eu pudesse retornar.

Você pode… ficar quieta?

Não.

E ela realmente não se calou. Deitei-me na cama e fiquei ouvindo-a falar em minha cabeça; ela reclamava, me acusava e fazia ameaças sem fundamento. Nada que eu realmente desse importância. A única coisa que eu conseguia pensar era em Kyle e na forma transtornada como ele tinha me olhado.

Jodi não pensou em Kyle de forma preocupada em momento algum.

Talvez ela realmente não o merecesse.

Temi que ele nunca mais me olhasse da forma como me olhou no dia que retornou da floresta.