E então quando o sol se libertou, fazendo longos raios amarelados escaparem pelos vãos da nuvem de algodão, foi como se o mundo tivesse suspirado em uníssono.

Como se o dia renascesse.

Como se a vida recomeçasse.

Aquele sol escondido por trás das nuvens apareceu e iluminou o mundo com o seu brilho. Cegou. Esquentou a pele. Fez as pálpebras ficarem vermelhas.

A esperança de um novo dia. O sol saindo de trás das nuvens foi similar a um sorriso iluminando uma carranca. Ou ao sorriso do olhar. O sorriso do olhar…

O meu olhar sorriu e a minha pele ferveu. Ficou dourada, brilhante.

O sol brilhava lá fora.

E eu me sentia renovar.

.

O velho homem que nos encontrou nos levou até uma caverna no meio do deserto. Ian estava radiante; ou talvez simplesmente mais leve. Talvez nós dois tenhamos nos renovado naquela viagem, onde eu vi o sol encontrando o caminho por entre as nuvens. Entendi que era o fim; assim como entendi que já estava na hora de começar de novo, de respirar de novo.

Eu tinha perdido Jodi. Nunca mais a teria novamente. Já era hora de aceitar.

Tinha que parar de culpar Ian por toda a minha desgraça; os verdadeiros culpados eram os malditos e numerosos alienígenas, que nos roubaram o mundo. Mas ainda havia a esperança. Ainda havia o sol por entre as nuvens.

Foi assim que me senti quando encontrei mais humanos dentro das cavernas que tinham sido adaptadas para uma vida razoavelmente normal. Naquela época não tinham muitos e, mesmo assim, parecia ser um lugar cheio de vida. Tinha o velho Jebediah — o Jeb —, Brandt, Aaron, Doc, Lily, Trudy, Geoffrey, Walter, Andy, Paige e mais alguns remanescentes. Todos tinham os olhares severos de sobreviventes.

Em cada rosto eu via a expressão de Jodi. E de Ian. E a minha. E, de algum modo, me senti feliz por não estar sozinho naquela luta de perda ao conhecer tudo o que os outros perderam. Famílias, amores, amigos. A vida. O mundo. Todos nós perdemos o mundo.

Éramos sobreviventes e lutávamos dia após dia. Eu aprendi a ser forte e me transformei talvez no humano mais severo; Ian continuava mais brando e era o meu contraste. Era bom que algumas coisas permanecessem iguais. A caverna era grande e escura e o sistema de espelhos no teto que o louco — ou talvez simplesmente gênio — Jeb Stryder tinha criado permitia plantação de verduras e legumes. Trabalhávamos duramente dia após dia e fazíamos incursões para buscar alguns suprimentos necessários; às vezes trazíamos humanos sobreviventes, às vezes capturávamos alienígenas para tentarmos aprender alguma maneira de tirar a alma sem matar o corpo humano. Nunca tivemos sucesso.

Até o dia que Peregrina apareceu, cinco anos depois, quando a caverna já estava cheia de humanos sobreviventes.

Ela era a alienígena inserida dentro do corpo de Melanie Stryder, sobrinha de Jeb. Seu namorado, Jared Howe, e seu irmão, Jamie Stryder, tinham chegado meses antes junto com Maggie, irmã de Jeb, e Sharon, sua outra sobrinha. A partir do momento que Jeb deixou Peregrina viver e a trouxe para as cavernas, o caos estava instalado.

Logo depois que ela chegou foi feita uma votação entre a maior parte da população da caverna. A decisão óbvia foi matá-la e os encarregados disso fomos Ian, Brandt e eu. Jared e Jeb a estavam mantendo como uma prisioneira em alguma parte da caverna; a qual ainda descobriríamos.

Peregrina era uma alienígena repugnante que estavam deixando viver só por causa do corpo que habitava; o que me deixava enjoado. Naquela noite quando Ian, Brandt e eu seguimos para matá-la, o meu sangue corria frio pelas minhas veias. Eu odiava aqueles alienígenas e o que eles faziam com os humanos; odiava que provavelmente tivesse um alienígena no corpo de Jodi. Odiava tudo aquilo.

Não conseguimos matá-la naquela noite, afinal. Ela continuou viva e, pouco tempo depois de sua chegada, saí para fazer uma incursão com Jared. Quando voltamos, alguns humanos eram a favor de sua sobrevivência. Humanos que eu nunca poderia imaginar esse comportamento.

Ian estava a favor dela. Justo Ian. E talvez ele fosse o que mais a defendia.

Cacete.

Ele parecia apaixonado por ela. Em algumas noites tentou me convencer que ela tinha bons comportamentos, que não se igualava a ninguém, que tinha mais humanidade do que se podia esperar. Falava sobre ela o tempo todo, tentando me convencer a aceitá-la. Mas me convenceu do contrário.

Eu precisava matá-la. Precisava tirá-la da vida de meu irmão. Ela era uma parasita, uma daquelas que nos tinha tirado Jodi! Como ele podia estar apaixonado por ela?!

Tentei jogá-la no rio da sala de banhos da caverna. Havia uma fonte de água quente que qualquer um que passasse perto era levado pela correnteza e esse era o meu plano. Me tornaria um assassino intencional, mas eu tinha que livrar o meu irmão das garras daquela alienígena. Contudo, não obtive sucesso mais uma vez.

Fui levado a julgamento pelo meu ato. Peregrina me salvou de cair no rio quando uma parte da caverna cedeu sob nossos pés e eu me sentia em uma terrível dívida com ela. Tinha tentado matá-la, afinal, e ela tinha me salvado de uma morte que a livraria de mim. Ian estava a favor dela; foi quando eu entendi, mesmo não querendo, que ele realmente gostava dela. Ele teria que me defender, não a uma alienígena intrusa. Se ele a estava defendendo… portanto a amava.

Então parei de tentar matá-la.

Tempos depois surgiu uma Buscadora que continuava perseguindo Peregrina — ou Peg, como costumavam chamá-la — e matou um dos nossos, o Wes. Ela foi mantida presa como Peregrina quando chegou às cavernas e pensamos em matá-la, mas precisávamos do consentimento de Peg ou algo assim, segundo Jeb.

Foi quando houve uma luz.

Peregrina não quis matá-la; quis tirar a alienígena do corpo e mandá-la para outro planeta. Ela nos ensinou como tirar o alienígena do corpo sem matar a pessoa. Ela nos — me — deu a esperança, a luz que eu esperava havia anos.

Eu poderia salvar Jodi, que tinha se entregado no meu lugar, morrido por mim.

Eu teria Jodi novamente, depois de seis anos de cansativa espera. Naquele momento, eu pude gostar da Peg. Ela me devolveu a vida que tanto tempo antes tinha sido tirada de mim.

Fui escondido de todos os remanescentes das cavernas até a casa de Jodi, Warren e Doris, encontrando todos com alienígenas em seu corpo. Esperei até a noite para me esgueirar e entrar no quarto de Jodi pela janela e esperei que a alienígena gritasse ou protestasse, como eles geralmente fariam. Mas ela ficou quieta.

Estava tão animado com a perspectiva de ter Jodi de novo que não consegui ser rude com Luz do Sol Através do Gelo — ou Sunny, como eu havia decidido —, a alienígena que estava inserida no corpo de Jodi. Ela começou a conversar comigo depois de um tempo de viagem e parecia feliz que pudesse me ver. Disse-me que tinha sonhos frequentes comigo.

Os outros humanos protestaram que tivesse mais uma alienígena protegida nas cavernas quando cheguei com Sunny em meu encalço. Somente Peg pôde me ajudar com Sunny e tentou convencê-la de que ela tinha que ir para outro planeta, que não era seguro ela ficar aqui. Ela desatou a chorar e a lamentar continuamente, quando Peg disse que também deixaria a Terra em breve e talvez fizesse companhia a Sunny.

Ian se enfureceu. Puxou-a violentamente e me chutou no rosto quando tentei impedi-lo de ser tão bruto com Peg. Ele poderia ser violento quando queria; eu sabia, tinha convivido com ele por anos. Houve uma confusão enorme no consultório de Doc até que todos finalmente saíram e eu pude levar Sunny calmamente até um catre velho.

— Mas, Kyle… — ela soluçou. — Eu não posso ficar? Não posso ficar em outro corpo? Você pode ficar feliz com a sua Jodi, Kyle, eu juro. Eu só quero ficar.

Mas até eu sabia o quanto aquele pedido a faria sofrer. E achava demasiada crueldade fazer Sunny sofrer ainda mais, quando era uma alma tão gentil e disposta.

— Você merece uma vida melhor, Sunny — sussurrei, acariciando seu rosto. Engoli em seco ao ver lágrimas silenciosas escorrendo por sua bochecha. — Eu esperei por tanto tempo por Jodi… se você fosse alguma alienígena mais complicada de se lidar seria mais fácil tirá-la do corpo. Acho que você merece um corpo em que possa ficar.

— Qualquer corpo aqui na Terra — ela gemeu.

— Em qualquer outro corpo longe de mim — concluí franzindo o cenho. — Sinto muito.

Ela jogou seus braços ao redor de meu pescoço e deixou que suas lágrimas quentes escorressem por minha pele. Sunny era uma boa alma.

— Calma — sussurrei em seu ouvido, deitando-a no catre. Roubei uma mecha de seus cabelos escuros e a enrolei em meus dedos. — Vai ficar tudo bem, certo?

Sunny tremia quando Doc finalmente voltou para o consultório. Ele tinha o olhar vago quando se aproximou de nós e confirmou se já era a hora.

— Kyle — Sunny sussurrou. — Segura em minha mão, por favor? — estendi a minha mão e apertei a sua levemente, sentindo um aperto no coração ao me lembrar de quando eu segurava na mão de Jodi. — E seja feliz.

Então ela fechou seus olhos. E, mesmo que fosse um desejo egoísta, esperei que fosse para sempre. Logo eu teria a minha Jodi com seus olhos sem reflexo, com sua expressão dura, com os dentes cerrados. Mal aguentava esperar que chegasse a hora de contá-la sobre tudo o que acontecera durante aqueles longos seis anos.

Peg também se foi. Sunny se foi. Havia somente humanos nas cavernas; humanos esperando para retornar. Concluí que a época de convivência com os alienígenas não tinha sido de todo ruim. Afinal, eu teria a minha Jodi em poucas horas.

Ian queria recolocar a Peg em outro corpo e segurava exaustivamente, como eu, o criotanque em que ela estava. Eu gostava de manter Sunny segura comigo enquanto não decidia o próximo planeta que ela iria e Ian gostava de manter Peg perto dele porque a amava. Pensei que aquela rotina de ficarmos no consultório, juntos, ambos segurando criotanques e com o silêncio pairando entre nós duraria muito pouco. Pensei que logo teria Jodi e poderia sair daquele lugar; uma alienígena voltaria para as cavernas, mas já não estávamos terrivelmente acostumados com sua presença?

Esperei por dias, semanas e então um mês. Doc me disse que os músculos de Jodi poderiam atrofiar se não conseguíssemos continuar nutrindo-a como o esperado e se ela não acordasse logo. Tinha fé em Jodi, ela tinha que voltar. Era uma lutadora, não era? E uma voz silenciosa na minha cabeça me lembrou que ela sucumbiu quando seus pais se foram. Mas ela me salvou nos últimos segundos. E talvez isso não tenha sido um gesto de bravura o suficiente para ela permanecer no corpo.

Jodi não voltou. Jodi nunca mais voltaria. Aceitar isso tinha sido mais doloroso do que aceitar que ela tinha morrido, tantos anos antes, porque naquele momento eu tinha tido uma chance. E a minha Jodi não tinha conseguido voltar.

Ela estava morta. Então, afinal, não teríamos apenas mais uma alienígena novamente nas cavernas. Sunny tinha que voltar; para manter o corpo de Jodi vivo, para não matar as minhas esperanças.

Sunny teria que voltar.