O mundo não é mais o mesmo. Já faz algum tempo e eu ainda não me acostumei. Talvez eu nunca me acostume. Quem sabe? Se dez anos não foram o suficiente, então eu não sei quanto tempo poderia me fazer aceitar esse mundo. Mas há coisas que aconteceram que jamais teriam acontecido se permanecêssemos no mundo normal; algumas coisas boas, outras coisas ruins. Sempre existe os dois lados do espectro. E o que podemos fazer quanto a isso? Absolutamente nada.

Então deixei de lamentar.

O nome que está em minha certidão de nascimento é Kyle Chapman. O nome que eu realmente utilizo é Kyle O'Shea. O motivo dessa mudança não está longe de ser revelado.

A minha família nunca foi exatamente estabilizada. Meus pais brigavam muito; meu pai era o vilão, minha mãe era a mocinha. Meu pai maltratava ao meu irmão, Ian, e a mim e a nossa mãe nos defendia, recebendo xingamentos e hematomas constantemente. Não conseguia entender o que havia deixado o nosso pai tão amargurado e não podia questioná-lo. Se o fizesse, sabia que pagaria as consequências.

Vivemos, portanto, daquela forma por vários anos. Nossa mãe, Ian e eu tentávamos escapar das piores formas de tortura e nos sustentávamos. Éramos próximos demais — eu tinha pilares e odiei perdê-los. Era demasiadamente fraco para aguentar todas as coisas que se seguiram ao longo de minha vida.

Na época eu tinha 14 anos. E era muito feliz conquistando as meninas do meu colégio. Eu era mais alto que a maioria dos meninos e tinha pele clara, olhos azuis e cabelo preto. Não era difícil conquistar as meninas. Ian era mais novo, tinha 12 anos, e fazia tanto sucesso quanto eu. Já ficava com algumas garotas mais novas. Éramos parceiros e mantínhamos o nosso sucesso como um segredo trancado a sete chaves.

Foi então que a nossa mãe começou a ter comportamentos estranhos. Algumas vezes ela saía correndo no meio de uma refeição para ir vomitar. Ficava enjoada facilmente, seu humor oscilava e ela deixou de se meter entre as brigas de meu pai com Ian e comigo. Ficava quieta ou fazia comentários débeis que jamais o parariam.

Algum dia — não o marquei em meu calendário — ela simplesmente desapareceu. Pensamos que voltaria, cedo ou tarde, mas ela nunca mais apareceu. Ian e eu estávamos nos sentindo extremamente traídos por termos sido largados na mão daquele verme nojento de nosso pai, que nos xingava e também agredia verbalmente a nossa mãe que não estava mais presente. Falava que éramos filhos tão horríveis que deveríamos ser frutos de alguma traição de nossa mãe, mesmo que nossos traços tivessem muita semelhança com os traços dele. O nariz anguloso, o fato de sermos grandes, os cabelos ondulados.

Foi tão traumatizante que eu quase me entreguei. Tinha alguns amigos que gostavam de se divertir tomando bebidas alcoólicas e eu juntei-me ao grupo deles. Afoguei-me na bebida tentando esquecer tudo o que estava passando e meio que abandonei Ian, que se perdeu ficando com todas as garotas que tinha a oportunidade. Não é algo que ele goste de recordar hoje em dia. Fizemos um trato sobre não comentar sobre as nossas épocas obscuras. Segredos de irmãos, sabe como é.

Eu tinha dezesseis anos quando me dei conta de que nunca conseguiria nada na vida se permanecesse vivendo daquela maneira arriscada e, sinceramente, ridícula. Foi quando me transformei em um puritano nerd — não, nada de óculos de grau e de aparelhos ortodônticos, mudei o meu intelectual somente — e fui excluído de praticamente todos os grupos que eu fazia parte na escola. Pensei que desse modo pudesse convencer o velho Chapman a simpatizar comigo, no entanto ele me tirava tanto sarro quanto qualquer adolescente que não fosse com a minha cara. Para ele, eu era a sua maior desgraça. Para mim… bem, ele realmente era a minha maior desgraça. E a minha mãe também, depois que me deixou. Ainda tentava compreendê-la.

Ian nunca chegou a se afundar na bebida. Ele sempre tinha sido mais racional do que eu e sua forma de espantar os problemas era tocando violão. Abandonou as garotas e ficava somente com as que realmente o conquistavam. Caso contrário, nada feito. Ele afundava as mágoas naquele instrumento que não fazia sentido algum para mim e, em muitos aspectos, parecia ser mais forte que eu.

Abandonei a concepção puritana e nerd quando encontrei Daisy aos dezessete anos. Ela era uma descendente de coreanos estilosa, do tipo que pintava os cabelos de colorido, e usava piercing no nariz e na sobrancelha. Tinha se americanizado ao preferir ser chamada de Daisy em vez de Danbi. Havia uma tatuagem em seu tornozelo, escrito “GO”. Quando a perguntei o significado daquilo, ela disse que era o nome de um livro que ela gostava muito. “É o livro de um autor coreano-brasileiro, Nick Farewell. Tem muito significado para mim”.

O nosso relacionamento durou um ano. Foi com ela que eu perdi a virgindade e vivi momentos incríveis de minha vida. Pela primeira vez, eu não me importava com a minha mãe desaparecida e muito menos com o meu pai cruel. É duro admitir, mas deixei Ian na mão mais uma vez. Consolava-me o fato de que ele também estava apaixonado. Claire era o nome da garota e ele a descrevia como o retrato da delicadeza. Dizia que ela era tão intimidante com o seu jeito gentil que ele não tinha coragem de tomar uma atitude. Foi a primeira vez que vi Ian titubear.

Daisy voltou para a Coreia depois de um ano de relacionamento. Foi doloroso, no entanto continuávamos trocando mensagens. Até que um dia ela ficou muito estranha, completamente diferente, querendo saber de detalhes que já sabia, agindo como se não me conhecesse. Inicialmente eu fiquei com raiva e abandonei as nossas conversas. Somente mais tarde eu saberia que não era sua culpa; era culpa de seres intrusos e repugnantes.

Era culpa das Almas. Elas logo ganharão o destaque necessário nessa história — mais que necessário, para ser sincero —, mas é preciso um pouco de calma para entender tudo.

Ian conseguiu ganhar o beijo tão esperado de Claire — beijo que antecedeu sua fuga. Ian ficou arrasado, falando que tudo era culpa dele, que não era possível mais de uma pessoa abandoná-lo e todas essas coisas. Senti-me tão impotente vendo-o desabar na minha frente que não pude fazer nada senão olhá-lo e tentar convencê-lo de que a culpa não era dele. Nada adiantou.

E, de qualquer forma, já era tarde demais.

Estávamos fracos, ele e eu, agindo como dois vegetais, sem podermos mudar a tristeza um do outro, sem podermos nos reparar. Vulneráveis. O melhor momento para as almas nos encontrarem. Um momento de fraqueza, de desistência. Um momento de entrega.

Até hoje eu não sei onde arranjamos forças ou pensamentos coerentes. Mas nós conseguimos. Tropegamente, é claro. Éramos a minoria. E mesmo assim nós conseguimos. E isso pode até parecer o discurso de um vencedor orgulhoso, no entanto não há muito espaço para se sentir orgulhoso em um mundo pós-apocalíptico. É difícil aceitar a vitória quando foi preciso aprender a matar sem piedade e a viver sozinho no meio de várias pessoas. No meio do inimigo.

As almas invadiram nossa casa em um dia qualquer. Nosso pai os recebeu sem saber do real perigo. Lembro-me de ter ficado observando da janela do quarto de Ian quando chegaram os camaradinhas em um carro de última geração. Corremos como duas crianças para a ponta da escada a fim de ouvirmos a conversa. Honestamente, não parecíamos ter 19 e 17 anos enquanto espiávamos toda a cena que se seguiu. Mas isso salvou a nossa vida, portanto eu agradeço por nossa atitude infantil.

Os rapazes vestiam roupas pretas e pareciam tentar convencer o nosso pai a inalar um produto que eles espirrariam no ar. Parecia que falavam que era algum tipo de perfume, eu não sei, mas Luís sempre foi desconfiado o bastante para recuar pensando que fosse veneno. Revirei meus olhos, achando ridícula sua atitude. O que custava inalar? No mínimo, os caras se retirariam.

Somente quando os homens tentaram espirrar o que quer que tivesse dentro do frasco sem consentimento de nosso pai e esse o arrancou de suas mãos e o atirou longe, é que eu realmente me assustei. E quando o nosso pai nos flagrou observando? Jurei que a minha morte tinha chegado.

E então eu fui surpreendido.

Se, durante a sua vida, Luís Chapman foi incapaz de demonstrar qualquer pingo de devoção e solidariedade aos filhos, naquele momento ele nos compensou com o aviso que salvaria as nossas vidas.

— Vão! Fujam! Rápido! Fujam deles!

Não nos restava nada senão obedecê-lo.

Eu estava com medo quando corri junto de Ian para o meu quarto que tinha uma janela que levava para o jardim nos fundos da casa. Temia aqueles estranhos que ousaram desafiar o nosso pai. Justamente o nosso pai, o grande Luís Chapman, que todos temiam! Ian fechou a porta atrás de nós enquanto eu analisava a altura da janela. Era alta. Muito alta!

— E agora, Ian? — estava desesperado, com os olhos arregalados. Devastado. Todo o medo sem sentido se infiltrou dentro de mim e fez as minhas pernas ficarem bambas. Um fracote, era isso que eu era, um fracote que não conseguia nem mesmo enfrentar uma janela inofensiva.

— Você confia em si mesmo? — Ian parecia tão sábio, tão certeiro. Ele sabia quando deveria ser inteligente e sabia que, naquele momento, temer era a última opção. Para mim, infelizmente, era a primeira.

— Acho que… provavelmente sim — e não havia nenhuma confiança em minha voz.

— Provavelmente? Tire esse “provavelmente” da frase. Como ela fica?

— “Acho que sim”.

— Tire esse “acho que” da frase agora. Como ela fica?

— Sim.

— Sim? Então você confia em si mesmo. Portanto pularemos.

Droga da psicologia! Ian me conhecia melhor que eu mesmo e sabia exatamente como me moldar em suas mãos. E o pior era que ele realmente parecia calmo e confiante, ao contrário de mim, que estava um verdadeiro caco.

— Mas, Ian… como? Eu estou com medo — medo de uma janela estúpida. Medo de um bando de idiotas que entraram em minha casa. Medo porque o meu pai me mandou fugir. Medo de me machucar; eu já não estava suficientemente machucado por dentro? Por fora também me parecia um fardo um tanto quanto exagerado.

— Eu também estou. Por isso nos uniremos. Não acha essa janela bem grande? Nós dois cabemos sentados nela. Daremos as mãos. E pularemos juntos.

De algum modo, eu acreditei que tudo ficaria bem. Ian me convenceu. Maldito! Sempre teve a palavra certa. Sentamo-nos no parapeito da janela. Estava apertado — agradeço, hoje em dia, que ainda não tínhamos os músculos de sobreviventes —, no entanto era possível suportar. Ian pegou em minha mão.

Pulamos.

Nossas mãos se desprenderam quando atingimos o chão. Rolei algumas vezes na grama até conseguir me estabelecer, mas eu não tinha tempo de pensar se o tombo tinha machucado muito ou não. Precisávamos correr, os passos já se aproximavam.

Ian tinha o cérebro, eu tinha o corpo. Ele pensava nas estratégias e eu o forçava a continuar correndo, sempre e sempre, para sempre. Ele geralmente estava exausto no fim do dia devido ao seu despreparo físico. Sempre um de nós precisava montar guarda enquanto o outro dormia caso os caras de preto voltassem para nos perseguir. Ian fazia-me prometer que o acordaria quando estivesse cansado e quisesse dormir e eu prometia. O que não queria dizer que eu cumprisse.

Sentia-me em dívida por ele ter me salvado naquele momento. Se estivesse sozinho, provavelmente teria tido o mesmo destino de meu pai, qualquer que tivesse sido esse… Estremecia só de pensar no que aqueles caras vestidos de preto fizeram com o velho Chapman, que eu sinceramente detestava. Mas ele ainda era o meu pai, não podia negar isso.

— Kyle Chapman — trovejou Ian quando acordou naquele dia. Olhei-o com o canto do olho. — Se você me deixar dormir mais uma noite inteira, eu vou arrancar a sua cabeça ou talvez cortá-lo em pedacinhos. Você também precisa descasar, cara!

Bem, era verdade que eu deixava ele dormir a noite toda, contudo eu descansava frequentemente. Tirava alguns cochilos enquanto ele arquitetava planos. Até mesmo cochilava um pouco durante a guarda. Ele estava exagerando. Eu dormia, mas não tanto quanto ele.

Desviei o olhar e enterrei minha cabeça nos joelhos.

— Não gosto de como Kyle Chapman soa — murmurei, desviando do assunto. — Parece o sobrenome fraco de quem permanece. Luís permaneceu. O'Shea, por outro lado, é o sobrenome forte de quem luta contra o mal. De quem foge, como Sandra. Somos fugitivos. Somos lutadores. Como ela foi.

Ian suspirou.

— Ian O'Shea — ele refletiu. — Não me parece tão ruim.

— Pois para mim… para mim parece excelente. Chapman não nos pertence mais.

— Apenas nas nossas Certidões de… — Ian parou por um instante, olhando-me com o cenho franzido. — Deixamos todos os nossos documentos em casa, Kyle!

Qual é, daquela vez até mesmo eu fui mais esperto que Ian!

— Deixamos, sim — afirmei com um sorriso zombeteiro. — E algo me diz que não vamos mais precisar deles.

— E se formos andar de avião?

— Ian, em que você está pensando? — esbravejei, encarando-o. — Nós não vamos pegar nenhum avião! — ele parecia desorientado. — O que quer que esteja acontecendo no mundo… O que quer que invadiu a nossa casa e pegou o velho Chapman… Ian, isso não vai parar. Não vai se resolver. Os caras de preto estão em todo lugar e as pessoas estão muito estranhas. Alguma coisa aconteceu. A linha chegou ao fim. É hora de encararmos o mundo sozinhos, sem ninguém, senão nós mesmos.

Ian tinha esse defeito de achar que tudo tinha solução. E, vá, podia até ter, mas não da maneira que ele pensava. Nossa vida não voltaria a entrar nos eixos nunca mais. Não voltaríamos para a nossa casa; não com os caras de preto andando por aí, não com as pessoas tendo comportamentos estranhos, gentis demais, certinhos demais. Credo, isso me lembra de quando eu era um puritano nerd, do tipo que achava que tudo tinha que estar certinho, no lugar, que não suportava rebeldias. Aquele definitivamente não era eu.

Agora eu era Kyle O'Shea. Forte, valente, que não teme janelas, fugas ou caras de preto. Não posso sentir medo. Sou um O'Shea e O'Shea não sente medo. Eu não sinto medo.

Kyle nunca mais pode sentir medo. Era uma promessa.

Era uma dívida.