Voo | O Chamado

XIII No trem do passado


— Aquela noite era para ser mais uma de minha vida, se não fosse por avistar um jovem galante atravessando o salão. Seu avô com seu porte robusto, sempre bem trajado e super comunicativo conseguiu atrair meu olhar. Seus cabelos castanhos, sua pele clara como as nuvens em dias de sol, seus olhos negros e atentos. Fiquei observando-o pelo salão, andava de canto em canto sutilmente, notando sua facilidade em falar e se comunicar com todos presentes, ele andava de roda em roda e penetrava sem que ninguém ou quase ninguém percebesse.

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Acho que pai percebeu minha sutil dança pelo salão observando o afortunado rapaz. Ele me chamou e andou no rumo do homem, que por horas, observava de longe delicadamente.

Minha avó deu um breve sorriso e disse:

— Ainda consigo lembrar a sensação que senti naquele instante.

Dava para notar que vovó amava intensamente meu avô. Ao menos sua memória e sua emoção indicavam alguém que amou profundamente. Ver seu sentimento vivo, presente e real me encantava.

Ela prosseguia...

— Meu coração disparou, senti meu corpo como se falecesse, nunca tinha sentido isso antes, fiquei constrangida, quis voltar correndo quando ouvi meu pai falar.

— Rosireu! Quero apresentar minha filha Margarete.

Naquele momento não tinha mais para onde fugir, estava cara a cara com o rapaz que analisava de longe timidamente. Cumprimentamos um ao outro, eu meia desconcertada, ele como se me descobrisse naquele exato momento.

Daquele dia em diante constantemente conversávamos, sempre na presença de nossos pais ou em reuniões de negócios. Eu fazia questão de estar presente, só para ter mais um momento de conversa com seu avô.

Ela deu uma pequena pausa e acrescentou.

— Vamos acelerar um pouco a história.

Fomos nos conhecendo e nos interessando um pelo outro.

No dia trinta de agosto ele foi lá em casa e pediu minha mão em namoro para meu pai, que não se opôs, pois era do seu agrado. O comum seria que meu pai arranjasse o casamento, mas nesse caso, o rapaz era de família, homem de negócios, com um forte nome e importância no Rio, o casamento já estava arranjado sem que meu pai fizesse o menor esforço. Como meu pai diria não? Esse casamento era perfeito para seus interesses, era melhor que podia imaginar, em nenhum instante pai imaginaria um casamento tão promissor, e por fim eu ainda era apaixonada pelo rapaz. Neste sentido a vida foi clemente comigo, rejeitaria eternamente ser casada por meros interesses ou obrigações, seria a mais amarga entre as esposas.

No dia cinco de setembro, dois anos depois nos casamos. Uma cerimônia simples e completa. Todos estavam alegres e satisfeitos. Fomos morar em uma rua importante da cidade em que cresci, vivi e encontrei meu grande amor. Tínhamos um relacionamento bom; brigas, reconciliações, chateações, perdões, assim prosseguimos como qualquer casal, sem contos de fadas, vivíamos a realidade da vida a dois, da união carnal e familiar.

Minha avó deu uma pequena pausa, tomou de seu café, enquanto eu olhava atento à espera do desenrolar da história. Estávamos no romance de meus avós, tinha muita coisa para ser contada, eu estava ansioso. A voz de minha avó me tirou das vozes em minha cabeça:

— Acalme-se rapaz! A ansiedade pode ser uma grande inimiga do homem.

Falou me olhando de canto com um semblante desconfiado.

Minha avó era astuta, atenta e sábia. Um tanto diferente. Cada atitude dela me surpreendia, era como se me sentisse acolhido, ela era tão diferente de meu pai, era estridente a distância entre ambos, em atitude e mentalidade. Pela primeira vez me sentia em casa, como se aquela necessidade de sair que eu tanto sentia, aquela necessidade de liberdade estivesse sendo preenchida pela simples presença daquela doce dama. O sentimento de estar limitado, restrito, parecia estar sumindo. Ainda bem que tive a honra de estar com ela, e lhe ouvi, mesmo que este momento me custasse a vida de alguém a qual amo tanto. Afastei aqueles pensamentos, não queria ficar emotivo, não naquele momento.

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Ela continuou...

— O maior problema, não era nosso relacionamento, mas o relacionamento de seu avô com Ramires, seu bisavô. Os dois constantemente brigavam e discutiam, sempre sem conciliações. Seu bisavô era ambicioso, focado e nem um pouco clemente, seja com as pessoas de seu convívio ou familiares, ele era um verdadeiro "mão de ferro", para ele não importava os meios, somente os fins. Rosireu não concordava com os métodos, ideologias e estilo de vida de seu pai. Após uma tremenda sabotagem de seu bisavô com seu avô relacionado aos negócios, para não ocorrer uma tragédia familiar...

Ela falou colocando a mão no pescoço e a língua para fora, indicando um estrangulamento.

— Seu avô decidiu ir embora, para longe de sua família e principalmente longe de seu pai. Ficou para trás a raiva, o rancor, a mágoa. Não existia relação entre pai e filho, somente sentimentos destruidores. Carolina sofreu muito com a nossa partida, mas, foi preciso, para evitar um mal maior. Meu pai ficou desolado, tínhamos uma relação muito boa, toda minha família sofreu. Queria convencer Rosireu do contrário, mas sabia como ele tinha chegado furioso em casa, transtornado, tinha cogitado até contratar capangas; foi difícil acalmá-lo, aliás ser traído pelo pai em contratos comerciais não é fácil. Arcamos com um grande prejuízo, e o ar de arrogância e petulância de Ramires levava qualquer um ao extremo das piores emoções. Partimos no início do verão para o sul do país, mas esse não foi o último lugar em que estivemos, na verdade foi o primeiro de muitos. Fomos para Santa Catarina que era promissora devido a sua fama turística, muitas pessoas transitavam por ali. Seu avô um exímio comerciante, aquele era o lugar perfeito, província costeira, ótimo para as práticas de comércio. O Brasil monarca estava um caos, abandonado à própria sorte, e seu avô estava garantindo sua "própria sorte". Ele pegou todo o dinheiro que tínhamos e investiu nos grãos de ouro (café). Neste período estivemos próximos de nos tornar os mais ricos da província. Tudo que seu avô determinava dava certo, era intrigante, parecia ter as mãos enfeitiçadas. Mas seu avô era desinquieto, ele gostava de apostar todas as cartas, por isso decidimos ir para a cidade promissora de Nova York, Finlândia, Chile e Rio Grande do Sul, Bagé.

— Isso explica o amplo mural de fotos na sala de minha avó.