I wanted to stay with you
Inside me I feel alone and unreal

Na próxima folha, Roger encontrou outra antiga foto que o fez quase desejar fechar o livro. Era uma fotografia escura e apenas alguns flashes de luzes e vultos eram perceptíveis. Dentre todos os vultos o homem se reconheceu com os braços abertos e roupas largas que o fazia parecer ter asas e uma sombra alta que o imitava. Sabia claramente que a música que estava tocando era Astronomy Domine pela postura no palco e também era do seu conhecimento que lugar medonho era o da foto: UFO, uma roundhouse frequentada pelos ingleses mais excêntricos dos anos sessenta. Aquela foto era a prova da banda que nascia em 1965, assim como várias outras bandas de rock, e que seria o início da fama: Pink Floyd.

Seu pai havia morrido quando tinha 16 anos e foi nessa época que ele adentrou ao mundo underground e descobriu o prazer de se meter em festas, beber, usar drogas e sair com várias garotas numa noite. Foi também o momento que nasceu o famoso personagem “Syd Barrett”, que surgiu de uma brincadeira por conta de ter outro músico com o mesmo sobrenome que Barrett que se chamava Sid. Para não imitar a grafia, seus amigos decidiram que o apelido de Roger seria com Y e passaram a chamá-lo somente de Syd. Ele não gostava muito do apelido, mas acabou o adotando por não ter muito o que fazer.

Syd dos 16 aos 19 anos estava em várias outras bandas anteriormente e participava eventualmente de algum show, mesmo que fosse um hobby para Barrett, afinal seu sonho principalmente era ser reconhecido como um pintor e por conta disso que havia decidido estudar artes em Londres. Somente teve certeza que queria se profissionalizar na música quando descobriu bandas como os Beatles, que viraram sua maior influência. Não somente isso: Teve certeza que não só queria formar uma banda, como liderar ela. Era uma figura irônica, afinal, Roger era de fato extrovertido, porém muito tímido para grandes apresentações.

Por conta disso o recém-nascido Syd Barrett começou a se empenhar para atingir a sua nova ambição.

Antes de criar uma banda tinha que conseguir músicos e conhecia vários por conta da cena musical de Cambridge. Um deles era o seu vizinho que morava a algumas casas de distância e que também havia tocado nos mesmos grupos diversas vezes. Ele era Roger Waters, o garoto que conhecia desde criança e que seria ideal para fundar o seu projeto mirabolante.

— Por que você está me levando aqui? — Waters entrava na escura UFO, esbarrando em algumas pessoas pelo percurso. — E não acredito que entramos, a fila estava impossível.

— Porque eu vim te mostrar algo que vai fazer sua cabeça explodir. — Falou empolgado, não se preocupando em esbarrar nos outros. — Agora se prepara para ver algo incrível.

Aquela noite era a primeira vez que ambos estavam saindo somente os dois sem acompanhar os outros amigos do típico grupo que se formava ao redor de Syd. Não era por nenhuma razão em particular e Syd somente queria poder mostrar as maravilhas do UFO, mas havia conseguido convidar somente Roger Waters naquele dia e por ser obstinado, decidiu ir independente do número de pessoas.

O andar dos dois pareciam tombar pelo caminho em passos apertados e o ambiente era completamente claustrofóbico. Andando pelo local se encontrava o rastro da música alta, o cheiro impregnado no ambiente de álcool, tabaco e maconha e homens e mulheres se beijando pelos cantos e Roger Waters não conseguia compreender o que ele estava querendo lhe mostrar. Conhecia o UFO e conhecia o público do local, não compreendia o motivo dele tê-lo levado ali e nem o porquê ele estava tão agitado. Contudo conhecia Syd por suas histórias e tinha noção de que não deveria entender.

No fim das esbarradas a dupla conseguia se aproximar do palco o suficiente para enxergar o show da banda que estava no palco. Os dois estavam praticamente enlatados e mal conseguiam se mover no mesmo lugar, colados ombro à ombro em meio a uma multidão dançante e eufórica. Syd olhou de relance para o convidado com um sorriso no rosto que demorou alguns segundos para reagir e o olhou de volta, sendo interrompido pela voz do rapaz.

— Você vê, não vê? O que isso faz com as pessoas. — Sua voz soou alta para se tornar audível. — Deveríamos formar uma banda para tocar aqui também.

— O quê? — Waters não o escutava direito por conta do barulho.

— Eu disse que deveríamos formar uma banda! — Aumentou mais a voz o quanto era possível.

— Eu não estou entendendo nada, do que você está falando, Syd?

Sem paciência como era, Syd se aproximou do ouvido de Roger sem dificuldade nenhuma por conta da proximidade e repetiu novamente para ver se ele escutava dessa vez.

— Eu falei que deveríamos formar uma banda que nem essas que tocam aqui. — Palavra por palavra era dita, até que afastasse o rosto.

Waters abriu a boca como se finalmente compreendesse o objetivo de Syd ao levá-lo naquele lugar, parando os olhos em Barrett que mostrava um ar risonho e ansioso, esperando que o outro lhe desse alguma resposta para aquele pedido camuflado.

— Mas, Syd… Nós já tocamos em bandas. — Falou próximo do rosto do outro também.

— Tocamos, mas não é a nossa banda. — Syd salientou. — Vamos, Rog, devemos tentar!

— Claro, podemos, mas não sei se uma banda de duas pessoas funcionaria.

— Não esquenta. — Abanou a mão com descaso, continuando. — Vou ver se chamo o Rick. Não posso chamar o Dave, ele já está numa banda, mas acho que consigo arranjar mais um quarto membro. Talvez o Nick. E Bob também.

— Eu nem falei que concordo, não se precipite demais. — Tentou falar seriamente, mas o riso contido denunciou Waters.

O quase riso de Waters fez com que Syd interpretasse como uma confirmação, que demonstrou satisfação ao retornar o olhar para o espetáculo daquela noite. Estava realmente feliz e conseguia fantasiar ele mesmo na frente dos outros, tocando guitarra. Poderia arranjar alguém que cante e escrever as músicas.

Tantas ideias passavam pela sua cabeça e sua determinação espontânea transparência a típica confiança de que o rapaz sabia o que estava fazendo e seu sorriso focado na música, seus olhos verdes e cintilantes e o queixo erguido eram definitivamente o que dava tanta certeza que talvez aquela ideia imprevisível poderia funcionar.

O show continuou por algumas horas e o assunto entre os dois parecia ter morrido no instante que Syd apenas parou para olhar a banda no palco. Era de se impressionar que o rapaz realmente demonstrava foco em algo, quando era conhecido por ser aéreo e distraído, mas aquilo havia realmente roubado sua atenção e não parecia que iria mudar os planos. Seus olhos apenas pararam de pairar os músicos quando teve a pausa na música, retornando para Roger.

— O que você achou, Roger?

E então, sua voz sumiu aos poucos.

Não conseguiu definir uma única palavra para o que havia acontecido, mas era como um das suas várias anábases de ideias. Em algum único momento havia percebido que Roger era um homem bonito? Bom, não seria um comentário comum para os outros e os lábios de Mick Jagger não o favoreciam, mas esse pensamento havia seriamente passado por sua cabeça. Se ele fosse uma garota como sua atual namorada na época, Libby Gausden, poderia comparar com outras amantes, mas não era o caso, então não tinha com quem comparar e isso fazia Syd não saber se ele era mais ou menos bonito que outro rapaz.

Ainda assim, ele era alguém bonito.

— Eu acho… — Roger interrompeu os pensamentos de Syd com um sorriso. — ...Que isso pode dar certo.

Balançou a cabeça como quem afasta mosquitos, para então voltar finalmente para órbita da qual tinha fugido ao olhar para o colega. Não deveria pensar naquilo, havia coisas mais importantes para se preocupar, por exemplo, o rumo da sua banda que nem existia.

— Eu disse. — Syd concluiu, disfarçando a encarada. — O que acha, Roger? Está dentro?

— Tudo bem, tudo bem. Estou dentro. Melhor assim?

— Ótimo! Podemos começar a ensaiar semana que vem!

— Espera um minuto. — Roger tentou colocar os pés de Syd no chão, mas não tinha certeza se adiantaria. — Você nem viu ainda se os outros vão querer.

— Eu convenço eles. — O sorriso de Syd puxou no canto da boca. — Afinal, convenci você, não convenci?

— Só você mesmo, Syd…

Syd pareceu realizado ao perceber que havia deixado o amigo sem palavras, mas sua comemoração interna foi forçada a terminar ao sentir uma cutucada no ombro. Estava escuro e cheio, então teve que se ajustar para que conseguisse se virar para trás e descobrir quem havia o chamado.

— Hey, Syd! — Apenas escutou a voz feminina, vendo o vulto do rosto vez ou outra por conta dos flashes.

A frase “Eu te conheço?” quase escapou da sua boca, mas conhecia muita gente, até mesmo pessoas que mal fala ou que estava “chapado” demais para se lembrar, logo ao menos essa rara vez conseguiu segurar a língua.

— Oi, sim, eu sou Syd. O que houve?

— Eu e um pessoal vamos dar uma volta e deram a ideia de te convidar, quer vir? — A garota olhou para Roger. — Você pode levar o seu... — O vulto não sabia como expressar, rindo por fim. —... Amigo? É. Vocês podem ir juntos.

— Não temos muito o que fazer e já assistimos o que queríamos, por que não? Você vem, Rog?

— Não sei não. — Olhou desconfiado. — Você sabe quem são eles?

— Se eu sei? — Syd refletiu alguns instantes, para depois fazer pouco-caso.. — Devo saber. Então, vamos, bicho?

Imprevisibilidade. Isso definitivamente o caracterizava.

Se enfiar com pessoas estranhas numa balada. Esse era o típico de Syd Barrett e era óbvio que apenas ele poderia mudar a própria ideia e não os outros ao seu redor. Era alguém que tinha pensamentos muito fixos, tão fixos que beiravam a teimosia. Roger o olhou desconfiado por um tempo, com um “sério isso?” visivelmente estampado em seus olhos, porém sua reação foi somente um suspiro.

— Nós vamos. — Respondeu por Roger para a garota da festa.

— Ótimo! A galera está logo lá trás, só me seguir.

Pouco tempo depois, a misteriosa menina havia sumido entre os dançarinos embriagados que curtiam a ausência de música por conta da pausa e Syd não esperou muito para começar a puxar Roger para acompanhá-los. Ficou um pouco em silêncio, finalmente percebendo algo que a garota havia dito, não conseguindo, como de costume, conter uma risada que se durasse mais um pouco poderia lhe doer a barriga.

— O que houve? — Ainda era puxado, pedindo desculpas pelo caminho, apesar de ninguém realmente se importar. — E olha por onde anda, Syd!

— Só achei engraçado. — Olhou com uma expressão de clara zombaria. — Ela achou que fôssemos gays.

— Gays? — Um pequeno “Oh!” saiu dele, com um riso que acompanhou Syd. — Por isso ela falou daquele jeito, meu deus.

— Não é? Por isso achei engraçado.

Continuavam o percurso e a música demonstrava retornar pouco tempo depois. Aparentemente a banda havia retornado para o palco, mas agora a ideia de Syd se transformava em encontrar aquelas pessoas que o conheciam de algumas de suas viagens. Era alguma espécie de blues experimental e suficientemente agradável aos ouvidos já que haviam algumas pessoas aproveitando o som enquanto a dupla andava.

— É. Com certeza. Uau. Eu tenho certeza que eu não sou. — Waters declarou, ainda na brincadeira.

Syd parou de andar num movimento de reflexo assim que escutou Waters, parando um pouco o fluxo de pensamentos e retornando a andar. A mesma facilidade que havia tido para começar a rir daquilo havia tido para instantaneamente parar, como se tivesse desligado completamente da piada por alguns segundos. Após a estranha pausa, uma face divertida brotou em Barrett.

— É uma pena, quer dizer que você perdeu a chance com tudo isso. — Apontou para si mesmo num tom levemente maldoso.

— Você? Tá bom. Você antes de namorar a Libby saía com mais garotas que todo mundo que conheço e quer falar de beijar rapazes?

— Não fale como se isso definisse algo. — Soltou o braço de Waters ao saírem da multidão, esticando os braços. — Eu eventualmente posso experimentar um dia.

— Claro, claro. — Waters evidentemente não o levou a sério, mas também parou de alimentar aquela história.

Os dois não demoraram para encontrar com um grupo de pessoas que também não perderam tempo antes de oferecerem dietilamida do ácido lisérgico para dupla, o que Waters recusou. Não era de usar drogas, apesar de beber bastante, e também deveria chegar em casa bem. Vivia ele e sua mãe e não seria bom ficar perto dela “fora da terra”. O contrário foi com Syd, que aparentava ter feito isso outras vezes e talvez explicasse de onde ele provavelmente conhecia todas aquelas pessoas esquisitas.

Nenhum dos dois tocaram mais no assunto inusitado a respeito de sexualidade e nem conversaram mais o resto da noite e após isso Syd se tornou incomunicável por várias horas. E assim, aquela pequena fagulha, inicialmente nascida da curiosidade, pareceu se manter em Barrett não somente naquele dia no UFO, como dias, semanas e até mesmo anos depois.

Não foi o mesmo com Waters e não importava para Syd no momento.

Barrett terminou novamente de devanear a respeito do passado por conta da fotografia no álbum. Lembrar de Waters nunca era bom, mas era inegável em como Roger Waters influenciou no seu passado e no nascimento do que seria a banda Pink Floyd e no fim dela como a banda do Syd Barrett. Era praticamente impossível não pensar nele, ainda que não o visse há anos, e sabia que a culpa era da sua parcialidade quanto o ex-parceiro de banda. Não pensava da mesma maneira com Nick Mason e Rick Wright, mal tinha mais a ideia do rosto deles, mas Roger Waters o assombrava quando acabava se recordando.

Folheava as outras páginas, vendo fotos com antigos amigos, com seus irmãos, muitas com a sua mãe... Nada o remetia a Waters ou ao Pink Floyd e uma sensação tímida e pequena de alívio parecia querer se mostrar presente de pouco em pouco até que passasse para a folha seguinte.