Você... se sente bem?

A calmaria no meio da tempestade


Shiniji via o mundo vermelho.

Não acreditava no que seus olhos o informavam. Pareciam pregar-lhe uma peça.

Um sentimento esquisito vagou pela sua mente. Teria ele estado já aqui?

Não. Impossível.

Esse fim de mundo era surreal, mas por algum motivo... familiar.

Era acolhedor e desesperador. E silencioso, acima de tudo.

O silêncio ainda o assustava, o lembrava de momentos ruins, que julgou terem sido jogados fora, presos em algum lugar distante.

— Shinji-kun? — uma voz maternal o chama. Já tinha ouvido isso antes.

É, já tinha estado aqui.

— Ayanami? — virou-se abruptamente, procurando a velha amiga para ser confortado, apesar de nunca terem trocado uma palavra de afeto, ela transmitia uma sensação boa... melhor do que a de Kaworu... melhor até do que de Asuka... não, essa sensação não podia ser comparada... ela era, sobre tudo, diferente e especial. Ele sorriu ao não encontrar Rei. Lembrou-se do que ela lhe dissera há algum tempo.

— Ayanami... por que pilota o EVA?

A Primeira Criança olhou pensativa para seus joelhos. A brisa de cima do monte trouxe um pouco do cabelo azul para sua face pálida.

Seu olhar era calmo, como se seu corpo estivesse em outro lugar, longe da guerra, dos problemas, dos Angels. Ela era a calmaria no meio da tempestade.

— Por causa dos meus laços — ela respondeu por fim, depois de longos segundos. Olhou para o horizonte — Afinal, eu não tenho mais nada além disso.

Rei se levantou.

— Vamos, está na hora — Ayanami disse se retirando e me deixando sozinho.

No início não entendia o que ela quis dizer, mas agora compreendo.
— Shinji-kun...

A menina de olhos vermelhos sangue apareceu, dócil e perigosa ao mesmo tempo. Como sempre fora. Uma mistura interessante.

— Finalmente o achei — ela sorria, singela.

Nunca havia visto Ayanami sorrir tão espontânea.

— Onde estamos? — perguntei confuso.

— Você se sente bem? — ela se postou em minha frente, ainda sorrindo.

— Bem... me sinto... estranho... — respondi franzindo o cenho.

— Eu me sinto viva. Já não estou presa a meu corpo mortal, posso ser livre como nunca fui — a Primeira falou calma.

Ela estava diferente, com uma aparência melhor. Mais... humana, apesar de já não ser mais metade mortal.

— Tem certeza que não se sente bem, Ikari-kun? — repetiu insistente.

Nada respondi, só assenti com a cabeça, me esquivando da pergunta.

Contemplamos o nosso mundo. Terra.

— Não... acha estranho?

Encarei-a curioso.

Rei recomeçou — Estamos fadados a cometer sempre os mesmos erros, na esperança de que algo mude, e, no final, só temos isso, a esperança. Como podemos querer que algo mude, se o que precisamos mudar, somos nós?

Não são os lilins, cheios de si, gabando-se de inteligência superior à outros animais? Quando na verdade, de que te servem toda essa superioridade, se não conseguem entender a si mesmos?

Vocês só querem ser amados, mas não dão motivos para outros o fazer, e, quando alguém demonstra afeto, vocês correm, fogem.

Querem ser independentes, mas a cada passo que pensam dar para a liberdade, apenas os torna mais dependentes.

Sei que julgam-me por ser a Primeira Criança, por seguir ordens, como um robô. Uma... "boneca sem sentimentos", apenas obedecendo. Mas não é isso que todos vocês vêm fazendo? Nunca tentaram entender o que os outros ao seu redor sentem, mas querem ser compreendidos. Vocês podem achar estranho, hipócrita se me ouvissem falar essas palavras em voz alta, mas a verdade é que tudo o que vocês sabem sobre mim, é o que eu deixo vocês verem, então vocês não me conhecem, nunca irão. Afinal, ninguém nunca conhece os outros completamente.

Fazem tudo por uma vida mais confortável, e deixam de desfrutar o real significado disso tudo. Por que tudo tem de ser cômodo?

Se não procurássemos comodidade, não teríamos que arcar com tantas consequências. Se apenas vivêssemos simples e puramente, teríamos alcançado o auge dos nossos sonhos, não?

Você se sente bem?

Ouvimos isso constantemente, mas é uma pergunta retórica. Ninguém dá a mínima para o que você sente, só perguntam o que lhes fora ensinado; ser educado com os outros, mas é uma falsa gentileza. Voltamos ao ponto da obediência e dependência, pois, se não fosse por estes, como mais viveríamos?

Você se sente bem?

Hipocrisia. Nunca perguntaram-me como eu realmente me sentia. Por que eu fazia isso, ou aquilo. Nunca pararam para se importar, mas esperam que eu faça isso por eles.

Lilins reclamam sempre.

Nunca viram a morte, mas a temem. Ela poderia ser apenas uma boa e velha amiga os saudando em casa, após uma longa e árdua viagem.

Como podem valorizar tanto a vida, se colocam um preço nela? O essencial não pode ser comprado. Você pode pensar que pode comprar, mas é uma felicidade temporária, pois não "somos" felizes, apenas nos "sentimos" felizes. Felicidade não é um estado duradouro, é um sentimento passageiro.

Pessoas vendendo suas almas.

Elas não necessariamente vendem suas almas, pois ela só pertence a você. Elas vendem uma parte de seu corpo, mas não a alma, nunca a alma. Isso nunca poderá ser tirado de você. A capacidade de pensar por si só é um dom, mas também uma maldição dada aos lilins.

Se sentem sozinhos, e a necessidade de algo para preencher esse vazio, a necessidade de segurança, os faz buscar uma pessoa certa para tomar lhe as dores e sofrimentos, amenizar o buraco que possuem e que nunca poderá encher-se completamente.

Isso é triste. Lilins nunca se livrarão da solidão.

Seus segredos sombrios te assustam, por isso os enterram, na esperança de nunca mais ter de vê-los. Esperança. Esperança de liberdade, pois só assim julgam ser felizes.

Afinal, o que é liberdade?

Seus conceitos, morais e princípios foram deturpados, distorcidos para moldarem-se a seus desejos.

Comodidade. Odeio essa palavra.

Ódio.

Simples e puro.

Amor.

Simples e puro.

Essas duas palavras têm grande impacto na vida dos lilins, e, muitos dizem ser os extremos dos sentimentos, quando na verdade, são sinônimos, apenas usados em diferentes ocasiões.

Quantas vezes já disseste "eu te odeio", quando o "odeio" poderia ser substituído por "amo"?

Viu? Não é tão diferente.

Lilins buscam a felicidade, mas a rejeitam quando ela lhe dá as caras.

Afinal, a pergunta que move a sociedade é:

Você... se sente bem?

Você.

Você está cômodo?

Você.

Comodidade...

Por isso, escolho destruir o mundo, e, com ele, os lilins, assim quebrando nosso ciclo infinito e sua eterna tristeza.

Que ironia... — ela completa, ainda olhando o mundo vermelho.

Arregalei os olhos — Certamente já estive aqui... mas era eu quem decidia o curso da vida...

Ela riu.

Uma risada gostosa e ingênua.

Pura.

Também nunca havia escutado aquele som angelical vindo dela antes.

Rei era simplesmente... ela.

— Finalmente conseguimos quebrar o ciclo infernal... não se sente bem? — Ayanami me fitou, calma como sempre, porém diferente de certo modo.

Sorri sincero, vendo que minha parceira de guerra já não carregava um olhar vazio com mágoas escondidas quando ela pilotava o EVA.

Ela era a calmaria no meio da tempestade.

O mundo à nossa frente se desintegrava lentamente.

Flashes de luz em forma de cruz irrompiam de todos os cantos da Terra, representando cada ser humano, cada sonho jogado ao vento, cada partícula de nossa existência. Logo, nunca mais seríamos lembrados.

"Você se sente bem?".

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.