– Você tem ideia da consequência de seus atos, Sr. Hopper? – Me indagou seriamente.

– Eu não falo nada sem a presença do meu advogado.

– Típico. Mas olha aqui, vou ser franco com você, afinal já é um homem mais do que crescido: nós não estamos numa série televisiva onde eles solucionam mortes misteriosas. Isso aqui é sério – se inclinou em minha direção, com os olhos severos.

– Eu realmente não vou falar nada. E não sei por que estou aqui, se não fui eu quem a matou e nem tinha envolvimento com ela.

– Não tinha? – perguntou, ironicamente.

– Bem, nenhum, além de ter sido minha aluna há três anos atrás e periodicamente ir em minha sala para uma consultoria.

– Temos uma testemunha ocular de que o senhor mantinha um relacionamento extraconjugal com a menina.

A primeira coisa que eu senti quando ele me disse aquilo foi um frio na espinha. Como se uma lagarta feita de gelo estivesse subindo pela minha coluna, penetrando em cada camada dos meus músculos e acionando meus impulsos nervosos. Mas o ódio era maior que qualquer outro sentimento. Era uma mescla de raiva com pavor.

“A única vez que me senti assim na vida foi quando Clara me confessou que seu pai batia em sua mãe”.

– O que o senhor disse? – perguntou o delegado interrogador, agora com uma expressão facial menos rígida.

– Eu não disse nada – senti minha língua secar.

– O senhor disse algo como “me senti assim quando a Clara me confiou que seu pai batia em sua mãe”.

Não podia ser. Eu tinha acabado de entregar um fato de peso, que agora, mesmo com advogado não me deixaria escapar desse interrogatório. Como pude pensar tão alto algo tão sério? Senti minha boca inteira secar.

– E então, não tem nada a dizer? Acho que deve algumas explicações a justiça.

– Eu preciso tomar um pouco de água – desconversei sorrindo simpaticamente. Bem, eu ao menos espero que meu rosto esteja simpático, porque por dentro me sinto uma pilha de nervos – Me permite?

Quando ia me levantando mesmo sem qualquer permissão, fui interrompido pela chegada de um homem. Era o Dr. Williams, meu advogado. Agora não tinha mais o meu motivo para não falar. Eu tinha de contar tudo o que sabia. Ou quem sabe, não tudo.

– Perdoem-me o atraso. Fiquei preso num engarrafamento na Quinta Avenida. E como está o andamento do processo? Foi feito algum depoimento?

Sentei-me de volta.

– Não, eu ia começar a contar agora para esse elegante rapaz o que realmente aconteceu. Só estava esperando o senhor chegar, Dr. Williams. – disse num tom ironicamente debochado, referindo-me ao Sr. Armstrong, o interrogador.

O auxiliar entrou na sala, como se tivesse sido chamado previamente.

– Tony – disse o Sr. Armstrong referindo-se ao rapaz, impecavelmente trajado – poderia trazer um copo de água para o Dr. Hopper? – acenou para mim – e para esse outro senhor...

– Um café, com açúcar, por favor – completou meu advogado.

– Uma água e um café então Tony. Obrigado.

Fechou a porta. Era a hora da verdade.

– Tudo o que o senhor disser a partir de agora poderá ser usado contra você. O Sr. Nielman ali digitará cada palavra que o senhor disser e peço ao senhor, Dr. Williams que não interfira no depoimento de seu cliente. É crime mentir à justiça, então mantenha a verdade – voltou a me encarar.

– E no que eu posso lhe ajudar? Preciso voltar para o meu trabalho o mais breve...

– Eu disse que temos uma testemunha ocular de que o senhor mantinha um relacionamento extraconjugal com a vítima do assassinato.

– Calúnia! – ergui a voz, já moderando-a em seguida – Isso é uma mentira deslavada. Eu jamais mantive um relacionamento com qualquer um dos alunos da escola! E aliais nem sou mais casado. Divorciei-me há cerca de dois meses atrás.

– Abaixe o tom ou poderei lhe prender por desacato a autoridade, está me ouvindo!? – Foi a vez dele de gritar.

– Perdão. Mas como ia dizendo isso não passa de uma difamação. Quem lhe disse tal calúnia? É claro que é o verdadeiro assassino querendo me acusar.

– Sigilo total. Nenhum dos depoimentos pode ou será liberado. Não enquanto eu estiver no comando. A proteção dos envolvidos é fundamental. Mas voltando, o senhor tem noção do que fez, isso se o fez? Pedofilia é crime em nosso país. Fora que acabou de deixar escapar que Clara confiou a você que o Sr. Silver batia em sua esposa, certo?

– Sim, não vou negar. Ela realmente foi à minha sala na semana passada e me contou que seu pai havia batido em sua mãe e me pediu ajuda quanto a isso.

– E o que disse à menina?

– Eu falei que isso era um crime e que ela deveria ligar para a polícia. Que se ela não o fizesse, pelo fato de ser o seu pai, eu o faria.

– Não recebemos denuncia alguma dela esse mês.

– Isso porque ela não denunciou. Então eu liguei.

– Não recebemos denuncia alguma de qualquer um esse mês. Moramos em uma cidade bem pacata, Sr. Hopper. O senhor está tentando burlar o sistema mentindo para a polícia?

– Em momento algum eu disse isso. Eu disse que liguei, e não que fiz a denuncia. Fui interrompido por Clara ao tentar.

– Prossiga.

– Vou contar de fato o que aconteceu. Semana passada Clara apareceu na minha sala na quarta feira num estado de nervos no qual eu nunca tinha a visto antes. Ela era uma menina muito simpática, e estava sempre sorrindo e conversando por aí. Suas notas eram exemplares. Eu acompanhava todas de perto periodicamente, em suas visitas mensais para falar de seu desenvolvimento escolar. Mas aquele dia ela estava muito aflita e disse que precisava me contar um segredo.

– Que o pai dela batia em sua mãe. Já sabemos.

– Isso! Ela contou que eles sempre brigaram desde que ela se lembra, e que eventualmente sua mãe aparecia com hematomas pelo corpo e reclamando de dores. A maior parte das vezes eles brigavam pela dona Lucy, avó de Clara, que diariamente criava problemas na clínica psiquiátrica onde mora. Clara estava em choque porque sempre desconfiou que seu pai batia em sua mãe, mas nunca tinha visto a cena para ter a prova: até aquele instante. Então aconteceu o que eu disse previamente. Falei pra ela ligar, ela não quis, me impediu de ligar...

– Adiante.

– Acabando fomos interrompidos por uma ligação de sua mãe. A dona Lucy aparentemente havia fugido novamente da clinica. Parece que era comum ela fugir ao menos uma vez por mês, por isso seus pais brigavam tanto. O Sr. Silver queria transferir a sogra para uma clinica mais rígida em outra cidade, e a distancia e o preço impediam que sua esposa concordasse. Eles brigavam a cada escapada da velha... – rí.

– Tenha respeito para com a senhora! Não estamos na sua casa para falar o que bem entende. Mas agora me diga, ela lhe contou tudo isso apenas naquela conversa?

– Não – estremeci - As constantes fugidas de sua avó eu já sabia de outros encontros nossos, mas não da gravidade das discussões de seus pais.

– E o que aconteceu depois da ligação?

– Parece que havia um lugar, uma espécie de esconderijo na floresta, que só a dona Lucy e a Clara conheciam e que toda às vezes que a senhora fugia ela ia para lá. Elas ficavam lá até o final do dia ou passavam uma noite no máximo, e então a menina sempre levava a avó de volta para a clínica psiquiátrica. Por mais que a saúde da avó estivesse em jogo com tantas fugas corriqueiras, ela nunca contou a ninguém, nem mesmo aos pais, que lugar secreto era esse. Logo, a mãe dela queria que ela fosse buscar a avó, como já estava acostumada a fazer.

– E então ela foi?

– Sim. E a minha história acaba por aí.

– Pois eu acho que não. Ou melhor, tenho certeza que não. Aparentemente você foi visto indo para a casa da vítima, na intenção de intimidar o pai de clara.

– Sim.

– Você não vai nem tentar negar? Fico surpreso.

– Por que mentiria? Eu tentei conversar com ele, mas a verdade é que ao tocar no assunto ele já sacou o seu rifle de estimação atrás da porta e ameaçou atirar em mim caso não fosse embora de sua propriedade. E que se eu voltasse, atiraria sem pensar duas vezes.

– Rifle de estimação?

– Sim. A Clara já havia me avisado dele. Ela que o chamava assim...

– A Clara? E por que ela lhe contaria tal coisa?

– Bem... – fiquei sem palavras, ele me pegou. Sabe aquela sensação da lagarta de gelo na espinha? Tinha voltado com tudo.

– Pois eu sei a resposta: – ele mesmo se respondeu – por que vocês dois mantinham um caso, estou certo?

– Não! – sua desconfiança me irava – não mantínhamos um caso, eu já disse. Nosso relacionamento era estritamente escolar! Mas em suma, tudo o que aconteceu foi que enquanto eu me afastava lentamente o telefone do Sr. Silver tocou, e por algum motivo ele fez questão de responder da forma mais alta possível.

– Prossiga.

– Ele estava falando com a Clara, que ligou de um orelhão pra avisar que estava com a avó e voltaria para casa no dia seguinte. E ele contou que eu estava lá, na sua propriedade, lhe acusando de mentiras que segundo eu, tinha sido Clara a inventora. Depois daquilo eu fui embora, e nunca mais a vi, nem mesmo na escola. Confesso que devia ter ligado para a polícia depois, mas não o fiz, simplesmente porque não queria me envolver com a história. Mesmo em anônimo. E o que tenho a dizer acaba por aqui.

Levantei-me. Não aguentava ficar naquela sala nem mais um instante. Minha garganta estava inteiramente seca porque aparentemente o auxiliar se esqueceu de trazer minha água. Mas fui interrompido ao tentar sair.

– Só mais uma coisa: as partes do corpo da menina que foram achadas foram encontradas boiando no rio que cruza a floresta e fornece água a cidade. Você acha então que ela pode ter sido morta na floresta, nesse suposto esconderijo com a avó, e lá mesmo ter sido desmembrada e jogada no rio?

– Sim. Isso é o que eu acho.

– E quem teria feito isso?

– Oras, a avó.

– A dona Lucy?

– Bem, só elas conheciam esse esconderijo, e convenhamos que ela é esquizofrênica. Ela é louca. Por isso está internada em uma clinica psiquiátrica há anos. Fora que teve a filha cedo e ainda é nova. Deve ter uns 50 e poucos anos. Talvez 60, não sei. Ainda tem força. Ela matou a garota.

– Tudo bem então. Você e seu advogado podem ir. Apenas assinem o documento que será impresso agora ali na recepção, atestando o seu depoimento e estão liberados. E não saia da cidade, você estará sob vigia.

– Tudo bem.

– Entraremos em contato.

Eis então que somos cortados pela entrada do auxiliar Tony, eufórico, e sem a água e o café.

– Isso são horas Tony? O que esteve fazendo esse tempo todo?

– Senhor, temos um problema.

– O que aconteceu?

– O Sr. Silver, pai da vítima Clara, acabou de ser pego no aeroporto da França. Aparentemente ele estava tentando fugir, mas os policiais daqui o identificaram ainda em voo e contactaram a guarda francesa. Ele foi preso em Terra.

– Isso está me cheirando muito mal! Vamos Tony! Avise a embaixada que entre em contato imediatamente com a guarda francesa para que o deportem de volta para cá. Ele é uma peça crucial para a resolução do caso, e aparentemente está sendo acusado de outros crimes. Tragam-no de volta, e a esposa junto.

– A esposa não está com ele. Foi ela quem ligou para a polícia para informar o desaparecimento do marido. E não poderemos deportá-lo senhor.

– Por quê?

– Agora é inverno na França. Uma enorme nevasca fechou todos os aeroportos.

– Era só essa que me faltava. Vamos, leve o Sr. Hopper e o Dr. Williams a recepção, e ponha a clínica psiquiátrica na linha. Preciso falar com seus responsáveis.

– Está tudo bem senhor?

– Sim – me encarou – é que aparentemente a avó da garota, a Dona Lucy é uma das possíveis assassinas.

– Sim, senhor. Já os ponho na linha.

E sem um sequer cumprimento pela parte do interrogador, eu e meu advogado fomos em direção à recepção, onde assinamos os papeis para enfim ir embora daquele lugar.

Quem foi o imbecil que descobriu e contou do meu caso com a garota? Juro que farei essa pessoa pagar caro por isso.