Vermelho em sete atos

Ato 1 - Vermelho como olhos sonolentos pela manhã


Ato um – Vermelho como olhos sonolentos pela manhã

Os olhos castanhos mel, preguiçosos, recém-despertos pela luz que a cortina velha e desgastada não era capaz de barrar, não o notaram de imediato.

Era uma terça-feira comum. Fim de primavera. Quente como deveria ser. Quente o suficiente para que o homem mais forte de Ikebukuro deixasse abertas as janelas, na esperança de que durante a madrugada o quebrado ar-condicionado não fizesse a falta que, de fato, fez. Não fora ele a correr a cortina escura, mas agradeceu silenciosamente ao vento por tê-lo feito. Não fosse por ele, certamente o sol o teria acordado com diferença superior aos trinta minutos em relação ao horário marcado no canto superior do despertador antiquado que repousava no pequeno criado-mudo ao lado de sua cama.

Por conta dos trinta minutos de diferença, Heiwajima Shizuo se permitiu espreguiçar-se longamente, deslizando satisfeito os dedos dos pés pelo lençol e torcendo-os em prazer pelo contato macio. Um sorrisinho discreto, daqueles que apenas pessoas despertas não por apitos estridentes mas por raios solares são capazes, espalhou-se por seu rosto antes que espantasse para longe dos olhos o sono com um esfregar enfático.

Foi, então, neste momento, que ele o percebeu.

Um pulo e um grito: a reação, exagerada mesmo para os padrões do homem mais forte de Ikebukuro, deixou em pedaços não somente a cama de casal comprada com esforço no ano anterior como também quaisquer resoluções de aproveitar calmamente o tempo a mais que recebera naquela manhã ao ser acordado pelo sol. De pé, lábios novamente silenciosos, coçou mais uma vez os olhos. Coçar que, rapidamente, transformou-se em um acenar incrédulo da mão esquerda em frente a ambos os olhos castanhos-mel. Direita, esquerda, direita, esquerda: a mão acenando em pêndulo quase como manivela a abrir cada vez mais os olhos de Heiwajima Shizuo.

– O que, caramba, é isso? – diferente do tom de sua primeira reação, as palavras escaparam em um sussurro descrente.

Fato era: os olhos que tanto se abriam a fitar a mão esquerda não eram desacostumados a encontrarem-se com o anormal, não quando corriam por mais de vinte anos o distrito de Ikebukuro, em Tóquio, não quando eram, eles mesmo, parte das mais anormais de tal distrito. Mesmo que, contudo, acostumado ao inesperado, Shizuo não soube como reagir quando algo que tanto tinha de tal adjetivo amanhecia preso à sua mão esquerda.

Não o alcançou como uma conclusão consciente, mas Shizuo tinha certeza de que a mais adequada maneira de combater o anormal era com outra dose de anormalidade. Sua própria dose de anormalidade. E, portanto, encarando com determinação sua nova parcela de inesperado, reuniu tudo o que trazia em si e a puxou com a força que arrancava gritos de pavor em Ikebukuro.

Puxou, empurrou, teria mordido e chutado se seu antiquado despertador – presente de seu parcialmente antiquado irmão mais novo – não anunciasse que a meia-hora entregue tão carinhosamente a ele pela luz do sol através da velha cortina escura fora plenamente gasta em incredulidades e olhos excessivamente abertos, e não, infelizmente, no banho mais longo e no café da manhã que iria além do copo de leite que agora descia quase amargo por sua garganta.

Quando cruzou a soleira de seu apartamento, perfeitamente vestido com seu usual inapropriado uniforme de trabalho e sua usual carranca, tinha certeza de que ignoraria o estranho que acordara com ele naquela manhã.

Sua resolução, entretanto, mesmo que carregada da força do homem mais forte de Ikebukuro, não mostrou-se fácil como ele julgou que seria.

Não no início. No início não teve, verdadeiramente, problemas. Manhãs nunca eram especialmente problemáticas. Ele tinha palpites, que nunca confirmaria, de que Tom nunca visitava os piores pela manhã. Não que o ramo no qual estavam envolvidos permitisse muitas possibilidades de escolha, eram todos, inegavelmente, devedores que provavelmente não pagariam o que deviam. Mesmo que unidos por esta condição (a exata condição que levava Tom e Shizuo, e não outros cobradores da agência, a suas portas), havia entre os devedores aquele que reconheciam ambas as condições, a da dívida e a da improvável quitação, sem tornarem-se agressivos ou deselegantes. Esses poucos devedores, aqueles cujos rostos baixavam ao abrir a porta e os ombros curvavam-se em vergonha e culpa, aqueles que ele tinha certeza destinarem boa parte do dinheiro recebido a duras penas com trabalho mal remunerado a quitar a dívida contraída em algum momento de desespero e aqueles, portanto, a quem o homem mais forte de Ikebukuro dispensava certa empatia, Tom reservava as manhãs.

As manhãs de Shizuo, portanto, com algumas raras exceções, eram sempre passadas com ambas as mãos inutilmente repousadas nos bolsos. Repousadas nos bolsos como ficaram, felizmente, também durante aquela manhã abafada de terça-feira.

Com a chegada da tarde, entretanto, as mãos irremediavelmente viram-se obrigadas a deixarem o conforto macio dos bolsos da calça social negra amargamente quente para enrolarem-se em colarinhos e afundarem-se em rostos que agressivamente afirmavam não serem responsáveis por dívida alguma. E Shizuo, que ingenuamente esquecera-se do estranho que trazia em sua mão esquerda, foi obrigado a encará-lo novamente.

– Mas que merda! Essa bosta fica enrolando! Me solta, cacete! Tom, aqui, segura aqui, pega essa merda e puxa pra lá! Tá tudo enroscado nesse maldito desgraçado aqui...

O grito, tão alto quanto o que escapara de seus lábios naquela manhã ao encarar pela primeira vez no dia o dedo mindinho de sua mão esquerda, assustou a todos os que ao redor se reuniam para assistir a demonstração de poder do homem mais forte do distrito. Os rostos confusos, franzidos em misto de dúvida e medo, denunciavam que nenhum dos anormais habitantes da anormal Ikebukuro entendia o porquê de o anormalmente poderoso homem, centro de suas atenções, chacoalhar um pobre e assustado rapaz de não mais de vinte anos e sérios problemas com drogas de um lado a outro. Nenhum dos atentos olhos, por mais acostumados a verem o anormal, percebiam o fio vermelho, fino, a perder-se de vista, a enroscar-se com determinação em tudo o que Heiwajima Shizuo tocava.