LONDRES, INGLATERRA – Século XVII.

A casa dos Lake era a maior de todo o bairro. As pessoas sempre paravam para observar e se perguntar de onde vinha tanto dinheiro. Philip Lake era um dos homens mais ricos de toda a cidade, e seus filhos com certeza esperavam uma herança enorme.

Henry Lake era o filho mais velho, e não era conhecido como um bom rapaz. Mesmo com tanto dinheiro, os pais de toda cidade preferiam ver suas filhas casadas com peixeiros em vez de com Henry. Mas, independente de todos os boatos sussurrados pelos mercados e pelas salas na hora do chá, havia uma moça que não havia fugido.

Adelaide Vamipayeri tinha vindo de longe, diziam aqueles que afirmavam saber da história toda, e era órfã. Estava hospedada na mansão Lake com uma dama de companhia que não era de falar muito. As más línguas insistiam que Adelaide era uma cigana pronta para dar um golpe na família Lake. “Olhe seus cabelos longos e seus olhos”, algumas mulheres diziam. “Se não parece uma cigana, eu não sou londrina!”.

Na verdade Adelaide não era cigana, mas vinha sim de muito longe. O quanto, aquelas pessoas jamais saberiam...

***

—Uma terrível perda, certamente!-O sr. Lake exclamou, abaixando o jornal.

—O que foi, pai?-Henry perguntou.

—O reverendo Helprin foi encontrado morto esta manhã. Parece que invadiram a igreja para roubar e o pobre homem deu de cara com eles. Lhe cortaram a garganta.

—Mas que horror. -Adelaide comentou, levando a mão ao peito. -Que terrível maneira de morrer, não é mesmo?

—Soube que há maneiras piores. -Henry disse, se ajeitando no sofá. -Posso falar mais disso...

—Não com uma dama, filho. -O pai repreendeu. -As mulheres são frágeis e não gostam desses assuntos.

—É verdade. -Adelaide disse, reprimindo um revirar de olhos. -Somos tão frágeis. Temo que desmaiaria se visse algo como... Uma pessoa morta.

—Eu, não. -Henry disse. -Mortos são apenas mortos.

—Se você diz. -Ficou de pé. -Eu acho que...

A porta abriu violentamente e um homem caiu para dentro, perdendo o equilíbrio. A cadela da família começou a latir sem parar, e Henry se pôs de pé, empurrando Adelaide para trás de si e erguendo os punhos. A garota apenas suspirou, mas decidiu não dizer nada.

O invasor era estranho para todos os presentes. Alto, magro, com um terno azul e sapatos nunca vistos antes por eles. Segurava um esquisito objeto na mão.
Adelaide respirou fundo e ajeitou a postura. Aquele não era um cheiro humano, o homem vinha de fora do planeta. De onde, exatamente, não sabia, ainda.

—Mas o que é isso?-O sr. Lake perguntou, se levantando.

—Desculpe, desculpe!-O estranho pediu. -Foi um acidente.

—Você entrou aqui como uma bala, eu não acredito que tenha sido por acidente.

—Mas foi, senhor, eu juro. Notei... Leituras estranhas por aqui. -Passou os olhos pelos outros na sala. -Acabei me empolgando.

—Leituras?

—Eu sou o Doutor. -Mostrou uma carteira preta onde havia um papel.

—Enviado do Rei James?

—É, isso. -Guardou uma carteira. -Há coisas inexplicáveis acontecendo aqui e eu... Vim descobrir... Por ordem do rei.

—Coisas?-Adelaide perguntou.

—É. Coisas.

—Como a morte do reverendo?-O sr. Lake perguntou.

—Hã... Sim. O pobre reverendo que... Foi... Hã...

—Assassinado.

—Exatamente. Eu não sabia que já haviam divulgado informações tão importantes. Mas sim. A morte do reverendo está na lista.

—E o que o senhor pretende fazer?-Adelaide perguntou.

—Encontrar o assassino e resolver tudo, é claro. Posso dar uma olhada nisso?-Pegou o jornal. -Hum... Uhum... Interessante.

—O senhor já tem onde se hospedar?-O sr. Lake.

—Não, na verdade, mas eu...

—Minha casa talvez não esteja à altura de um enviado do rei, mas faço questão de o hospedarmos.

—Pai. -Henry repreendeu, recebendo um olhar zangado em seguida.

—Adelaide, pode pedir que as criadas arrumem um dos nossos quartos de hóspedes?

—É claro, senhor. -Ela disse, abrindo um sorriso, que desfez assim que saiu da sala.

***

—Quem ele acha que eu sou?-Perguntou, enquanto Ofélia penteava seus cabelos. -Eu não sou criada dele, mas ele insiste em me dar ordens. E toda aquela história de mulheres frágeis... Eu não suporto mais esse homem. Nem ele e nem os filhos. Henry tem sido um incômodo.

—Precisa aguentar firme. Até termos para onde ir.

—Pois eu preferia as ruas. Ter que me sujeitar à isso é humilhante. Eu era uma princesa.

Adelaide fazia parte da antiga família real do planeta Vlastov. Mas certo dia um golpe foi dado, destronando sua família. Todos os Vamipayeri foram exilados e mandados para longe separadamente. A garota estava há poucos meses na Terra, e fingir ser a doce hóspede dos Lake era um tormento que ela aturava para ter o que precisava para sobreviver.

—Um planeta inteiro vivendo pelas regras dos homens. -Murmurou, se olhando no espelho. -Isso me deixaria doente se fosse possível.

—Talvez sangue lhe deixe num melhor humor. -Ofélia sugeriu.

—Nada me deixaria de bom humor. Eu estava, ontem. Os Lake me deixam assim.

—Posso perguntar algo?-Adelaide assentiu. -Você matou o reverendo?

—Por quê?

—Eu ouvi as criadas falando. Ele morreu... Com a garganta cortada.

—E...?

—Esqueça. Não é da minha conta.

Ofélia era humana. Estava com Adelaide desde que a encontrou vagando ao ser largada na Terra por soldados de Vlastov. Ela sabia que a garota era alienígena e bebia sangue, além de ingerir comidas humanas. Isso não a assustava, mas a deixava nervosa.

—Você não precisa ter medo de nada. -Adelaide avisou, virando e segurando a mão da amiga. -Está comigo e eu vou protegê-la. Isso é o suficiente, não é?

—Mas e se descobrirem que você é...?

—Não irão. Eles acham que sou uma dama indefesa que precisa ser protegida. Nunca irão saber. E quando encontrar um lugar melhor, você e eu sairemos daqui juntas. Nunca mais precisaremos tolerar as bobagens dos Lake e teremos a vida que quisermos.

—Parece muito bom.

—E será. Confie em mim. Nós ficaremos bem.

O Doutor tinha aparecido para o jantar, mais tarde. Ele falava demais o que deixava todo mundo meio perdido. Adelaide ainda sentia o cheiro alienígena que vinha dele, mas não tinha descoberto sua espécie. Não era nenhuma que ela conhecesse pessoalmente.

Havia muitas e muitas espécies cuja aparência se assemelhava aos humanos, era difícil dizer qual era qual só olhando.

Era hora de investigar. Ele podia muito bem ser um enviado do atual rei de Vlastov, o que a colocava em perigo. O homem era esquisito, usava roupas estranhas e não era discreto, mas às vezes os melhores espiões são aqueles que não estão escondidos.

—Então, senhor Doutor, de onde vem?-Perguntou.

—Pode me chamar apenas de Doutor, senhorita Vamipayeri. Bem, eu venho de longe.

—Longe?

—Uma cidadezinha da Escócia. Nada muito atrativo.

—E mesmo assim chamou atenção do rei James. Impressionante.

—Ah, é verdade. Ele gosta de pessoas espertas. Deus o abençoe.

—E como o conheceu?-Esperava pegá-lo nervoso com as perguntas, mas ele continuava agitado e animado. Ela achava isso irritante.

—Eu salvei a vida dele de assaltantes.

—Oh. É mesmo?

—Sim. Foi... Sangrento e... Rápido.

—Hum. Então além de esperto é corajoso. Excelentes qualidades num homem. Certamente um bom partido. -Henry limpou a garganta. Adelaide queria ter esquecido da presença por mais tempo.

—Eu contei da vez em que enfrentei quatro criminosos na festa do outono há três anos?-Perguntou.

—Sim, Henry querido, você contou. -Muitas e muitas vezes. Ele adorava se gabar por isso, mesmo que a história parecesse ser totalmente falsa. Mesmo que fosse verdadeira, Henry não era alguém de muita credibilidade.

—Mas o Doutor não a ouviu ainda.

—Tenho certeza de que poderá contar depois do jantar...

—Tolice, eu posso contar agora. Bem, por onde começo? Ah. Sim. Foi no dia da festa de outono...

Adelaide suspirou discretamente, obrigando seu cérebro a não registrar nenhuma palavra dita por Henry. Maldito tagarela ele era. Ela queria que ele se engasgasse com suas mentiras.

***

A sra. Lake havia morrido há quatro anos de uma doença misteriosa. Sem filhas, apenas filhos, o sr. Lake tinha condenado sua casa a não ter uma mulher no comando do que ele dizia ser a “parte feminina” da casa, então quando a pobre Adelaide apareceu, foi levemente coagida a aceitar. Ela precisava falar com as criadas, escolher o cardápio das refeições, dar broncas quando os serviços não estavam bem feitos, e escolher tapetes e cortinas novos quando necessário. Ela odiava isso. Podia sim dar ordens. Mas ser reduzida à “parte feminina” de uma casa que nem era dela? Quem aquele homem achava que era a obrigando a fazer coisas que diziam ser feitas apenas por mulheres?

Em Vlastov havia um sistema igualitário – isso provavelmente antes do atual rei roubar o trono. Em seu antigo reino, as mulheres dirigiam naves, eram generais, cientistas, professoras, médicas, exploradoras do espaço... E o que havia na Terra? Se fosse rica o suficiente ou uma “sortuda” com o pretendente certo, poderia ser uma mãe de família com uns cinco filhos – sem filhos talvez fosse até mesmo devolvida para os pais. Se fosse pobre, trabalharia o resto da sua vida, e claro, teria filhos.

Adelaide não gostava de nenhuma das opções.

—Certo, então está decidido o cardápio de amanhã. -Entregou as anotações para a única criada que sabia ler. -Pode ir se deitar agora, está tarde e vocês fizeram o suficiente por hoje.

—Obrigada, senhorita Vamipayeri. -A mulher pediu. -E boa noite.

—Boa noite. -Observou a criada partir.

—Elas parecem gostar de você. -O Doutor disse, parado atrás dela. A garota se virou. -As criadas. Todos parecem, na verdade.

—Sou uma gentil mulher do século 17 que segue as regras das boas maneiras. Não há por que não gostar de mim.

—Você falou pouco no jantar. Não consegui descobrir nada sobre você.

—Ah... Sabe como é, mulheres não devem falar muito. Não quis ser inconveniente.

—Eu jamais acharia isso. De onde vem?

—Sou órfã, cresci num orfanato ao sul, mas ele pegou fogo e ficamos todos desabrigados e por conta própria. O senhor Lake foi muito bondoso em me abrigar.

—E em troca você se casa com o filho dele.

—Isso ainda não foi arranjado.

—Ficou meio explícito. Ele fica nervoso quando não dá atenção à ele.

—Observador. Mas não são assim todos os homens?-O Doutor sorriu.

—Talvez. -Ela inclinou a cabeça.

—Você falou muito no jantar. Mas, se me permite dizer, ainda é um mistério.

—Sou um livro aberto. -A garota se aproximou.

—Se importa se eu lê-lo?

—Acho que há outro livro requerendo sua atenção. -Ela sorriu.

—Posso ler mais de um, você se impressionaria. -Se afastou. -Preciso ir me deitar. Tenha uma boa noite, Doutor.

—Boa noite, senhorita Vamipayeri.

Enquanto seguia até seu quarto, Adelaide obrigou sua cabeça a pensar que estratégia seria melhor para lidar com o Doutor e arrancar informações dele. Os homens terrestres eram extremamente manipuláveis, mas a garota não fazia ideia do que esse homem em específico era, apenas que não era humano.

Se não pensasse em algo bom o suficiente logo, teria que apelar para manipulação mental, o que era arriscado, caso a pessoa conseguisse se defender psiquicamente.

Abriu a porta do quarto. Talvez pudesse conversar com Ofélia sobre isso no dia seguinte...

—Adelaide?-A garota parou, revirando os olhos, então virou para encarar Henry. -Achei que estava dormindo.

—Estava dando instruções para as criadas.

—Não tinha a ouvido subir. Nem o tal Doutor. -E decidiu se esgueirar pelos corredores?, pensou.

—Certo.

—Não gosto dele. -É claro que não gostava. Adelaide sabia que o tolo rapaz se sentia ameaçado pela simples presença de um homem que era minimamente mais interessante que ele. -E você?

—Ainda não sei o que pensar. -Tentou entrar no quarto, mas Henry barrou seu caminho.

—Talvez eu precise lembrá-la de que somos noivos...

—Somos? Você nem fez sua proposta... Eu não ganhei um anel... Gosto das coisas claras e certas.

—As circunstâncias...

—Quais? Eu ser uma órfã e morar na sua casa? Seu pai me abrigou e em momento algum disse que eu devia fazer algo em troca.

—Estamos sendo muito gentis com você...

—E eu agradeço... Mas não gosto de ser cobrada. -O rapaz recuou.

—É claro. Me desculpe.

—Desculpado. -Entrou no quarto. -Tenha uma boa noite, Henry. -E fechou a porta antes de uma resposta.

A atitude dele não a surpreendia. Em outra vida, ela teria o matado sem hesitar. Mas fazer isso nas circunstâncias atuais seria arriscado e talvez fatal.

—Não ache que isso vai salvá-lo. -Sussurrou. -Seus dias estão contados, Henry Lake.

***

No dia seguinte o Doutor saiu para o jardim e encontrou Adelaide sentada num banco com um livro em mãos.

—Não o vi no café da manhã. -Ela comentou, sem olhar para cima.

—Eu saí cedo... Fui até a igreja.

—Ah. O caso do reverendo. Descobriu alguma coisa?

—Não posso falar sobre isso. -Colocou as mãos nos bolsos da calça. -Você o conhecia?

—Todos conheciam. Todos os bons cristãos que iam à igreja no domingo, é claro.

—E como ele era?-Ela o encarou.

—Por que quer saber? Ele está morto.

—Por que eu não acredito que o crime tenha sido cometido por ladrões. Cortar a garganta de alguém é... Violento e tão... Pessoal. Alguém tinha seus motivos para matá-lo.

—Eu discordo. Crimes de roubos à igrejas se tornaram muito populares. O reverendo deu azar. Encontrar os criminosos apenas evitaria que eles repetissem o crime, não traria o reverendo de volta. A única coisa que podemos fazer é rezar por sua alma.

—Então você não acha que devia investigar e encontrar os culpados?

—Não mudaria nada, mudaria?

—Não é fã de justiça, senhorita Vamipayeri?-Ela fechou o livro e ficou de pé.

—Essa conversa está se tornando desagradável. Se me dá licença, vou convidar minha dama de companhia para uma caminhada. O dia hoje não está esplêndido?-Sorriu e foi em direção à mansão.

O Doutor franziu a testa. Ele nunca tinha visto um dia tão feio e cinzento no século 17.

***

Ela parecia uma pintura renascentista em frente ao espelho. Os cabelos negros soltos e arrumados, a pele pálida e uma camisola tão branca e delicada como se pertencesse à uma rainha. Tirando a bela imagem que era, Adelaide tinha pensamentos ruins.

O Doutor ameaça se tornar um problema. Talvez ele não soubesse o que ela era, mas tinha potencial para descobrir. Não podia confiar num sorriso e palavras educadas. Ele podia se tornar o inimigo num piscar de olhos assim como aquele que roubou o trono dos Vamipayeri.

Adelaide tinha perdido tudo por causa de um homem: sua família, sua casa, seu planeta, sua posição na realeza... Não podia arriscar perder mais nada.

***

Ela lembrava daquele dia todos os dias. O sol estava nascendo lá longe, pálido e lindo.

Todos os Vamipayeri vivos estavam numa fila, suas mãos acorrentadas.

Adelaide lembrava de como ela estava com medo, os olhos ardendo, o peito apertado e os passos vacilantes. Sua mãe estava atrás dela e todos os seus irmãos, cunhadas e tios e tias vinham logo em seguida.

Enquanto andava, viu o corpo do pai pendurado no alto, sem o coração.

—Não olhe. -A mãe sussurrou. -Olhe para frente, Adelaide.

Ela fez o que a mãe pediu, por que sabia que não aguentaria se continuasse olhando.

—Parem!-O usurpador mandou. Todos pararam de caminhar. Adelaide se perguntou se esse era o momento em que eles seriam mortos. -Todos vocês serão separados agora. Cada um será exilado até o fim de seus dias em um planeta diferente. É um crime pago com a morte a reunião de dois ou mais Vamipayeri e se pisarem em Vlastov novamente.

Adelaide sentiu o que restava de seu coração despencar. Ela nunca mais veria a família de novo.

—Não se deixem abalar. -A voz da mãe instruiu, atrás dela. -Não importa o que façam com a gente ou para onde nos mandem. Nós somos Vamipayeris, nosso sangue é motivo de honra. Nós não caímos e não nos deixamos vencer. Onde quer que estejam, lembrem-se: “Com honra e sangue, nós venceremos”.

Adelaide repetiu o lema da família num sussurro, então os soldados vieram e os Vamipayeri foram separados para sempre.

***

—Podemos conversar?-Adelaide perguntou quando o Doutor abriu a porta.

—É claro. Eu só não sei se devíamos fazer isso no meu quar... -Ela passou por ele, que ergueu uma sobrancelha.

—Feche a porta.

—O pessoal do século 17 é meio chato. Uma moça solteira não devia...

—Feche. -Ele fechou a porta lentamente. -O que é você?

—Não entendi o que...

—Eu sei que não é humano e sei que vem de muito longe. Cheiros não mentem. -Ele se afastou da porta.

—Bom, eu sei que não é humana também, então estamos quites. Eu sou um Senhor do Tempo. -Ela assentiu. -Conhece minha espécie?

—E quem não conhece? Acham que são os donos do tempo e do universo.

—Não é verdade.

—Não é?-Ele queria poder discordar.

—Vamos falar de você? Tem um excelente olfato, não gosta de sol, pele muito pálida...

—Vai precisar de ajuda?

—Existem muitas espécies vampiras por todo o universo, todas com suas particularidades. -Ela ajeitou a postura.

—Vlastoviana. Adelaide Vamipayeri, princesa de Vlastov. -O Doutor franziu a testa.

—Eu ouvi dizer que os Vamipayeri foram destronados. Isso não é verdade?

—Não vem ao caso.

—O que está fazendo tão longe de casa?-A garota apareceu vacilar.

—Eu fui exilada. Todos fomos. A Terra é meu lar agora.

—Eu sinto muito...

—Por favor, me poupe. -Desviou o olhar por alguns segundos antes de encará-lo de novo. -Eu sugiro que vá embora, agora que...

—Vim por causa de leituras estranhas. As leituras vinham de você. Mas não posso ir enquanto não sei o que houve com o reverendo. -A observou atentamente. -Você.

—Perdão?

—Você o matou, não foi?

—Uma acusação sem a menor prova...

—O reverendo teve a garganta cortada. Se eu não estou enganado, você tem as armas perfeitas pra isso: um par de presas bem afiadas. Eu só não entendo o motivo. Duvido que ele tenha descoberto a verdade sobre você. E mesmo se tivesse... Vocês Vlastovianos são bons em manipulação.

—Um motivo não vai ressuscitar o reverendo. -Se virou para sair do quarto, mas o Doutor ficou na frente dela.

—Você matou uma pessoa inocente... Um motivo é a única coisa que vai me impedir de parar você.

—É assim que funciona sua justiça?

—Vlastovianos costumam ser justos. -Adelaide parou uns segundos, como se pensasse ou se preparasse para falar. O Doutor não soube dizer.

—Não foi justiça. Mas não foi sem motivo. Minha mãe sempre me disse para tomar cuidado com homens poderosos. Eu não achava o reverendo poderoso, mas ele achava. E quando você tem poder... Bom, se não possui caráter, o poder o corrompe e você acredita que pode ter o que quer.

—Eu ainda não entendo...

—Eu disse, não uma, não duas, mas várias vezes que devia se afastar de mim. Posso ter crescido em outro planeta e não ter sido ensinada desde cedo sobre as religiões humanas, mas sabia que tinha algo errado. Pedi... Ordenei que não me tocasse. Ele não ouviu.

—Por que voltou lá?

—Está insinuando que a culpa é minha?-Ele começou a falar, mas ela o interrompeu. -O sr. Lake notou minha falta de conhecimento religioso e pediu que o reverendo me educasse de acordo com os seus preceitos religiosos. Achei que não teria mal algum fingir aprender alguma coisa, mas... Talvez teria dado certo. -Parou um momento. -Talvez ele achasse que eu não ia notar ou... Ficaria quieta. Quer saber por que matei o reverendo? Essa é sua resposta. Ele não me respeitou... Então rasguei a garganta dele com minhas presas. -Deu um passo para frente. -Satisfeito agora?

—Ele tentou...

—E falhou. Agora... Se ficar no meu caminho, terá o mesmo destino que ele.

—Eu entendo que teve um motivo, não posso dizer que é o certo. Também sei que se você tivesse tomado outra atitude, não resolveria nada. Mas não posso deixá-la ficar aqui sabendo que pode fazer de novo. Não pode sair da Terra, sei disso... Mas há outros tempos e lugares.

—Estou bem aqui.

—Está? Por quanto tempo vai fingir ser noiva de Henry Lake? É visível que não o suporta. Não posso culpá-la. Mas e quando se cansar? Vai matá-lo também? Me deixe levá-la para outro lugar... Existem tantas possibilidades...

—Eu não preciso da sua ajuda.

—Não se trata apenas de ajuda. Não posso deixá-la aqui sabendo que sabendo haverá mais mortes. -Adelaide parou um momento, parecendo refletir.

—Eu só irei com Ofélia.

—Tudo bem. Podemos levá-la, se ela aceitar.

—Ela vai. -Adelaide passou por ele. -Ela odeia esse lugar tanto quanto eu.

***

—Nós podemos mesmo confiar nele?-Ofélia perguntou, andando o mais perto que podia de Adelaide.

—Eu não sei, mas não importa. Posso matá-lo se necessário. Não se preocupe. Na melhor das hipóteses estaremos juntas num lugar melhor, bem longe dos Lake ou... Dessas regras estúpidas. Estaremos livres.

—Estou com medo. -Adelaide segurou a mão dela.

—Não precisa ter medo, não comigo. Eu a protegerei até o fim de nossos dias. -Encarou o Doutor, que caminhava à frente delas. -Onde disse que sua nave está?

—Logo ali. -Ele respondeu. -Vocês vão gostar. As pessoas normalmente gostam.

—Eu não costumo ser como as outras pessoas. -Ele suspirou.

—É, eu notei. -Murmurou.

—Posso te ouvir perfeitamente, Senhor do Tempo.

—É claro que pode...

—Adelaide!-Os três pararam, virando na direção da voz. O sr. Lake e mais alguns homens estavam logo ali, todos com armas nas mãos.

—O que está acontecendo, senhor?-O Doutor tomou a frente.

—Essa mulher matou o reverendo Helprin e você ia acobertar a fuga dela e de sua cúmplice.

—Acho que está acontecendo algum engano...

—Como você sabe?-Adelaide perguntou. Não havia por que mentir.

—Henry ouviu tudo. –Respondeu. Ela revirou os olhos.

—É claro que ele ouviu. Seu maldito filho tem a terrível inconveniência de se esgueirar pelos corredores da casa como um predador.

—Eu a acolhi em minha casa... Você comeu da minha comida...

—E mesmo assim nunca lhe devi nada. A escolha foi sua. Você achou que eu seria tão grata que poderia me obrigar a casar com Henry. Eu preferiria morrer.

—Não seja por isso. -Armas foram apontadas. Ofélia prendeu a respiração, agarrando o braço da amiga.

—Corram. -O Doutor disse, se virando pra elas. -Corram!

O trio correu, com o Senhor do Tempo na frente, mostrando o caminho. Uma rajada de tiros os seguiu, assustando moradores e pedestres.

—Adel!

Adelaide parou de correr e o tempo desacelerou. Virou rapidamente, vendo Ofélia, parada um pouco mais atrás, o vestido branco arruinado com uma mancha branca no peito.

—Ofélia!-Gritou. Em segundos já tinha a amiga nos braços. -Não... Ofélia... -Se abaixou, deitando-a em seu colo. O Doutor começou a se aproximar. -Nós ficaríamos bem... Minha amiga... Nós teríamos o que merecíamos. -Fechou os olhos, ouvindo o coração da garota parar de bater.

—Adelaide, eu sinto muito... -O Doutor disse. -Mas temos que ir... Eles vão voltar a atirar... Adelaide. -Olhou dela para os homens, preocupado. -Nós podemos resolver isso sem mais mortes...

—Não. -Adelaide disse. -Nós não podemos. -Abriu os olhos. -Não até eu terminar.

Foi tudo muito rápido. O Doutor sempre repetia isso pra si mesmo, tentando se convencer de que não podia ter feito nada. Vlastovianos eram rápidos demais, fortes demais, tinham sentidos infinitamente aguçados... Não havia como parar um Vlastoviano, principalmente se ele estava furioso.

Adelaide de repente estava de pé. Quem via de fora mal conseguiu entender a cena. Um por um, os homens armados foram caindo, cortes em suas gargantas e muito sangue. Quando Adelaide parou, havia vermelho em seu vestido, suas mãos, um pouco em seu cabelo, como se ela tivesse se banhado em sangue... Basicamente, ela tinha.

—Você não... -O Doutor começou, sem saber o que fazer. -Adelaide... Eu entendo sua dor, mas isso não justifica...

—Não justifica?-Em segundos estava parada na frente dele e o cheiro do sangue se impregnou em seu nariz. -Ofélia era inocente, ela não merecia, não é justo. Ela não tinha nada e me acolheu como se eu fosse sua irmã... Ela ficou comigo desde o começo e nunca, nunca, se importou com o fato de eu também não ter nada ou ser diferente. Então sim, justifica.

—Morte não é justiça.

—Diga isso à Ofélia. -Começou a se afastar.

—Aonde você vai? Estamos indo embora agora mesmo.

—Pode me levar para o inferno depois, se quiser... Mas eu ainda não acabei.

—Estão todos mortos.

—Não. Não todos. -E desapareceu. O Doutor parou um momento, agitado, pensativo, então entendeu.

Henry Lake ainda estava vivo... A não ser que Adelaide colocasse as mãos nele.

Esperançoso em evitar o pior, o Doutor começou a correr como se sua própria vida dependesse disso.

***

—O que você está fazendo aqui?-Henry perguntou, levantando do sofá, quando viu Adelaide entrar. -Meu pai está te procurando...

—Com armas, eu sei. Já lidei com ele e seus amigos.

—O que foi que você fez?

—O que acha que eu fiz? Você é tão estúpido, Henry. Tão desprezível...

—Não fui eu quem matou o reverendo.

—Acha que me importo em ser uma assassina? Esse é o mundo em que vivemos: ou você mata... Ou você morre. Ou você tem o controle da situação ou é uma vítima. Já perdi muito... Me recuso a perder mais.

—E pensar que eu quase me casei com você... Seu monstro. -Adelaide riu.

—Eu nunca me casaria com você, Henry, nem se isso me matasse... Não... Eu mataria você primeiro. -Atravessou a sala num piscar de olhos, empurrando o rapaz contra a parede. -Era o que devia ter feito antes... Assim Ofélia ainda estaria viva...

—Adelaide!-O Doutor gritou, empurrando a porta. -Não faça isso... Você não precisa continuar. Ofélia não ia querer que...

—Não fale dela pra mim, Senhor do Tempo. -O encarou por cima do ombro. -Você não sabe de nada sobre ela. Não se importava com ela como eu me importava.

—Adelaide... -A Vlastoviana voltou a encarar Henry.

—Quando chegar no inferno, lembre-se de que fui eu quem o mandou pra lá.

—Não!

Mas não havia nada que pudesse ser feito. Em milésimos de segundos Adelaide estava se afastando enquanto Henry caía no chão, sangue encharcando suas roupas e formando uma poça abaixo dele.

—Pronto. -A vampira disse. -Ainda quer me tirar daqui?-Olhou para o Doutor, que assentiu firmemente. -Tudo bem... Vamos. Já terminei.

***

Ele não sabia exatamente o que fazer. Adelaide, enquanto vivesse e precisasse se defender, seria perigosa, letal. Uma vampira que era juíza, advogada e executora.

Ela não podia sair da Terra. Ele não desafiaria as leis de Vlastov, então não podia tirá-la do planeta. Mas o que fazer? Não havia como garantir que ela parasse de matar.

—Você pode prometer? Pode prometer não matar mais ninguém?-Ele insistiu. Ela o encarou.

—Eu não mato por prazer, não é um hobbie. Mas uma garota precisa se defender e honrar a justiça.

—Morte nunca foi justiça.

—Não é como fui criada. Você pelo menos conhece a realidade de Vlastov, Senhor do Tempo? Conhece algo que não seja a sua própria realidade? Não pode usar meus sapatos e andar sob o mesmo sol que eu.

Sem palavras para argumentar, o Doutor apenas ativou a TARDIS, enquanto Adelaide observava com um silêncio levemente agressivo.

Quando a nave terminou de se materializar, o Senhor do Tempo escreveu algo num papel e entregou a ela.

—Era Vitoriana. Não é tão diferente do tempo em que você estava, mas há pessoas aqui que podem te ajudar... E talvez você possa ajudá-las.

O Doutor esperava que isso fosse o suficiente para que Adelaide se mantivesse longe confusão ou mortes.

Adelaide assentiu e saiu da nave sem dizer uma palavra.

Lá fora, Londres estava escura e úmida, uma noite semi-silenciosa. A vampira caminhou pelas ruas olhando a numeração das casas, os nomes das placas e se perguntou se o Doutor tinha a mandado para uma armadilha.

Enfim, chegou ao endereço certo e bateu na porta. Pouco depois a mesma foi aberta por uma jovem de cabelos escuros bem presos e um sorriso delicado.

—Olá, sou Jenny Flint. Como posso ajudar?

—Conhece o Doutor?-A jovem assentiu.

—Ele a mandou para cá?

—Sim, eu...

—Oh, entendi. -Se virou para dentro da casa. -Vastra, chegou mais uma, enviada pelo Doutor!-Olhou para Adelaide. -Como é o seu nome?

—Adelaide Vamipayeri.

—Boa noite, senhorita Vamipayeri. -Uma voz feminina disse, escondida sob um véu preto, aparecendo logo atrás de Jenny. -Quero muito descobrir por que o Doutor a mandou para cá. Entre e seja bem vinda à Paternoster Row, número 13.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.