Upside Down

Uma voz na escuridão


A princípio tudo parecia ter dado certo. O grupo espalhara tochas nos túneis onde não queriam que os Suspiros da Morte entrassem e guiaram-nos para fora com erva de dragão. Os Gronckels taparam os túneis abertos pelos Suspiros da Morte com lava incandescente, que passados alguns minutos se solidificou. Após terem realizado o trabalho, reuniram-se na entrada das minhas para juntar suas coisas e partir.
– Onde está o Soluço? - questionou Astrid, dirigindo um breve olhar para os outros vikings.


Todos se entreolharam no mesmo instante em que um Gronckel com a cauda ferida e a sela vazia apareceu na caverna.


– Esse era o dragão do Soluço... - disse Perna de Peixe, dando voz aos pensamentos de todos.
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Tudo aconteceu rápido demais. Num instante estava andando em direção à saída do complexo sistema de túneis que compunha as minhas com o Gronckel caminhando à sua frente, indicando a direção com seu olfato apurado. Então, após alguns minutos de pausa para beber água e descansar, Soluço se pôs a acariciar o dragão distraidamente.


– Bom garoto, Bolotas. - Ele se pôs a murmurar docilmente, com dragão a se contorcer alegremente abaixo dos seus dedos.


Então, durante um desses movimentos involuntários, o dragão acabou por bater a grossa cauda em uma fina rachadura na parede rochosa. Pedras caíram mais rápido que um raio e o separaram do dragão que era seu único meio de encontrar a saída. A poeira intensa vinda do desabamento apagou sua tocha e a derrubou. Seguiram-se mais desmoronamentos em que ele teve que correr às cegas até retirar sua espada e conseguir iluminar o caminho.


Quando as pedras finalmente pararam de cair e o desabamento cessou, restou apenas poeira e silêncio. Soluço sabia que deveria estar coberto com ela. Pensou nas alternativas que tinha. Podia continuar ali sentado e esperar que os seus amigos viessem resgatá-lo. Seria uma boa ideia, se estivesse em uma área aberta, como uma floresta, por exemplo. Uma pessoa que se perdesse em uma floresta sempre tinha mais chances de ser encontrada se não se movesse. Mas Soluço havia corrido pelo menos uns doze metros para escapar das sucessivas avalanches. A única forma de seus amigos conseguirem chegar até ele sem ter de escavar seria conseguirem um Transformasa emprestado colocar o dragão para cuspir ácido derretendo as pedras e abrindo caminho para chegar até ele. Mas ele desconsiderou a possibilidade. Tranformasas eram dragões raros e ninguém em Berk tinha um.


Sua única opção então seria mover-se e se aventurar pela extensa rede de túneis até encontrar uma saída. Um calafrio percorreu seu corpo ao pensar nos recursos que tinha. Um cantil com água pela metade. Sua espada que soltava chamas e mais duas pequenas recargas para manter o fogo aceso. Sua faca pequena que ele mantinha na perna e alguns pedaços de frutas desidratadas. Suspirou, tentando não pensar no que aconteceria se sua água acabasse ou as chamas se apagassem deixando-o sozinho no escuro e sem ver para onde ia. Pôs se a caminhar, tendo por companhia unicamente seus próprios pensamentos e o som dos seus passos batendo contra as pedras.
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Após meia hora lutando contra as marchas na sela, uma dúzia de choques contra árvores e rochas e vários urros de desgosto de Banguela, Merida finalmente começava a se acalmar. Seu corpo estava nas costas do dragão mas seu estômago tinha ficado em algum lugar lá embaixo e levou muito tempo para que ela o recuperasse. A única coisa que ela concluiu é que Soluço fazia aquilo parecer bem mais fácil do que realmente era. Eram seis marchas distintas, cada uma delas movendo a cauda vermelha em um ângulo diferente, isso sem contar as diferentes combinações que Merida tinha de improvisar sempre que uma corrente de vento os pegava desprevenidos ou mudavam de altitude. Ela perdeu a conta de quantas vezes arremessou Banguela contra as pedras ou contra o solo sem querer. Felizmente o dragão tinha perícia suficiente para cair sem infligir danos maiores a nenhum dos dois, embora sempre que levantassem vôo outra vez ele parecesse mais mal humorado e resmungão do que de costume.


Depois de vários minutos assustadores voando, Merida conseguiu descobrir como estabilizar as marchas e após o estresse causado pelo medo da queda, ela finalmente pôde apreciar o vôo.
Aquilo não era de nenhuma maneira como voar de Dunbroch para Berk. Naquela ocasião, Merida estava dormente, entorpecida pelo choque de perder sua família. Agora, sozinha em cima das costas de um dragão e contemplando a imensidão azul do mar abaixo dela, os olhos de Merida se encheram de lágrimas e ela permitiu-se soltar uma das mãos da sela para enxugá-las. Como ela poderia descer e voltar para Berk depois disso? Como Soluço se permitia andar quando voar era uma opção? Seus membros pareciam pesados, um peso que ela nunca tinha notado antes enquanto que seu coração era mais leve que uma pena.


Merida fungou baixinho e Banguela girou a cabeça e grunhiu para ela. Por um momento, ela pensou ter visto culpa nos olhos verdes do dragão, como se estivesse se desculpando por ter se emburrado com ela. Então sorriu para ele e abriu os braços, soltando-os da sela como se tivesse asas e pudesse abri-las.


– Estou bem, garoto. Mais do que achei que seria capaz de estar. - ela disse, baixinho, sem ter certeza de que ele ouvira.
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Merida deixou-se guiar por Banguela, confiando que ele saberia encontrar o caminho até a ilha de Hellir sozinho, o que realmente fez. Quando ele rodeou a ilha pela terceira vez, ela entendeu que estava procurando um lugar para pousar. O corpo de Banguela começou a descida, seu coração gelou e ela se perguntou que marcha teria de usar para que os dois não se espatifassem nas rochas. Mas de uma maneira estranha, ao invés de procurar um lugar plano para pousar, Banguela escolheu uma face bastante íngreme da montanha que Merida suspeitava ser a mina de metais que Perna de Peixe mencionara. O baque do corpo de Banguela contra a parede de rochas a sobressaltou e ela realinhou a marcha para corrigir qualquer que fosse o erro, mas o dragão não voltou a bater asas. Ao invés disso, agarrou-se às rochas com as garras e começou a escalar, visando uma abertura irregular na pedra.


Merida agarrou-se a ele enquanto subiam, praticamente na posição vertical. Tentou não olhar para baixo, para as ondas sendo esmagadas contra as pedras lá embaixo e não pensar no que aconteceria com ela se escorregasse da sela e caísse. Pareceu levar uma eternidade, mas Banguela finalmente conseguiu entrar. Merida escorregou da sela e postou-se ao lado de Banguela para caminhar, com a mão apoiada em seu dorso. Tentou em vão fazer seus olhos se adaptarem, mas não conseguiu ver nada além de trevas.


– Ótimo! - reclamou - Deveria ter trazido uma tocha. Não posso acreditar em como fui estúpid... - interrompeu-se quando Banguela abriu a boca e atirou o que parecia ser um raio de luz que seguia pelos intermináveis túneis. Merida ficou olhando boquiaberta até a luz virar uma curva e desaparecer nas sombras. Depois olhou para o dragão e que a encarava com um ar presunçoso e sorriu, deslumbrada. Ter um dragão como companhia era uma grande vantagem, afinal.


Banguela não esperou muito mais tempo e começou a caminhar. Merida não fazia ideia de para onde estavam indo, mas confiara nele até agora e queria acreditar que não a decepcionaria. Com uma das mãos apoiada em seu dorso ela o seguiu, observando quando ele parava a cada cem metros para farejar um ar e lançar mais luz nos túneis. Merida se encolheu de leve ao pensar nas milhares e milhares de toneladas de rochas acima deles. Aquele lugar era antigo, ela sentiu. Poderia jurar que alguns daqueles túneis jamais ouviram o som da voz humana, jamais sentiram os passos de um homem. Se as coisas corressem mal e eles se perdessem ali, cem anos poderiam se passar e ninguém chegaria nem perto de tropeçar em seus ossos. Como muitas vezes antes daquela, Merida sentiu uma pontada de arrependimento por agir tão irrefletidamente. Começou a se perguntar se aquilo realmente era coisa certa, se realmente valia a pena ir tão longe por causa de um estranho e se arriscar a morrer por ele. Mal reparou que o medo a enregelara, penetrando em seus ossos e fazendo-a tiritar.


Banguela parou de repente e a olhou fixamente. Grunhiu para ela consolando-a e esfregou o focinho contra sua mão. De uma forma estranha aquilo acalmou Merida e ela se concentrou em acariciá-lo, focando sua atenção na pele escamosa e quente sob seus dedos. Ao olhar fundo naqueles olhos, Merida soube. Banguela jamais a decepcionaria. Não havia motivo para ter medo. Estavam naquilo juntos e eles tinham que encontrar Soluço, não porque ele os havia deixado para trás, mas por que não suportavam ficar longe dele. Merida tapou os lábios com a mão, um pouco surpresa com a própria reação. Uma vozinha dentro dela dizia que ela faria muito mais do que entrar em uma série de túneis escuros se soubesse que Soluço estava em perigo.


Banguela grunhiu e ela voltou a seguí-lo. Estava tudo bem enquanto ficasse junto dele. Banguela tinha um bom faro, ele o encontraria. E graças a ele, eles não ficariam totalmente no escuro.
Concentrou-se no som dos passos deles, na respiração ritmada de Banguela, nas rajadas de luz que ele emitia.


Era fácil demais perder a noção de tempo ali embaixo. Poderiam ter se passado minutos, horas ou dias, ela não sabia ao certo. Não havia luz do dia para orientá-los. As vezes ouvia o barulho de coisas pequenas rastejando na escuridão perto deles, mas se Banguela não se sobressaltou com certeza não havia motivo para pânico. Seus sentidos eram melhores que os dela. Quase sem pensar e para afastar seu medo ela começou a cantarolar baixinho a cantiga de ninar que sua mãe e ela compartilhavam desde menina. Então se deu conta de que desde que se transformara nunca tinha cantado. Sua voz soara estranha a seus próprios ouvidos e as notas pareciam diferentes, embora ela soubesse que gostava daquela voz masculina. Era o tipo de voz que ela gostaria de ter sussurrando junto ao ouvido. Quase como a voz dele.
Abanou a cabeça para afastar o pensamento indesejado e agora, ao invés de cantarolar estava realmente cantando. Banguela a olhou, curioso, mas logo voltou a se concentrar nos túneis, enquanto Merida ouvia o eco fazendo coro com ela.


Banguela passou reto por alguns túneis e continuou caminhando, lançando flashes de luz na pedra.
Então o dragão parou e virou-se para um desses túneis atrás de si, fazendo-a parar de cantar, com um pouco de medo do que quer que estivesse chegando. Alguma coisa estava arranhando a pedra, um som estranho, metálico e regular.


– Merida? - A voz conhecida chamou, fazendo seu coração inchar com alegria.


– Soluço? Onde você está? - ela chamou, girando em direções diferentes.


Banguela precisou simplesmente cheirar o ar na beira dos túneis e lançar um feixe de luz azul para ver Soluço. Assim que os viu, ele praticamente correu até eles. Parecia mancar com a perna metálica, mas o sorriso luminoso afastou qualquer suspeita de que estivesse ferido. Claro que haviam alguns arranhões no rosto, a camisa estava rasgada expondo um corte sem gravidade no umbigo e ele estava coberto de pó. Mas parecia bem, o que fez Merida sorrir, aliviada. Banguela correu na direção dele também. Merida deu espaço para não ser derrubada pelo entusiasmo do Fúria da Noite. Banguela o derrubou no meio do caminho, lambendo um dos lados de seu rosto com um desespero que quase parecia humano, deixando marcas estranhas onde a língua bifurcada encontrava a poeira. Soluço não ralhou com ele, apenas o abraçou e os dois ficaram assim, imóveis, por alguns segundos. Soluço suspendeu o abraço e se levantou desajeitado. Sem dizer nem uma palavra, abraçou Merida com força, afundando a cabeça em seu peito.


– Ouvi você cantar. - ele murmurou, enquanto ela colocava seus braços em volta dele, protetoramente. - Achei que estava ficando louco, estava muito escuro. Mal podia acreditar que era verdade.


– Está tudo bem agora. Estamos aqui. - ela o consolou, deslizando os dedos pelo cabelo irregular. - Você está machucado? O que houve com a sua perna?


Soluço afastou-se, um pouco constrangido.
– Prendeu em alguma coisa. Estava escuro, eu não vi o que era. Quando consegui soltar, o metal havia torcido.


Merida assentiu. Isso significava que ela teria que voar até Berk de novo. Ela gemeu baixinho perante a ideia de lutar de novo com todas aquelas marchas.


– Merida. - Soluço chamou - Você tem água?


Ela entregou um cantil para ele, enquanto tirava outro da sela, observando como ele bebia com sofreguidão, se engasgando as vezes, até que não restasse mais nenhuma gota. Ela molhou os lábios de leve com seu cantil, depois tirou um lenço do bolso e o umedeceu levemente. Aproximou o lenço de seu rosto.


– Aqui, me deixe... - ela começou a falar, perdendo as palavras enquanto tirava as cinzas do rosto dele com delicadeza.


Soluço fixou seus olhos nos dela e houve um momento de silêncio perfeito em que nenhum dos dois disse nada, apenas se olharam.


– Graças a Odin por você ser teimosa. - ele comentou, com o rosto um pouco corado pela proximidade.


– Eu não sou teimosa. - Merida retrucou, baixinho, fazendo o possível para soar indignada. - Você me disse que eu poderia ir a qualquer lugar, desde que fosse com o Banguela. Então eu vim atrás de você.


– Também me lembro de ter recomendado para que você não saísse. - Soluço sobressaltou-se e pareceu se lembrar de algo - Como em nome de todos os deuses inferiores você conseguiu chegar até aqui manobrando as marchas?


– Com rapidez. Mas com muita dificuldade. - ela lamentou-se.


– Nem a Astrid sabe como... - Soluço resmungou baixinho.


– Você acha que pode caminhar? – ela interrompeu, ansiosa por sair dos túneis.


Soluço testou a perna metálica uma série de vezes, até que Merida se cansou de assistir, tomou a mão dele na sua e olhou para Banguela. O dragão pareceu entender a mensagem e os guiou para fora em meio ao emaranhado de túneis.