Upside Down

Renúncia e Sacrifício


Merida parou, encarando o lago de lava a sua frente. Sua mente trabalhava furiosamente tentando enxergar algo que talvez não tivesse visto antes. Olhou a luz mágica que flutuava calmamente a um palmo da lava incandescente. Não podia ser sério. Como esperava que Merida atravessasse? Tinha que haver outra maneira, tinha que haver algo que ela estava deixando passar.

– Me ajude. - ela sussurrou baixinho, sem ter qualquer certeza de que alguém a ouviria. A lembrança de Soluço inundou sua cabeça. A reação dele ao ouvir de Bocão que não poderia mais trabalhar com metais. O modo como ele fingia suportar os olhares condescendentes dos outros moradores, contendo a muito custo a raiva que tinha por sentirem pena dele. A expressão resignada e determinada cada vez que ele enfrentava uma crise de cólicas, não permitindo jamais que ela visse sua fraqueza. O afastamento de Estóico, as tiradas sarcásticas de Melequento. Ele nunca se queixava. Poderia odiá-la. Tinha todos os motivos do mundo para apontar-lhe o dedo na cara e dizer que era culpa dela, mas nunca, nunca o fizera.

Ao invés disso, sempre fora gentil com ela e também carinhoso. Merida pegou-se desejando com todas as forças ajudá-lo a voltar a ser o que era. Em seu coração, sabia que faria tudo ao seu alcance, qualquer coisa, qualquer coisa para que ele voltasse ao normal.

Então, como se ouvisse os pensamento de Merida, a pequena luz mágica tremeluziu e voltou a aparecer vinte metros mais adiante, em uma pequena ilha rochosa cercada pela lava que Merida não tinha visto antes. A seu lado, um pequeno embrulho de tecido, cuidadosamente disposto em uma pedra. O coração de Merida falhou uma batida ao reconhecer o formato arredondado de um doce embrulhado, igualzinho ao que ela ofereceu a Soluço.

A luz mágica voltou a aparecer diante dela e Merida compreendeu, era ali que ela tinha que chegar.

Uma nova determinação fluiu por ela. Não poderia caminhar pela lava, de maneira alguma. Olhou as paredes da caverna em volta do lago de lava e a ideia surgiu diante dela com um estalo. Poderia contornar o lago, escalando as paredes rochosas nas laterais e evitando a lava para surgir diante da pequena ilha e descer exatamente nela.

Merida sorriu e se pôs a escalar pela rocha. A sensação da rocha abaixo de suas mãos lembrou-lhe das suas aventuras na floresta ao subir o Dente de Crone. Mas aquilo era apenas uma lembrança. Seu corpo havia mudado e escalar já não era tão fácil como quando ela vivia em Dunbroch. Estava mais pesada. Se caísse ali, morreria e ninguém jamais chegaria nem perto de encontrar seus ossos. "Talvez não tenha sido uma boa ideia esconder do Soluço que eu sairia para caçar luzes mágicas" pensou, descartando a hipótese logo em seguida. Se aquilo não desse certo, não suportaria dizer a ele que falhara.

Içou o corpo mais uma vez, segurando-se com firmeza à rocha e evitando pedras pontiagudas e cortantes como lâminas. O ar no interior da caverna já era muito quente, mas o esforço fez o suor brotar da pele de Merida e pingar em abundância. Seu progresso era lento e custoso. Mão esquerda na pedra acima da cabeça. Pé direito na fenda impulsionando o corpo. Um leve sacudir da cabeça para evitar a gota de suor salgado escorregando na direção do seu olho. Mão direita na fissura da rocha.

Merida se concentrou nos movimentos, sentindo o ar ficar mais e mais quente a medida que avançava. Seus músculos já estavam tensos com o esforço. Ela não fazia aquilo a muito, muito tempo.

Merida virou a cabeça com cuidado, agarrando-se firmemente às rochas. Sorriu. Mais alguns poucos metros e poderia descer tranquilamente na pequena ilha de pedra onde o contra-feitiço estava aguardando por ela.

Então aconteceu o impensável. Começou a chover. Merida mal notou a princípio quando as pequenas gotas geladas caíram em seu rosto. Mas logo os chuviscos se intensificaram, tornando-se uma chuva grossa e torrencial. Como se a chuva caindo no rosto não fosse o bastante, uma pequena enxurrada escorria pelas rochas, atrapalhando a visão. A água encontrava-se com a lava fervendo e o barulho de uma se chocando com a outra foi insuportável. Um intenso som de chiado e vapor subindo tornaram a tarefa quase impossível. Quando Merida estava quase conseguindo chegar a seu destino uma nuvem de vapor quente e tóxico ergueu-se abaixo dela, forçando-a a recuar desajeitadamente para não ficar com o rosto escaldado. Acabou escorregando e arranhando braços, joelhos e uma parte do rosto. Ela arquejou com o susto superando a dor dos ferimentos. Quando a lava pareceu solidificar-se e o vapor parou de subir, Merida continuou sua escalada. A chuva havia abrandado um pouco, tornando-se quase um chuvisco outra vez. A lava abaixo dela escurecera e formou veios incandescentes, de onde subia um vapor fétido e quente toda vez que a água escorregava para dentro deles. Com cuidado, Merida puxou um pouco a camisa para cima numa tentativa de cobrir o nariz e a boca.

Finalmente conseguiu chegar até seu objetivo. Aterrou suavemente na pedra, pisando com cuidado. O pequeno espaço circular cercado por lava parecia ser estável e Merida se surpreendeu por notar que o pequeno embrulho estava seco e intacto. O coração de Merida mal cabia dentro de seu peito. Ela não conseguiu conter as lágrimas e antes que percebesse estava rindo. Não era apenas um doce. Era a solução de seus problemas. Era a chance se voltar para casa, de ver seus pais, era a felicidade de Soluço. Suas mãos ainda trêmulas se aproximaram para tocá-lo. Seus dedos desembrulharam o tecido com cuidado. No exato momento em que roçaram o doce o chão abaixo de si tremeu, assim como toda a caverna. Era hora de ir. Voltou a embrulhar o doce o melhor que pôde e o guardou no bolso, refazendo o tortuoso caminho de volta. As pedras sob suas mãos tremiam e ela ouviu o rangido da lava recém solidificada pela chuva quebrando. Tudo parecia prestes a desmoronar. Segurando-se firmemente às rochas, Merida conseguiu desviar-se a tempo quando uma pedra do tamanho de um barril desceu rolando parede abaixo, quase levando-a junto. Mas no processo acabou por entrar no caminho de uma outra, um pouco menor. Quando a viu chegando era muito tarde. Apertou o máximo que pôde seu corpo contra a parede, mas a enorme pedra ainda conseguiu lhe acertar as costelas. Merida gritou ao sentir seus ossos quebrando, mas ainda assim não se soltou. Resistiu o maior tempo que conseguiu, enquanto as pedras menores remanescentes caíam sobre ela. Então uma delas a atingiu com muita, muita força na cabeça e ela tudo o que ela pôde sentir antes de perder os sentidos foi um par de garras agarrando-a pelos ombros antes que caísse na lava. Dealan viera salvá-la.

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Quando acordou sua cabeça girava, apesar de não sentir dor. Não sabia onde estava, mas não era como nada que ela já tivesse visto. Onde quer que olhasse, não havia absolutamente nada. Apenas uma imensidão branca e limpa, sem qualquer distinção entre céu e terra. Um olhar rápido para suas pernas revelou que não havia voltado ao normal. Ela se levantou, confusa e girou sobre si mesma. Quase pulou de susto ao reconhecer uma voz familiar demais atrás de si.

– Você passou por maus bocados para chegar até aqui, não é?

Merida virou-se de chofre, sem conseguir conter um grito. Imóvel e sorridente diante dela estava uma versão de si mesma, a princesa Merida, parada bem ali, usando o mesmo vestido amarelo da noite em que enfeitiçara Soluço. A garota não pareceu nem um pouco afetada com a reação.

– Quem é você? - Merida perguntou. - Onde estou? Por que não voltei ao normal? E por que estou olhando para mim mesma antes do feitiço?

– Isso não importa. O que importa é que você quer reverter o feitiço. É por isso que está aqui.

– Eu morri? - Ela olhou em volta, um pouco temerosa.

A risada que veio a seguir arrepiou Merida. Aquela era uma cópia estranha dela mesma, mas definitivamente não era ela. Merida não ria daquele jeito. Quando os risos cessaram e a estranha finalmente se acalmou, conseguir responder à pergunta de Merida.

– Você não morreu! Que ideia! Você conseguiu. Finalmente vai conseguir voltar ao normal, princesa! Finalmente vai voltar a ser o que era antes! Não está feliz? - ela falava com um ar alegre, mas havia uma sombra em sua expressão.

Merida sorriu de volta, mas havia algo no tom da estranha que a fez gelar. Como se ela não tivesse dito tudo.

– Você quer dizer que eu e Soluço vamos voltar ao normal, não é? - ela sentiu a necessidade de fazer a pergunta.

A expressão da estranha mudou e ganhou uma seriedade que não havia lá antes.

– Oh não. Não. Você quebrou as regras. Queria um único feitiço que anulasse o seu casamento, mas você quebrou as regras. Você dividiu o feitiço em dois! - deu uma risadinha sem humor - Mas dessa vez, não haverá trapaças. O doce só poderá reverter o estado de um de vocês.

O mundo de Merida girou e seu coração falhou uma batida. Por um momento se esqueceu de onde estava, se esqueceu da mulher estranha que se parecia com ela mas que não era ela de verdade, de toda aquela situação absurda. Ela se esqueceu até de respirar.

A estranha olhava para ela pacientemente com uma expressão neutra no rosto.

– E então? O que você vai fazer? - perguntou de repente.

Merida olhou para ela, sem realmente vê-la.

Pensou em sua mãe e em quantas vezes fantasiou em ver o seu rosto quando ela voltasse ao normal e chegasse a Dunbroch. Ela estaria linda, como sempre fora, lado a lado com seu pai e seus irmãos, esperando por ela no cais. Seus olhos a procurariam quando o navio se aproximasse e quando se vissem, ela iria sorrir. Mas aquele era um futuro que não lhe pertencia mais.

Pensou em Soluço. Lembrou-se do tempo em que passaram juntos. Sua mente girava com imagens dele. A sensação de sua mão sobre a dela, firmando-se para ajudá-la a cortar o couro. O cheiro metálico do seu suor quando o calor na forja começava a afetá-lo. Seu sorriso, sua voz, sua risada. A maneira gentil com que ele a tratara, apesar de todas as coisas ruins que ela fez para ele. A sensação de seus lábios pressionados contra sua têmpora, contra o canto de sua boca, contra seus lábios. A expressão satisfeita e ansiosa dele quando ela pediu que a beijasse de novo e o toque de sua respiração ofegante contra a pele quando ele atendeu seu pedido, de novo, e de novo e de novo. Ela o amava. Com todas as suas forças, o suficiente para ceder a ele o seu direito de voltar a ser ela mesma e abandonar tudo que a fazia mais feliz apenas pela felicidade dele.

– Eu tomei a minha decisão. - Merida falou, e sua voz soou profunda e decidida.

– E qual seria ela?

– Eu vou entregar o feitiço para Soluço.

A resposta não pareceu impressionar a estranha.

– Pense Merida. Nunca mais vai ver a sua amada floresta. Se voltar para casa desse jeito, seus pais irão escondê-la de tudo e todos. A sua casa será a sua prisão. Seus passeios com Angus, suas tardes atirando flechas, sua liberdade, tudo isso ficará no passado. É isso mesmo que você quer?

– Sim. É que eu vou fazer. - Merida respondeu. Renúncia e Sacrifício. Finalmente fazia sentido. Era a única maneira de reverter o feitiço. Ela se perguntou como é que não tinha entendido antes. Renunciaria o seu direito de voltar à sua verdadeira forma e sacrificaria tudo o que ela mais queria. Era a única maneira. Ela sorriu. - Esse é o único jeito.

A estranha analisou Merida. Seus olhos se estreitaram e ficou uns bons minutos observando seu rosto e quando olhou em seus olhos foi como se olhasse para dentro dela. Como se avaliasse seu coração.

– E o que mais você quer? O que você gostaria? - ela perguntou.

A questão pegou Merida de surpresa. Ela não estava esperando por aquilo. Pensou um pouco, parando por alguns momentos e imaginando o que mais ela poderia querer. Reverter o feitiço para ela estava fora de questão. Não faria sentido pedir por aquilo. O doce seria dado a Soluço e ponto final. Mas se ela pudesse pedir qualquer coisa, o que ela pediria? Fechou os olhos, analisando seu próprio coração, seus desejos e anseios mais profundos.

– Eu quero... - ela inspirou fundo, antes de continuar. - Eu quero desfazer todo o sofrimento que eu causei. Eu fui egoísta e a minha decisão afetou a todos. Não mereciam isso. Minha família, Estóico... E Soluço. Ele merece toda a felicidade do mundo. - sua voz falhou por um instante e ela percebeu que estava chorando, mas não se importou em esconder as lágrimas. - Eu quero que ele encontre alguém que o veja como eu o vejo agora. Alguém que o mereça e o valorize e que o ame tanto quanto eu amo, que o faça feliz, e que nunca, nunca minta para ele como eu fiz. Eu quero que ele seja feliz.

A estranha ficou olhando Merida com uma expressão satisfeita e ficou a espera de que ela tivesse algo mais a dizer, mas ela já tinha dito tudo. Então, sorriu e começou a brilhar até forçar Merida a fechar os olhos. Quando os abriu outra vez, não era mais uma cópia de Merida. Era a velha bruxa carpinteira. Ela sorriu antes de responder.

– Será assim.

Merida sentiu-se cair e cerrou os olhos com força, esperando pelo baque que não viria. Quando abriu novamente os olhos outra vez, estava em Berk. Ela piscou, mas não conseguia ver nada além de vermelho com o olho esquerdo. Uma parte dormente de sua mente lhe disse que era assim por que provavelmente estava sangrando onde a pedra a atingira.Sentiu uma estranha dormência, e de algum modo a realidade parecia alterada. Queria dormir. Pensou ter visto várias pessoas a volta dela, até mesmo Estóico, embora todos parecessem estar muito longe e desfocados, como se ela os visse por detrás de um vidro grosso e embaçado.

Um ruído chamou sua atenção e ela viu que Soluço estava com ela, mantendo a sua cabeça no colo dele. Ele a apertou contra o peito ao vê-la consciente, respirando com dificuldade. Merida imediatamente sentiu dor. Gemeu baixinho e algo lhe disse que ainda que tentasse não conseguiria ficar de pé. Tremia muito, sentindo o corpo desfalecido e um peso brutal na cabeça. Estava tão frio! Tentou falar, mas sua boca estava tão seca que o esforço se perdeu em um grunhido. Na segunda tentativa, conseguiu.

– Como eu cheguei aqui?

Soluço respirou fundo, na tentativa de conter os espasmos que seu corpo dava com o choro, mas não teve sucesso. Ele acariciou seus cabelos de leve, evitando o sangue que brotava do ferimento na cabeça.

– Um dragão trouxe você. Um Skrill. Não deixou ninguém chegar perto, só eu.

Merida sorriu, mas o movimento fez sua cabeça doer ainda mais. "Dealan deve ter sentido seu cheiro nas minhas roupas", ela pensou. "Por isso não te atacou."

– Dealan. É meu amigo.

– É o que pareceu. - ele deu um sorriso fraco. - Fique bem quieta. Gothi está vindo. Ela vai cuidar de você.

– Não há tempo. Olhe no meu bolso. - Merida pediu. Por que estava tão frio?

Soluço pegou o pequeno embrulho, reconhecendo-o imediatamente pelo que era. Ele assentiu para ela.

–Vamos comê-lo juntos, assim que você melhorar.

– Não! - ela tentou gritar, mas não conseguiu mais que um murmúrio fraco. - Não. Só vai funcionar com um de nós. Eu quero que ele seja seu, Soluço.

Ele rangeu os dentes, fechando os olhos com força enquanto as lágrimas caíam.

– Por quê, Merida?

Merida sorriu para ele, abraçando a dor que aquilo lhe causava. "Por que eu amo você, Soluço. Não é óbvio?" pensou, e não conseguiu evitar o riso por ele não perceber uma coisa tão clara. Ela riu por algum tempo, até que seu riso se tornou uma tosse sanguinolenta. Um fio escuro de sangue escorria do seu lábio.

Queria dizer a ele que tinha feito aquilo por que o amava, mas não pôde. Sabia que não tinha muito tempo.

– Me abrace. - ela pediu, e sua voz era quase um sussurro.

Soluço apertou-a a si com tanta força que pensou poder reter sua vida, aquela vida que ela dera sem hesitar para poupá-lo de viver sob o laço do feitiço para sempre.

Seus olhos turvaram-se pouco a pouco, mas não antes que ela visse o sol surgindo. Ela observou o amanhecer, já não sentindo mais a dor ou o frio de antes. Apenas uma leveza indescritível, como se flutuasse.

"É lindo", pensou antes que seus olhos se fechassem e sua vida se esvaísse.