Upside Down

Palavras na madeira


Merida apressou o passo para acompanhar Astrid, que andava à sua frente com passadas firmes e seguras. A guerreira tagarelava animadamente sobre Berk, apontando em algumas direções, mostrando coisas e lugares, o Grande Salão, o cais, os estábulos onde os dragões dormiam, e algumas coisas que foram criadas pelo próprio Soluço, como um engenhoso sistema de prevenção de incêndios, comedouros e bebedouros para os dragões e alguns tipos de locais de pouso curiosos, como poleiros de pássaros gigantes.

– Ele fez tudo isso sozinho? - perguntou Merida, Boquiaberta.

– Não exatamente. A ideia original, os projetos e os desenhos foram todos dele, claro. Mas a construção teve a ajuda de todos. - Astrid explicou.

– Incrível... - Merida balbuciou, admirada com as coisas que ele havia feito. Em sua antiga vida como princesa, a única coisa que ela havia criado eram desenhos no bordado, e ainda assim nem mesmo eram grandes obras de arte.

Ela observava fascinada uma das estações de alimentação quando um grupo de garotas passou ao seu lado, cochichando e olhando feio para ela. Merida tentou ignorar, mas era óbvio que aquilo a incomodava. Tinha sido assim o dia todo. Olhares rancorosos, comentários cruéis, pessoas cochichando pelos cantos sempre que ela passava. Astrid viu a expressão em seu rosto e pousou a mão em seu ombro.

– Não dê ouvidos. Ignore-as. Isso tudo vai passar, logo logo. - a guerreira assegurou.

– Você parece ter tanta certeza, Astrid.

– Que outra escolha nós temos? - ela deu ombros. - Temos que acreditar que as coisas vão ficar melhores, pois a outra alternativa é cruel demais para suportar. Eu acredito que você vai descobrir um jeito de reverter isso.

– Todos me tratam mal ou na melhor das hipóteses, me ignoram. Mas não você. Você é tão gentil comigo... Por que, Astrid?

– Eu não costumo julgar ninguém. - ela falou, com um olhar um pouco distante. - Todos nós fazemos escolhas erradas na vida, pelo menos uma vez. Até mesmo eu já tive os meus momentos. - Ela balançou a cabeça como que para desanuviá-la - Já chega dessa conversa. Venha, eu vou te mostrar a arena onde treinamos os dragões.

Merida tentou ignorar os olhares constrangedores que recebia e se concentrar no que Astrid dizia.

– Então, um dia, eu o segui até a floresta e foi quando conheci Banguela. – ela explicou. – Soluço me levou para um vôo e eu vi que estava errada a respeito dos dragões. Que todos estavam errados.

– Deve ter sido maravilhoso. – Merida comentou.

– Foi assustador, pelo menos no início. Banguela não gostava muito de mim, então ele fez o possível para me assustar até a morte.

Astrid parou de falar subitamente ao chegarem na Arena. Merida observava a tudo com curiosidade, mal notando o pequeno grupo conversando em um dos cantos. A não ser por Soluço, claro. Ele foi a primeira pessoa que ela viu. Nos dias que haviam se passado ela havia notado uma mudança nele. Ele já não a tratava com desprezo, pelo contrário, era gentil e polido, quase como quando eles haviam se conhecido. Ela não sabia ao certo como se sentir a respeito disso. Era fácil lidar com ele quando a tratava mal ou a ignorava, pois ela sabia perfeitamente o que motivava aquele comportamento. Mas quando ele sorria e era gentil o tempo todo, Merida ficava completamente sem defesa. Parecia surreal que ele a tratasse tão bem quando ela lhe fizera tanto mal. Uma crescente admiração por ele e por tudo o que ele era surgia lentamente dentro dela. Respirou fundo e forçou-se a observar as outras pessoas.

Astrid chamou a atenção dela

– Merida, estes são Perna de Peixe, Melequento, Cabeça Dura e Cabeça Quente – ela gesticulou, enquanto os apresentava, depois apontou para Merida - Pessoal, essa é Merida, princesa de Dunbroch.

– Não parece uma princesa para mim. – zombou Melequento.

– Melequento! – repreendeu Soluço.

– O que? Por acaso ela parece uma princesa? Todos vocês já ouviram falar delas, nas histórias. Vão me dizer que não pensam o mesmo?

Ninguém disse nada. O sangue de Merida ferveu nas veias pelo modo como aquele garoto falava dela como se não estivesse presente.

– Eu sou uma princesa. – ela disse, e sua voz masculina fez a situação toda parecer cômica – Não importa a minha aparência atual.

Melequento a rodeou lentamente, olhando-a de cima a baixo.

– Com certeza não parece uma garota. Mas também não parece um homem de verdade.

Os olhos de Merida se estreitaram.

– O que exatamente você quer dizer com isso? – ela perguntou entre dentes. Aquele garoto estava começando a tirá-la do sério.

Mas Melequento nem mesmo olhou para ela. Continuou falando naquele tom de zombaria, como se ela não estivesse ali.

– Olhe só para ela. É mais magra do que você, Soluço.

– Já chega, Melequento. Ninguém está achando isso engraçado. – Soluço enfatizou.

Mas Merida já estava furiosa. Tinha que dar uma lição naquele garoto, uma lição que o pusesse em seu lugar, algo que derrubasse seu ego.

– Posso não parecer uma princesa, mas sou uma. – Merida falou, em voz alta para que todos em volta ouvissem. – E aposto que consigo vencê-lo em uma luta.

As reações foram todas diferentes. Astrid sorriu. Soluço levantou uma sobrancelha. Perna de Peixe deixou escapar um assovio baixinho e os gêmeos puseram-se a discutir quem venceria a luta. Melequento virou-se para ela, com uma expressão levemente conturbada no rosto, mas se recompôs logo e a olhou como se a visse pela primeira vez.

– Eu não costumo lutar com garotas. – ele falou, um pouco mais rápido do que pretendia.

– Ora, mas não foi você mesmo quem disse que eu não me parecia em nada com uma? O que foi? Está com medo de levar uma surra? – ela perguntou, erguendo uma sobrancelha, e os olhares de todos pararam em Melequento.

Melequento pareceu inseguro por um momento, depois franziu o cenho e comentou:

– Eu disse que não costumo lutar com garotas. Mas você não é mais uma garota, não é? Talvez não volte a ser uma nunca...

Merida recuou como se tivesse levado uma bofetada, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, Astrid que já estava do outro lado da Arena, ajoelhada fuçando em um baú, gritou:

– Espada ou machado, Merida? – ela perguntou, erguendo um exemplar de cada arma.

– Espada. – Merida escolheu.

– Vou facilitar para você então e igualar as coisas. – Melequento disse em um tom presunçoso. – Vou usar uma espada também.

Astrid entregou uma espada para Merida, que agradeceu com um sorriso, e outra para Melequento, que não disse nada, apenas olhava feio para sua oponente, como se encará-la até a morte fosse fazê-la perder. Posicionou-se, segurando a espada à frente do corpo, compenetrado.

Merida o imitou e parecia visivelmente mais relaxada que ele. De repente Melequento impeliu-se para a frente em um pulo e começou a combater. A espada de Merida vibrou com a força do golpe, mas ela não se importou.

Melequento tinha a força de seu povo, mas era apenas isso, força bruta. Seu pai já havia lhe ensinado como lidar com esse tipo de oponente. A voz de Fergus surgiu em sua mente, como uma lembrança distante: “Se o adversário for mais forte, não tenha medo. Use a força dele contra ele mesmo, faça-o golpear e errar até cansar, e depois, derrote-o.”

De longe, Soluço analisava Merida com interesse. No início, achou que o desafio era apenas uma resposta ás provocações de Melequento, mas conforme a luta se intensificava, ele viu que não era apenas isso. Merida era confiante e lutava com a experiência de quem já fez aquilo dezenas de vezes. E não era apenas experiência, a sua maneira de lutar era maravilhosa. Ela quase não se movia, apenas raramente se esquivava dos golpes com pequenos e imperceptíveis movimentos laterais, movendo apenas a mão que segurava o punho da espada.

A habilidade dela não tinha nada a ver com força, tudo o que Merida fazia era girar o pulso, brincando com a lâmina do inimigo, respondendo aos golpes quase com desprezo, sem gastar mais energia do que era necessário. Nunca dava três passos quando eram necessários apenas dois, nunca se movia cinco centímetros quando apenas quatro eram suficientes.

Ao lado de Soluço, Astrid deixou escapar um assovio baixo.

– Ela é muito boa. – a guerreira comentou.

– Sim. – ele admitiu. – Muito boa mesmo.

– Veja – Astrid apontou para a luta com um aceno de cabeça – Olha o Melequento.

Soluço viu. Os movimentos de seu primo estavam ficando mais lentos, mais fracos e desconexos. Merida também percebeu, e sorriu, inconscientemente. Ninguém podia manter aquele ritmo por muito tempo.

Quando pareceu que Merida iria apenas se esquivar para sempre, ela se moveu, rápida e imprevisível como uma cobra, estocando, empurrando, mal dando tempo para que Melequento formulasse uma defesa.

Depois de muitos ataques quase sem resposta, Merida se cansou daquele jogo, agachou-se rapidamente de lançou a perna contra os tornozelos de Melequento, que caiu em um tombo ruidoso, de barriga para cima, enquanto Merida apontava a espada para a garganta dele.

O viking engoliu em seco e Merida permitiu-se sorrir, desviando a espada e oferecendo a mão para ele, que hesitou um pouco antes de aceitar. Não havia zombaria nenhuma em seu rosto agora.

O pequeno grupo se aproximou, todos falando ao mesmo tempo, rodeando Merida com perguntas e elogios. Apenas Soluço a observava, quieto e avaliativo. Ela corou sob aquele olhar, sem nem mesmo saber por que, sentindo o rosto queimar. Ele se aproximou com um meio sorriso.

– Você estava ótima, Merida.

– Obrigada... – ela respondeu, um pouco sem graça. Por todos os deuses, o que ele tinha que a fazia ficar daquele jeito?

– Está tarde. – Astrid comentou. – Tenho que ir para casa e alimentar Tempestade. Vocês vem?

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Quando chegou em Berk o pequeno grupo dispersou-se com despedidas curtas. Soluço e Merida subiram a colina para casa, sem dizer nenhuma palavra, até Soluço quebrar o silêncio:

– A propósito... O navio com as suas coisas chegou hoje cedo. Eu pedi que levassem seus baús para casa.

– Minhas coisas?

– Sim. Como você não podia trazer tudo com o Banguela, seu pai enviou o resto das suas coisas em um navio. Achou que você iria ficar o tempo todo com essa roupa?

Merida corou. Soluço havia emprestado a ela uma muda de roupa dele enquanto ela lavava seu kilt. Ela ainda podia sentir o cheiro dele em sua pele.

Quando entraram, Soluço caminhou em direção à cozinha.

– Eu vou tomar um banho e depois preparar o jantar. – ele comentou.

– Eu também. Vou voltar logo para te ajudar.

– Ótimo. – ele sorriu.

Merida subiu as escadas de dois em dois passos e praticamente correu o restante do corredor até seu quarto. Depois, pegou a enorme banheira de cobre, encheu-a pela metade e pensou em procurar Banguela. Era uma grande vantagem ter um dragão em casa para aquecer a água, ela pensou.

Seu braço roçou em uma coisa rígida quando ela estendeu a mão para alcançar o trinco da porta e ela se lembrou. Enfiou a mão no bolso e retirou a miniatura de Angus, acariciando-a com doçura como se fosse o próprio cavalo e não apenas um pedaço de madeira.

Então aconteceu uma coisa estranha. A barriga do cavalo começou a brilhar e Merida virou-o para ver o que era. Franziu a testa com o que viu. Era como se a madeira estivesse em brasa formando pequenas marcas... Mas não eram marcas, eram letras. Merida tentou tocá-las, mas acabou apenas por queimar o indicador e derrubou o cavalo com o susto. Parou por um momento, soprando o dedo ferido, e depois recolheu o cavalo do chão, virando-o. Mas ao invés de saciar sua curiosidade, o que viu só a deixou mais intrigada ainda, pois no dorso do cavalo, estavam chamuscadas duas palavras.

– Renúncia e Sacrifício. – Merida leu, e sentou-se na cama, olhando fixamente para elas.