Imediatamente todos os pelos de seu corpo arrepiaram-se.

Era magnífico. Tinha olhos amarelos inteligentes. Do focinho sobressaía-se um chifre cinza e recurvo, e no ponto onde seu crânio terminava erguiam-se espinhos majestosos, que em muito lembravam uma coroa. Suas escamas eram predominantemente roxas, mas em alguns pontos o roxo se misturava a matizes de cinza. Merida reparou enquanto se arrastava para trás que ele não tinha quatro patas como Banguela. Suas asas dobravam-se e garras se curvavam delas para se apoiar no chão.

Seus pensamentos se perderam enquanto ela olhava para fileiras e mais fileiras de dentes afiados. Mas o que a impressionara mais não fora isso. O dragão estava coberto de eletricidade. Merida nem queria imaginar o que aconteceria se encostasse nele, ainda que por um segundo.

Ele se ergueu nas patas traseiras, abrindo as asas em sua totalidade. Alguma coisa se agitou no fundo de sua mente, alguma lembrança de suas conversas com Soluço fez Merida se lembrar que os dragões faziam isso quando queriam parecer maiores, mais ameaçadores e letais. Imediatamente ela voltou a uma noite com ele, quando estavam folheando o livro dos dragões.

– Nunca encare um dragão selvagem. – ele dissera – Se fizer isso, ele verá como um desafio, e não há como ganhar um desafio desses. Estenda sua mão lentamente. E não faça movimentos bruscos.

Merida concentrou-se na situação atual e aos poucos, baixou a cabeça, focando o olhar apenas nas patas do dragão. Os rugidos cessaram de imediato e ele se colocou outra vez em quatro apoios. Uma olhada rápida e ela pôde ver que ele ainda tinha os dentes à mostra, como se considerasse o que faria em seguida, mas não quisesse baixar a guarda em nenhum momento. Ela se esforçou para acalmar sua respiração. Trêmula, sua mão direita se ergueu, sem que Merida fizesse contato visual com o dragão. Ela ouviu um rosnado cavo e profundo, mas um pouco menos ameaçador do que o primeiro. Não ousou olhar para ele enquanto se perguntava que tipo de loucura estava fazendo ou se seria tarde demais para retirar a mão e sair correndo barranco acima.

Então ela sentiu as lufadas de ar quente. O dragão estava cautelosamente farejando sua mão, como se quisesse ver se não se tratava de uma armadilha. O chifre recurvo arranhou o polegar de Merida tão delicadamente como uma agulha e ela ficou olhando algumas gotas de seu sangue caírem no chão. Desviou sua atenção para elas, em um esforço para manter a calma. Então algo atravessou seu campo de visão e ela se viu encarando aqueles olhos amarelos. Merida piscou, para desviar o foco outra vez, enquanto o dragão a cheirava, seu rosto muito próximo do dela.

“Soluço não disse nada sobre isso” ela pensou “Até parece que ele está me testando! Já provei que não queria fazer mal algum, por que não me deixa ir embora?”

– Não vou implorar. – as palavras jorraram de sua boca antes mesmo que percebesse. Falou num tom baixo e casual. – Pode me matar aqui e agora se quiser. Mas não vou implorar. Sou Merida Dunbroch.

Ela apenas sentou-se e olhou para ele, dessa vez, fixamente.

– Sou Merida Dunbroch. – repetiu, encarando-o.

Não era uma simples apresentação de um nome. Era uma declaração. O orgulhoso desfraldar de uma bandeira.

O dragão sustentou seu olhar por alguns instantes, deu um suspiro e desviou-o. Merida inclinou a cabeça para ele, avaliando-o. Era uma criatura orgulhosa, aquela. Mas Merida também era, e como conhecia a si própria muito bem, sabia que seria muito simples contornar aquele orgulho. Baixou novamente os olhos para o chão e fez o melhor que pôde para parecer arrependida.

– Me desculpe por esbarrar em você. Não queria te machucar.

O dragão apenas bufou, como que indignado por ela ser capaz de pensar que poderia ferí-lo. Ela estendeu sua mão para ele outra vez, com um estado de ânimo muito diferente. O dragão farejou-a outra vez e a língua bifurcada roçou-lhe o polegar, parando imediatamente o sangramento. Depois, encostou seu focinho contra a palma, em uma declaração de paz. Merida sorriu com aquilo. O dragão se pôs a caminhar e ela o seguiu.

– Eu deveria pensar em um nome para você – ela falou, franzindo a testa, pensativa. – Mas não pode ser um daqueles nomes feios que os vikings dão para seus dragões.

O dragão simplesmente continuava a andar, dando o máximo de si para parecer indiferente ao tagarelar dela. Mas Merida notou que ele inclinava a cabeça para ouvir melhor, interessado.

–Dealan. – anunciou Merida. – Significa raio, no lugar de onde eu venho. Dealan. – Merida saboreou a palavra, rolando-a na língua

O dragão não olhou para ela e Merida continuou seguindo-o encosta acima. Continuou tagarelando alegremente sobre muitas coisas. Sua mãe, seu pai e seus irmãos. A saudade que sentia deles. Como eram as florestas de Dunbroch. Os lordes e a confusão de seu casamento. Começou a ficar ofegante. A subida se tornou mais e mais íngreme e chegaram a um trecho onde praticamente só haviam rochas.

– Onde está nos levando, Dealan? – ela olhou em volta, preocupada.

Grande parte da floresta se fora e agora só haviam rochas altas e íngremes. Nuvens escuras se juntavam, trazendo a promessa de uma tempestade. Dealan farejava o ar acima deles com ansiedade, quase com expectativa. Merida já não sabia mais onde estava. Ao entusiasmar-se com seu novo amigo, acabara por se perder das trilhas que conhecia na floresta.

– Talvez devêssemos procurar um abrigo antes que a tempestade nos peg... – ela terminou sua frase com um grito quando Dealan levantou vôo, carregando-a pelos ombros com as fortes paras traseiras.

Merida agarrou-se a ele com força vendo o solo ficar menor abaixo dela antes das nuvens encobrirem tudo como um véu cinzento e fluido. No horizonte surgiu um pico rochoso levemente plano e envolto por nuvens. Dealan voou até ele, depositando Merida cuidadosamente no chão como se ela fosse quebrável. Ela girou sobre si mesma, avaliando o local onde pousaram. Não havia mais nada visível além do manto de nuvens cobrindo tudo. Perguntou-se quão alto estavam. Subitamente um raio caiu em algum lugar e Merida se encolheu com o som alto do trovão. Dealan pareceu perceber também, levantando vôo e deixando Merida para trás.

– Espere! – Ela correu alguns passos, mas parou, ciente de que se andasse mais poderia cair no precipício – Não me deixe aqui, Dealan!

O dragão apenas grunhiu para ela e por um momento virou-se para encará-la. Merida estava pronta para gritar com ele e chamá-lo quando o absurdo dos absurdos aconteceu. Um raio atingiu Dealan em pleno vôo.

– Não! – ela desesperou-se o ver a cena diante de si.

Mas o dragão nem ao menos parecia queimado e continuava voando diante dela. A boca estava bem aberta e Merida podia ver que o fundo de sua garganta estava iluminado, como se ele se preparasse para cuspir fogo. Mas quando ele ergueu a cabeça para o céu e atirou, não foi fogo que saiu de dentro dele.

Merida observou maravilhada o enxame de raios deixá-lo. Ele a encarou e rugiu para ela. Merida não pôde deixar de sorrir e gritou, entusiasmada, conforme a tempestade de raios caía e Dealan os cavalgava.

– Vai Dealan! – Merida gritou, e ao longe, o dragão rugiu de volta para ela.

Não soube dizer quanto tempo havia se passado, nem mesmo quantos raios o haviam atingido. O que ela soube é que quando a tempestade passou e as nuvens se afastaram relutantes, Dealan parecia mais feliz e mais vivo do que nunca.

– Você é incrível, Dealan! – Sem nenhuma cerimônia, Merida jogou os braços em volta dele e novamente, todos os seus pelos se arrepiaram. O dragão suportou o tratamento por alguns segundos, depois remexeu-se, inquieto, e Merida entendeu que ele queria espaço. Soltou-o.

Arrependeu-se logo, pois assim que se afastara o suficiente, o Dealan levantou vôo outra vez, erguendo Merida com as patas traseiras, descendo em direção ao chão.

_____

Não muito depois estavam no solo, na mesma clareira em que Merida o encontrara. Ela notou que o chão estava coberto de marcas negras, provavelmente resultado da tempestade de raios. Uma árvore enorme jazia com o tronco quebrado ao meio e enegrecido, com alguns pontos ainda em brasa onde o raio a atingira. Se Dealan a tivesse deixado ali, Merida teria passado por maus bocados. Uma floresta é o último lugar onde se quer estar quando raios caem como chuva.

– Obrigada, Dealan. – ela se aproximou e tentou tocar-lhe o focinho, mas o dragão recuou, indignado. Merida riu. – Sim, sim, eu sei. Você não é um cachorrinho, não é? É um guerreiro, e quer ser tratado como um, certo?

Dealan, fungou em resposta, e Merida sorriu. Tratou de escalar o barranco de volta ao ponto onde ela tropeçou e dessa vez foi Dealan quem a seguiu. Merida sorriu com o pensamento de que agora tinha um guarda costas particular.

Quando chegaram às trilhas que Merida conhecia, Dealan parou. O dragão farejou o chão, franziu o focinho e recuou alguns passos, recusando-se a avançar mais. Merida olhou para ele, um pouco confusa, no início, mas depois entendeu. Ele pertencia à floresta. Não queria se afastar dela, mas também não queria laços com outros humanos. Gostaram um do outro, mas ele não iria segui-la como um filhotinho faminto.

– Voltarei amanhã. Vou trazer algo para você. – ela sorriu e virou-se na direção oposta, sempre seguida por aqueles adoráveis olhos amarelos.

_____

Assim que entrou em casa, Merida foi prensada em um abraço por Soluço. Sem pensar muito, ela o envolveu com seus braços também, sorrindo cansada.

– Fiquei preocupado. Houve uma tempestade de raios. Várias casas foram atingidas. – ele explicou.

– Eu sei. Felizmente eu estava segura.

– Conseguiu se abrigar? – ele se afastou um pouco, tocando seu rosto a procura de ferimentos.

– Pode-se dizer que sim. – Merida sorriu.

Soluço sorriu também, mas seu sorriso era de puro alívio. Cobriu-a de beijos, por todo o rosto, enquanto Merida ria sob seus lábios urgentes.

_____

Berk – Seis meses depois.

Noite outra vez. As chamas crepitavam na lareira e Merida esperava em sua cama, abraçada aos próprios joelhos. Desde que viera para Berk, seis meses se passaram e ela não conseguira encontrar nada, nem uma única pista que a ajudasse a pôr fim ao feitiço. Já não tinha mais a menor esperança de revertê-lo. E ainda assim, ele continuava vindo.

Ao som de batidas na porta, ela se remexeu, inquieta. Pediu-lhe para entrar, assim como todas as noites, mas ela mal podia suportar olhar para ele. Passava a maior parte de seu tempo livre na floresta, com Dealan. Como poderia suportar vê-lo no final do dia, sabendo que aquele dia fora apenas mais um em que ela não conseguira nada? Como conseguiria aguentar seu olhar esperançoso, dizendo que tudo iria ficar bem e que eles iriam conseguir encontrar uma solução juntos, quando ela mesma não acreditava mais que aquilo fosse possível?

Ele entrou, e sentou-se ao lado dela, tagarelando sobre coisas banais, mas Merida mal prestou atenção. Ele sorria o tempo todo enquanto o fazia. Então, de repente parou e olhou para ela. Olhou fundo em seus olhos, como se olhasse para dentro dela.

– O que foi, Merida? – ele perguntou.

– Soluço... - ela inspirou fundo, preparando cada parte do seu ser para dizer a ele o que realmente sentia. Seus olhos azuis marejaram e seu queixo tremia. – Temos que pensar na possiblidade de nunca mais voltarmos ao normal.

Soluço franziu a testa, pensativo. Merida esperava qualquer coisa. Que gritasse, que chorasse, que batesse nela e a xingasse, menos o que ele fez e disse em seguida.

Tomou as mãos de Merida nas suas e ficou alguns segundos olhando para elas. Merida olhou também, contente por ter algo para desviar sua atenção. Soluço ergueu seu rosto para ela e os dois se encararam novamente. Uma lágrima riscou o rosto dele, mas ele a enxugou rapidamente, voltando a segurar sua mão. Ele sorriu, um pouco sem graça.

– Merida. Mesmo que nós nunca... – ele parou por um momento, forçando-se a pronunciar as palavras – Mesmo que nós nunca voltemos ao normal, acho que podemos fazer essa situação dar certo e viver bem. – ele tocou-lhe o rosto, olhando-a fixamente. - Eu não me importo, nós podemos ficar desse jeito... Está tudo bem, Merida.

Merida chorava abertamente agora. Puxou as mãos da dele, agarrou-o pela camisa e o beijou como nunca achou que fosse capaz de beijar alguém. Soluço arquejou com o susto, mas se recompôs depressa e logo correspondeu com igual urgência, sentindo o gosto do sal das lágrimas dela. Afastou-se devagar e a abraçou, sentindo-a soluçar contra seu corpo.

Ficaram muito tempo assim, abraçados, e ela chorou até adormecer. Soluço deixou-a com um beijo no topo da cabeça, deslizando os cobertores sobre ela e saindo, silenciosamente.

______

Merida abriu os olhos, com uma sensação estranha pelo corpo, um tipo de alerta gritando em sua mente. Em um momento estava dormindo, e no outro, acordada, a respiração ofegante e os sentidos totalmente despertos. Levantou-se da cama e foi em direção à janela. Ainda era madrugada. A lua estava alta no céu e não havia nenhuma pessoa a vista lá fora. Ela suspirou. Deve ter sido algum sonho ruim, daqueles que não nos lembramos ao acordar. Era isso.

Ela se virou para voltar para a cama, mas algo chamou sua atenção e ela voltou a olhar para fora. Prendeu a respiração com o que viu. Pois na entrada da trilha que ia para a floresta, havia uma luz mágica tremeluzindo. Esperando por ela.

– O feitiço... O feitiço! – Merida tagarelou baixinho e calçou as botas, atrapalhando-se com os cordões e praguejando pela falta de luz. Abriu a porta o mais silenciosamente que pôde e desceu as escadas, cerrando os dentes cada vez que a madeira rangia sob os seus pés. Quando finalmente conseguiu chegar até a sala, uma sombra parou à sua frente e Merida arquejou, contendo-se para não deixar escapar um grito. Mas era apenas Banguela.

O dragão começou um grunhido, mas Merida segurou-lhe a boca com força, sussurrando para ele na escuridão.

– Banguela, preciso que fique quietinho. Estou indo fazer uma coisa muito, muito importante.

A enorme cabeça se moveu, olhando em direção às escadas.

– Não, Soluço não pode ir comigo. Ele não pode saber, entendeu? Fique aqui e não faça barulho. Eu vou voltar rápido. – e beijou-o entre os olhos, sorrindo.

Logo estava lá fora, correndo sob o luar. Banguela ficou olhando até que ela desaparecesse entre as árvores e um pouco além, quando seus passos estavam muito longe para que ele pudesse ouví-los.