Merida despiu os restos do vestido arruinado sem muita dificuldade, terminando de rasgar o que já não tinha mais nenhum conserto. Quando finalmente ficou nua de frente para um espelho de corpo inteiro, o choque se apoderou de sua expressão. Era a primeira vez que via um homem nu, ainda que não fosse exatamente um homem o que estivesse vendo. Seu corpo era coberto com pelos encaracolados e ruivos, seu peito, cheio de sardas e ela não fazia a menor ideia de como iria aliviar suas necessidades fisiológicas com seu novo "equipamento". Onde antes haviam curvas, agora era reto, onde antes era macio e suave, agora era rígido. Era tudo muito desconcertante. Ao mesmo tempo em que estava curiosa, se sentia um pouco constrangida por encarar tão fixamente. Tocou de leve o pomo de adão na garganta, correu os dedos pela barba avermelhada, os pelos no peito. Mas não teve coragem de ir mais adiante. Ainda não. Cobriu o rosto com as duas mãos, como se tentasse desanuviar a mente de tudo o que acontecera nas últimas horas.
– O que foi que eu fiz? - perguntou, baixinho, para ninguém em especial.
Entrou na banheira, deixando o vapor acalmá-la e se banhou um pouco superficialmente. Aquele corpo não era dela. Aquele homem não era ela. Se sentia como em uma prisão e cada um de seus movimentos parecia estranho e errado. Fora assim que sua mãe se sentira? Talvez, de certa forma aquilo fosse uma espécie de retribuição por tê-la feito sofrer daquela maneira.
Enrolou-se em uma toalha da mesma maneira que costumava fazer antes, envolvendo-se com ela onde costumavam ser os seios, mas ao se olhar no espelho, riu do quão ridículo parecia daquele jeito e enrolou a toalha em volta da cintura, exatamente como um homem faria. Havia um kilt por sobre uma cadeira, mas ela não fazia a menor ideia de como vestí-lo. Então ouviu a voz de Hamish na porta e suspirou com alívio.
Seus irmãos entraram no quarto, surpreendentemente calados. Merida não tentou puxar assunto. Os minutos que se passaram foram estranhos e constrangedores, enquanto seus irmãos mais novos a ajudavam a se vestir. Ela não os censurou por seu silêncio. Também ficaria calada se sua irmã mais velha que era sua heroína, que era tudo o que ela queria ser, colocasse o reino a beira da ruína e mudasse a si mesma por puro egoísmo.
Assim que terminaram, saíram, sem dizer nenhuma palavra nem fazer nenhuma brincadeira. Merida ficou lá, sozinha, olhando para a porta, com uma expressão desolada no rosto.
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Ela tinha que procurar sua mãe. Tinha que explicar a ela, ou ao menos tentar dizer algo, ou quem sabe, se despedir. A porta do quarto de Elinor estava entreaberta e a rainha estava sentada em uma cadeira de espaldar alto, de costas para a porta. Encarava uma tapeçaria na parede, que estava completa há muito tempo. Uma grande ursa, de mãos dadas para uma garota ruiva, que sorria. As duas a haviam feito juntas.
– Mãe... - Merida começou, e a voz masculina soou a seus ouvidos como unhas arranhando um quadro.
– Saia. - Elinor disse com frieza, sem se mover na cadeira. O espaldar alto não permitia ver o seu rosto.
– Mãe, por favor! Me ouça... - Merida implorou.
Elinor se virou lentamente e se ergueu da cadeira. O movimento fez Merida se lembrar de uma serpente se movendo para apanhar um rato. Seus olhos estavam vermelhos e marejados e sua expressão era cansada, como se não tivesse dormido a uma semana, embora só fossem algumas horas.
– Agora você quer que eu ouça?- a rainha indagou em voz baixa. Em nenhum momento sua mãe ergueu o tom de voz e Merida soube que ela estava furiosa.
– Mãe... Eu não queria isso... Por favor me perdoe...
– Não queria o quê? - Elinor sibilou. - Destruir o seu futuro? Quase começar uma guerra entre Dunbroch e o que talvez seja a única força bélica superior à nossa? Ou desrespeitar um chefe viking, talvez o equivalente a um chefe de clã, ou até mesmo um rei? Ou será que não queria virar do avesso a vida daquele pobre rapaz, que desde que chegou aqui tudo o que tentou fazer foi ser gentil com você e tentar ganhar sua amizade? Me explique, Merida, por que eu não estou conseguindo entender.
Merida não conseguiu dizer uma palavra. Sabia que sua mãe estava certa.
–Você jogou com nossas vidas de uma maneira tão cruel! Da primeira vez, eu entendi, Merida. Eu tentei me tornar mais aberta, tentei te ouvir, para que você nunca tivesse que se afastar tanto de mim outra vez. Mas você nunca nem mesmo veio até mim. Você escolheu o caminho mais fácil.
Elinor suspirou, e se sentou outra vez, olhando para a tapeçaria.
– Saia daqui. Eu não quero olhar para você.
– Mãe...
– Saia. Nada do que você dirá valerá alguma coisa, agora.
Merida aquiesceu e saiu do quarto, dando de cara com seu pai na porta. Ele ficou surpreso por um segundo, depois lhe lançou um sorriso cansado e condescendente e tocou-lhe o ombro com ternura antes de entrar. Foi apenas um segundo, mas o suficiente para Merida já não se sentir tão sozinha.
Parou a alguns passos da porta, o suficiente para ouvir a conversa dos pais.
– Oh, Fergus... Onde foi que eu errei? O que eu fiz de errado? É tudo culpa minha, eu falhei! - e a voz dela se tornou abafada. Merida soube que seu pai a tinha abraçado.
– Tudo vai ficar bem, querida. Nada disso é culpa sua. Vai ficar tudo bem. Já enviei os soldados para trazer a bruxa da floresta. Eles vão trazê-la aqui antes do amanhecer e tudo isso não passará de um pesadelo.
– Eu queria tanto acreditar em você. - ela respondeu.
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Merida passou a madrugada inteira acordada, esperando por alguma notícia dos grupos de buscas, mas eram todas desesperadoras. A cabana da bruxa estava vazia e ninguém a encontrara em lugar algum. Os soldados reviraram a floresta inteira, cada pedra, cada caverna, cada oco de árvore e nenhum sinal dela. Simplesmente desaparecera como se tivesse entrado por uma porta mágica e virado fumaça. A pequena luzinha de esperança que Merida mantinha acesa dentro de si foi se apagando até que só restaram trevas. Ela viu os criados indo e vindo, trazendo bagagens que ela precisaria levar, embora ela não soubesse exatamente como iriam levar tudo isso em apenas dois dragões. Ela olhou uma última vez para os raios de sol nas cortinas de seu quarto, sabendo que era a única vez que os veria por ali, e pensou que se pudesse levar alguma coisa dali, qualquer coisa... Ela fechou os olhos e imaginou-se galopando com Angus pela floresta. Certamente uma refém jamais poderia ter armas. Ela se despediu de seu arco, deixando-o sobre a cama, junto com a aljava de flechas. Então se lembrou de uma coisa. A pequena miniatura de Angus, quedava-se imóvel na penteadeira do quarto. Ela fechou-a dentro das duas mãos e a enfiou no bolso do kilt antes de dar uma última olhada no quarto e sair.
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No cais, Elinor, Fergus, os trigêmeos e Maudie aguardavam Merida com o sembrante fechado e sombrio. Soluço já estava lá, montado em Banguela. O dragão de Estóico estava lá também e Merida o achou um pouco assustador. Quebra Miolos era seu nome. O dragão tinha uma expressão nada amigável, fileiras afiadas de dentes e o modo como a luz refletia em suas escamas esverdeadas fez Merida se lembrar do dorso de um inseto. Era bonito de uma maneira ameaçadora e perigosa e fez Merida querer ficar longe. Ela esperava que pudesse voar em Banguela e não nele.
Voltou suas atenções a sua família, jogando-se nos braços do pai, enterrando o rosto em seu ombro. Logo sentiu também o aperto do abraço dos irmãos em volta de suas pernas.
– Eu não vou desistir, Merida. Vou achá-la, vou achá-la nem que eu tenha que dedicar o resto da minha vida a procurar, e vou te trazer de volta para nós. - ele disse com a voz trêmula.
Merida apenas foi capaz de assentir devido á carga de emoções que a atingiram. Medo, saudade, descrença, esperança. Seu pai tinha aquela maneira de ser, de acreditar que tudo ficaria bem, fossem quais fossem as circunstâncias. Quase a fazia querer acreditar também. Ela se afastou de Fergus, segurando sua mão, enquanto o rei urso tirava dos ombros o manto negro de pele de urso e o ajeitava sobre os ombros dela.
– Faz muito frio para onde você vai. - ele comentou, distraído e com a voz rouca, olhando para baixo e tentando disfarçar as lágrimas que já caíam de seu rosto.
O rei Urso não pôde dizer mais nada, mas Merida conhecia a mensagem por trás de suas palavras. Aquela era a sua maneira de dizer que a amava.
Elinor apenas assistia a cena, impassível. Merida aproximou-se dela, sem jeito, tentando pensar em algo para dizer. O que você deveria dizer para sua mãe se soubesse que nunca mais a veria? Sustentou o olhar da dela por alguns segundos, mordendo o lábio e abraçando-a, por fim. Elinor arquejou com o susto da rapidez do movimento, e por algum tempo permaneceu imóvel, como se pensasse no que fazer em seguida.
– Acho que dessa vez o meu erro foi muito grande para que eu possa consertar. - murmurou entre os cabelos da mãe - Se eu nunca mais a vir de novo, só queria dizer que ninguém poderia ter me amado mais e melhor do que você fez. Não foi sua culpa. Se eu tivesse visto antes... se eu... Eu te amo muito, mãe. Te amo demais. Me desculpe...
A rainha deixou escapar um soluço e abraçou Merida. Lembranças a invadiram com força. Os primeiros passos da filha. A primeira palavra, a primeira flecha lançada... Saber que nunca mais teria aquela proximidade fez seu coração doer. Havia tantas coisas que queria dizer a ela, tantos conselhos, tantos pedidos. Mas o que saiu de seus lábios foram apenas seis palavras.
– Eu também te amo. Fique segura.
Merida assentiu e afastou-se para beijar o rosto da mãe pela última vez. Olhar para ela só fazia as coisas mais difíceis, mas ela queria gravar cada traço de seu rosto para levar com ela para Berk. "Talvez você fique melhor sem alguém que a faça chorar sempre", pensou, enquanto caminhava na direção de Soluço.
A garota de olhos verdes encarava Merida com uma expressão avaliativa no rosto, como se estivesse decidindo o que fazer com uma formiga que pica sua perna. Por fim, fez um gesto com a cabeça para Merida seguí-la e subiu em Banguela, olhando firmemente para a frente quando Merida fez o mesmo. Quando se virou para olhar para o cais outra vez, Elinor estava parada a seu lado. Ela estendeu a mão e segurou a sua, suavemente. O bater de asas de Banguela os ergueu do solo, mas Merida manteve a mão de sua mãe na sua o máximo que pôde, até que a força do dragão a venceu e ela teve que soltá-la. Ela manteve os olhos nos dela até que o horizonte a afastasse para sempre.