Unfinished Business

Antes do fim de todas as coisas


"Chegamos agora exatamente à beira do abismo, onde a esperança é parente do desespero. Hesitar é cair."

J.R.R.Tolkien

Presente

Todo a sonolência se dissipara do meu corpo. O torpor causado pelo sono já não existia, entretanto eu estava com certos problemas em organizar os pensamentos.

Pouco a pouco, divididos em pequenos fragmentos de memória, as recordações foram voltando a mim. Por algum motivo, a primeira imagem que vi quando apertei os olhos foi o rosto de Ryan. Eu sentia falta dele, percebia isso toda vez que parava para pensar. Por anos, achei que não tinha o direito de ficar de luto, aliás, eu fora causa e consequência de todo o ocorrido. Minha tristeza transformou-se em culpa e remorso.

E, agora, tudo se repetia.

O segundo rosto que vi foi o de Derek. Eu não sou outro erro seu, ele dissera, mas isso não era verdade. Senti vontade de chorar, gritar e me debater até que não me restasse mais forças e talvez tivesse feito tudo isso caso não fosse a indolência causada pelo álcool.

Na véspera, depois de ter visto o último fio que me mantinha segura se romper, agachei-me em frente ao armário que ficava sob a pia e empurrei seu fundo falso, encontrando tudo que precisava: inúmeras garrafas e seringas.

Uma coisa sobre a dependência: sempre começa com o álcool, contudo, depois de um tempo, ele se torna insuficiente. Você precisa de mais. A dor sempre volta junto com a sobriedade e, por sua vez, com um misto de náusea e mal-estar.

Jogada no chão do banheiro, fitei as minúsculas e avermelhadas marcas circulares nos meus braços. Minha cabeça pulsava a ponto de explodir e, tal qual a noite anterior, aquele barulho maquiavélico surgira.

Bum. Bum. Bum.

As gotas.

Era ensurdecedor. Apertei os olhos e tentei ignorar, porém enquanto aquilo não passasse, seria impossível formular um pensamento coerente. Como eu poderia lutar pela vida de inocentes daquela forma? Levei as mãos aos ouvidos futilmente, apesar de saber que tudo aquilo provinha de algo muito mais perigoso. Eu mesma. Minha mente me traía.

O único oponente ao qual eu nunca poderia apresentar resistência sempre seria eu mesma.

Li uma vez, em algum livro qualquer, que ossos quebrados podiam ser consertados, entretanto, qualquer fissura na mente seria eterna. Nunca pude entender a veracidade daquelas palavras, mas agora eu compreendia.

Aquilo precisava parar, aquilo tinha que parar.

Com enorme dificuldade, levantei-me e apanhei um frasco de hidrocodona, engolindo duas pílulas de uma vez. Com tanta substância circulando em meu organismo, era um milagre eu ainda estar viva.

Engraçado, não? Como aqueles que não deveriam partir, sempre nos deixam cedo demais e aqueles que já não possuem mais nada em que se agarrar nesta vida, permanecem por muitos longos anos. É a grande ironia que nos cerca.

Não podia lidar com aquilo. Simplesmente não podia arcar com o peso de mais mortes, mas quem poderia me ajudar? Uma ligação, uma mensagem sequer, e Virginia conheceria o ataque mais violento de sua história. Duas bombas em um só dia.

Tentei manter a mente sã e raciocinar com frieza.

Uma explosão na sede de uma das corporações mais importantes do FBI só poderia significar um atentado terrorista. O país inteiro se agitaria como um formigueiro em que se joga água. Seria o caos. Por outro lado, seguindo o saldo de pessoas, a outra bomba causaria um número tremendamente maior de vítimas.

Bum. Bum. Bum. Bum.

Não... Mas...

Bum. Bum. Bum.

Apanhei uma seringa no chão e ergui meu braço para injetar seu conteúdo em minhas veias. O que, talvez, tenha sido uma má ideia. Mas aquele som infernal precisava ir embora! Algum dia ele iria desaparecer?

Instante depois, somente a inconsciência.

–x-

Acordei novamente com o barulho do toque do meu celular, porém não apanhei o aparelho no tempo certo para que pudesse atender a chamada.

Não tive tempo de levantar, somente virei-me para o lado e vomitei ali mesmo. Todo meu organismo entrou em pânico quando minha memória me atingiu violentamente. Peguei o celular novamente. 15 chamadas perdidas.

Chequei o horário.

11h50.

E eu tinha dez minutos para escolher quais famílias velariam seus entes queridos.

Quantico - Virginia
Dias antes

–Nós vamos simplesmente soltá-lo? - questionou J.J, com os braços cruzados e o semblante vincado.

–Não temos nada para retê-lo aqui além da intuição de que esteja mentindo e somente um hematoma no lugar errado para confirmar esse pressentimento - apontou Hotch - E quem sabe? Talvez ele esteja falando a verdade. Quem sabe, na euforia da briga, o unsub tenha usado a mão direita para desferir o soco. Aliás, segundo esse James Brosnan, o sujeito tinha uma arma. Por ser canhoto, provavelmente a portaria com a mão esquerda, deixando a direita livre para o ataque.

–Ainda não faz sentido - objetou J.J - O unsub tinha pressa na hora de matar as crianças, ele não prolongou o ato e, apesar de mostrar confiança, não o vejo enfrentando esse cara. E, se ele tinha uma arma, por que não usou? Nosso unsub não gosta de ser confrontado, nunca lutaria com alguém maior que ele. Além de tudo, Brosnan é canhoto. Coincidência? - deixou que sua pergunta pairasse, sem ser respondida. - Já ligaram para o Spencer?

J.J, Rossi e Hotchner olhavam através do vidro espelhado para James Brosnan, o sujeito que aparecera mais cedo alegando possuir informações sobre o caso dos sequestros em Virgínia que, contudo, apresentara uma história duvidável. A equipe - incompleta devido a ausência de Agnes Weston e Derek Moran, ambos trabalhando temporariamente em Nova York, e Spencer Reid, que saíra mais cedo - ainda esperava que Garcia checasse a veracidade dos locais que ele dissera estar na hora que as crianças desapareceram.

–Sim, ele já está a caminho - respondeu Aaron, checando seu celular.

–Gente - Penelope dissera enquanto irrompia pela porta - Todos os álibis para as horas dos sequestros conferem. Achei, inclusive, câmeras de segurança que os comprovam.

–Ele ainda por ser o nosso cara - objetou Rossi - Há alguma coisa nele... Trabalho com fatos, mas meus instintos não costumam falhar.

–E eu confio plenamente neles senhor - retrucou Penelope - Entretanto, uma nova criança foi sequestrada nesse intervalo. Anna Hill, 8 anos. O unsub parece ter resolvido encurtar o tempo entre suas vítimas.

–Então esse cara estava falando a verdade? - o tom hesitante de J.J desnudava toda sua descrença.

–David e J.J, vocês podem ir falar com a família. Temos policiais patrulhando em todos os possível locais, assumam o comando das rotas. Infelizmente, terei que liberar esse sujeito, mas continue investigando, Garcia.

Todos assentiram e seguiram para acatar as ordens.

–x-

Spencer Reid equilibrava quatro embalagens de café ainda tampadas nas mãos e braços, apoiando-os contra o peito e empurrando portas com o pé até chegar na sala de conferência, onde o restante da equipe aguardava. Repousou sua carga na mesa em frente ao assentos de J.J, Rossi e Hotchner, finalmente podendo tomar seu próprio café. Contudo algo estava errado, somente Garcia e Aaron estavam presentes.

–Onde estão J.J e Rossi? - questionou com o cenho franzido.

–Patrulhando - Hotch respondeu secamente, enquanto checava algo no celular. - Jack tinha um jogo hoje.

Ele falou quase sem notar que o fazia, uma pequena rachadura na armadura de Aaron Hotchner.

–Droga! - Garcia deixou escapar uma maldição exasperada - Eu ainda não achei nada, nada… Nada! Vocês não têm noção do quanto isso é frustrante! - cerrava os punhos em seu jeito completamente exagerado de ser.

A imagem de um sujeito de tom pálido e olhos extremamente azuis apareceu na imagem do retroprojetor. Usava óculos de aros grossos e diversas rugas partiam da região de seus olhos. Sua aparência era cansada e desgrenhada, porém com uma beleza sutil.

Reid não pôde evitar uma expressão embasbacada que, felizmente, ninguém presente percebeu. Levantou-se atrapalhadamente e dirigiu-se para o corredor, discou um número e aguardou que o atendessem, contudo a espera foi vã e resolveu deixar uma mensagem na caixa postal.

–Agnes, é o Spencer. Lembra aquele seu irmão? Então, ele está sendo investigado nesse exato momento. Garcia está escavando a vida dele, J.J e Rossi o estão seguindo e, pelo o amor de deus, eu tenho um QI de 180, você realmente acha que consegue me enganar? Foi uma escolha sua, eu respeitei, mas se há alguma coisa que eu precise saber, acho melhor me contar logo. Em quê você se meteu dessa vez?

–x-

"O assassino que aterrorizou as famílias de Virginia finalmente foi preso pelo FBI enquanto sequestrava sua quinta vítima, Elena Wilson, que, felizmente, já se encontra ao lado de sua família. Colin Griffin será julgado por tentativa de homicídio e homicídio doloso com intenção de matar pelos assassinatos de Olivia White, Karyn Davis, Melinda Carter e Anna Hill. As últimas notícias que recebemos..."

A transmissão foi interrompida quando Aaron Hotchner desligou a televisão da sala de conferência.

–Acho que todos nós precisamos ir para casa - declarou peremptório.

No exato instante em que terminou de proferir a sentença, Penelope Garcia adentrou a sala. Ofegante e irrequieta, segurava seu tablet em uma das mãos e massageava a fronte com a outra.

–Pessoal, sei que todos vocês estão necessitando urgentemente de um descanso, contudo não vão acreditar no que eu acabei de descobrir - despejou as palavras - Apesar de ter todos os registros e documentos, James Brosnan basicamente não existia até uns anos atrás. Nenhum registro em escolas, hospitais, família... Nada. Obviamente isso me deu um rastro a seguir e acontece que nosso suspeito benfeitor, na verdade, se chama Peter Harker, formando em Física e, não obstante, Química. Trabalhava na Universidade de Pasadena com pesquisas voltadas a Teoria das Cordas. Após a morte da esposa e da filha, ele sumiu do mapa. A família informou a polícia e até hoje ele está entre os registros de desaparecidos. E foi a partir de então que eu comecei a ter os resultados sobre James Brosnan e o resto vocês já sabem... Professor de física, antissocial, recluso...

–Garcia, isso com certeza é muito estranho, mas não pode esperar? - interrompeu Rossi, com tom repleto de exaustão.

–Não, senhor. Ainda não cheguei na parte mais estranha. Lucy e Amy Harker foram uma das vítimas da explosão de 2008. Sim, essa mesma - confirmou após ouvir o resfolegar da equipe - Rastreando as ligações do celular de Peter encontrei diversas chamadas para o mesmo número. Adivinhem...

–Agnes - Reid concluiu em seu lugar. Sua voz era quebradiça, fraca e sem ânimo.

–Sim - confirmou Penelope, boquiaberta - Como você...

–Eu o vi - explicou, sem olhar diretamente para ninguém em especial, entretanto podia sentir os olhares pesados caídos em si.

–Nós vamos precisar de mais algumas palavras - encorajou Rossi, com o cenho franzido tornando sua expressão inquisitiva.

–Eu fui até o apartamento dela e ele estava lá. Agnes disse que era seu irmão, mas eu sabia claramente que não era verdade. Pensei que fosse um assunto particular e não quis me intrometer, porém quando vi a foto dele aqui... Tentei avisá-la. Agora tudo está perfeitamente cristalino, ele a está ameaçando.

–Você fez o que? - trovejou Hotch - Ligou para ela para avisar que ele estava sendo investigado? Não lhe passou nenhum instante pela cabeça que ela pode tê-lo alertado?

–Não! - Spencer vociferou, peremptório. -Você entendeu errado, Aaron. Ela é a vítima da história. Em nenhum momento eu ao menos considerei o contrário.

Sua postura rígida não deixava espaço para que ninguém o contestasse.

A tensão pairou no recinto enquanto Aaron perscrutava Spencer com seu olhar implacável.

–Ele vai fazer algo para atingi-la, Aaron. E eu acho que já sei o que - esclareceu.

–Uma explosão - J.J concluiu com algo que não passava de um murmúrio. - Formado em Química, não?

–Sim - confirmou Reid - Ele quer vingar a morte da família, porém quer fazer isso de forma que afete a Agnes. A variável da equação é sabermos onde a bomba será implantada.

–Ok, agora que já sabemos, o que vamos fazer? - Rossi franzia as sobrancelhas em sua maneira particular.

–Nós precisamos da Weston, por enquanto - afirmou Hotch.

–O que você quer dizer com “por enquanto”? - Reid estava de braços cruzados e uma expressão alarmada. Os cabelos, sempre peculiares, pareciam mais desgrenhados que o de costume concedendo-lhe uma aparência quase adolescente.

–Reid, você está fora desse caso. Vá para casa, tire uns dias de folga - repreendeu Hotchner.

Ainda estupefato, Spencer Reid olhou ao redor, procurando alguém que não concordasse com a ordem de Aaron Hotchner, entretanto, desvios de olhares foi tudo o que recebeu.

–Garcia - Aaron abrandou a voz, contudo ainda podia facilmente ser confundida com um tom ameaçador e austero - quero uma equipe monitorando toda e qualquer ligação que Agnes Weston faz ou recebe. Quero todas as mensagens de texto e chamadas de voz gravadas. Entendeu?
Penelope assentiu nervosamente.

–Sim, senhor.

Horas depois

Aaron Hotchner encontrara seu filho, Jack, adormecido no sofá. Fez uma menção para a tia do garoto deixando a entender que ele cuidaria daquilo. Carregou Jack, que estava maior e mais pesado do que ele se recordava, e o acomodou em sua cama, afofando o travesseiro e o revolvendo com o cobertor. Fechara a porta silenciosamente e fora até seu próprio quarto. Estava desfazendo o nó da gravata quando o celular tocou.

–É o agente Hotchner falando. O que? Agnes Weston presa? Mas… Tem certeza disso?

Aaron engoliu em seco e deixou-se despencar na cama, estupefato.

–Estou indo para Nova York.

Presente

–Estava começando a achar que você não queria mais falar comigo - provocou a voz no outro lado da linha - Me infiltrar na última investigação da BAU foi muito divertido. Em algum momento eles realmente suspeitaram de mim, mas agora acho que compraram minha história falsa... Eu nunca nem encontrei o tal assassino que está apodrecendo na prisão agora. Esse não será meu destino. Estarei morto muito antes que cheguem perto de mim. Mas não liguei para falar sobre isso... A polícia acabou de receber uma denúncia anônima sobre uma possível bomba em um terreno baldio. Em 10 minutos, no máximo, eles estarão lá. Contudo, talvez seja tarde demais ou, talvez, não seja nem necessário. Tudo depende da sua escolha, Agnes. E você tem 5 minutos antes do fim de todas as coisas. Decida-se ou...

"É melhor não saber o futuro. Tudo termina em lágrimas, é só o que há."

Bernard Cornwell