— Mike!!!

Assustou-se e o telemóvel saltou-lhe das mãos. Escutou o aparelho bater no soalho com um baque surdo. Felizmente, estava protegido por uma capa contra pequenos choques e o piso era de madeira.

Impulsionou a cadeira giratória com a ponta das sapatilhas e encarou a visita zangado. Cruzou os braços. Os pelos da nuca arrepiaram-se. Continuava a não se habituar àquelas vindas… tão estranhas, tão pouco naturais, tão desafiantes. Reteve um suspiro de enfado.

— Chester… o que me queres, desta vez?

— Ups… Desculpa. Partiste o teu telemóvel?

Debruçou-se de braço estendido, mas Mike adiantou-se. Levantou-se da cadeira, a agitar as mãos à sua frente.

— Deixa lá isso. Está tudo bem.

Chester endireitou-se, confuso.

— Não queres que te apanhe o telemóvel e veja se está tudo bem? – perguntou. – Se fui eu que te fez deixá-lo cair. Eh, desculpa. Não te queria partir o telemóvel. Bom, se estiver partido, pago-te um telemóvel novo.

— Voltaste…

Mike sentiu a habitual contração no estômago sempre que revia o amigo no estúdio da sua casa. Uma camada fina de suor cobria-lhe a pele exposta, empapava-lhe as axilas. Vestia-se de manga curta e de calções, mas começava imediatamente a transpirar diante daquela visão. Olhou de relance para a janela panorâmica à sua esquerda que lhe mostrava os jardins da sua propriedade. Distraiu-se com o pensamento aleatório de que o verão estava prestes a chegar. A Califórnia era um sítio quente. Nem sempre ligava o ar condicionado, fazia-lhe mal às alergias e à asma, o técnico que ia periodicamente limpar os filtros ainda não tinha aparecido. Depois do calor vinha aquele frio esquisito que se espalhava gradualmente pelo corpo. Seria o amigo que trazia esse gelo agarrado a si, um resquício do outro lado? Engoliu em seco. Teria os olhos esbugalhados e muito provavelmente empalidecera, porque Chester fez-lhe uma careta.

— Mike…

Recompôs-se, adotando a expressão habitual usada nas entrevistas obrigatórias para promover algum dos seus trabalhos. Nada de revelar o que lhe fazia bater o coração.

— Diz. O que me queres?

— Eh, vim ver-te. Está tudo bem contigo?

— Sim, comigo está tudo bem – respondeu Mike com um sorriso contraído. – E contigo?

— Estou ótimo!

— Folgo em saber.

Chester olhou em volta. Descobriu o sofá branco. Sentou-se. Traçou a perna, abriu os braços sobre o encosto. Sorriu abertamente.

Começou, sem outros preâmbulos:

— Queria falar-te de uma banda de tributo…

Mike retraiu-se de imediato. Voltou a ocupar a cadeira giratória, voltou a cruzar os braços.

— Hum… estás a falar daquela banda que vem de Portugal…

— Essa mesmo! – confirmou Chester, entusiasmado.

— Não pode ser.

O entusiasmo do amigo desinflou. Perguntou, atrapalhado:

— Não pode ser… como? – gaguejou.

— Como é que me podes falar dessa banda, Chaz? Eles nem sequer existiam quando… – Mordeu os lábios, susteve a respiração.

— Quando o quê?

— Eles apareceram em 2019 ou coisa que o valha. Como podes tu conhecê-los? Nem sequer te posso falar na pandemia e no que nós passámos durante dois anos. Tu, simplesmente, não entendes… Estás aqui, mas há coisas posteriores que te ultrapassam. Que não é suposto conheceres.

Teve a impressão de que a imagem do antigo companheiro de ofício tremulou. Como um daqueles hologramas dos filmes de ficção científica que se engasgam quando as condições da comunicação sofrem uma interferência. Esfregou os olhos. Possivelmente, estaria a sonhar e a falar sozinho.

— Mike…

A voz veio com uma evidente vulnerabilidade. Talvez tudo se estivesse a desvanecer e ele acordaria em breve do seu sonho.

— Como é que sabes dessa banda? – perguntou Mike sem convicção.

O ambiente do estúdio aqueceu, de repente. Calaram-se.

Sim, o mais provável é que foi mais um sonho estúpido, potenciado pelo calor, em que…

— Foi o Joe.

Chester continuava ali. De frente para si. Sentado no sofá. A imagem readquiriu a nitidez dos contornos e o volume tridimensional adequado a uma pessoa. Verdadeira, concreta e viva. Mike resolveu aceitar outra vez aquela loucura que lhe acontecia de vez em quando. Talvez a culpa fosse do calor, da falta de um pequeno-almoço decente, só tinha bebido uma chávena de café, mas que interessava encontrar um culpado?

Espevitou-se.

— Qual Joe?

— Ora, qual Joe… o Mr. Hahn!

Agarrou-se aos braços da cadeira giratória, inclinou-se para diante. Comentou, incrédulo:

— Também visitas o Joe?

— Sim, claro… Shinoda, não tens o exclusivo das minhas visitas! Nunca tiveste. Deixa de ser ciumento. Lá porque tu é que cantas comigo não quer dizer que deva lealdade apenas a ti.

— E os outros? Também os visitas?

— O Brad, o Phoenix, o Rob?

— Sim.

— Eh… – Chester coçou a barba debaixo do queixo. – Bem… acho que não vejo o Rob há algum tempo, mas esse sempre foi mais difícil de encontrar. O Brad ri-se muito quando me vê e o Phoenix queixa-se que ainda lhe provoco um ataque cardíaco. E depois também se ri.

Mike tentou encontrar uma réplica adequada, mas só lhe saiu um suspiro e admitiu:

— Eles não me disseram nada.

— E tinham que te dizer?

— Podiam ter comentado, sim! – agitou-se o japonês. – Mas devem pensar o mesmo que eu penso.

— E o que é isso?

— Que estão a ficar malucos e calam-se, com medo de terem de ir confessar-se a um psicólogo.

Chester riu-se numa gargalhada.

— E porque é que haveriam de achar isso?

— É muito complicado explicar-te, Chaz. E muito sinceramente, se os outros não te quiseram contar, eu também não o farei.

— O quê? – estranhou o vocalista, torcendo-se noutra careta ainda mais engraçada.

— É muito complicado – repetiu Mike, impaciente.

A atitude de Chester voltou a mudar. O seu humor variava dentro de um espectro alargado, ora esfusiante, ora melancólico, no mesmo minuto se se desse o caso. Nisso, continuava igual. A sua alteração para outro plano não lhe tinha suavizado o carácter ao ponto de o tornar mais equilibrado.

— Se é complicado…

— Sim, é complicado, Chester.

— Bem, quanto à banda de trib…

— Não quero saber! Também tu me vens falar dessa banda?! Mas que coisa. Não há paciência.

Fez girar a cadeira, ficou de frente para a sua mesa de trabalho. O computador estava desligado. A rotina matinal era sempre a mesma. Primeiro, conferia as suas notificações, depois iria trabalhar na produção de mais uma canção. Até à data tinha tido pouco reconhecimento enquanto produtor e artífice de sons, mas acreditava que um dia haveria de produzir um êxito que iria chegar ao topo cimeiro da tabela da Billboard. E precisava de ter mais sucesso do que tivera? Sim. De alguma maneira, sem a banda que fora a sua vida durante dezassete anos completos e maravilhosos, precisava de se reinventar, de regressar à ribalta – e ainda não o tinha conseguido.

Assentou os cotovelos na mesa, espremeu a cabeça entre as mãos. Era só o que lhe faltava agora! Ter o Chester a falar-lhe de…

— Qual é o teu problema com a banda de tributo de Portugal? Chamam-se Hybrid Theory, não é? Acho o nome porreiro… Hybrid Theory! Nós fomos também os Hybrid Theory. Embora, se queres que te diga, aquele nome maluco que tiveram antes de serem os Xero é o meu preferido. Parece uma cena de ficção científica… Platinum Lotus Foundation! Quem é que veio com um nome desses? Nunca soube… Aposto que foi o Brad. Ele é que gosta dessas cenas vanguardistas.

— Não tenho problema nenhum – resmungou o Mike.

— O que foi que disseste?

— Não tenho problema nenhum com bandas de tributo, Chester.

— Com esta tens. Olha só para ti… Parece que amuaste.

Largou a cabeça, suspirou pesadamente. Ligou o computador. Iria fingir que não estava a ter aquela conversa. Iria começar a trabalhar, mesmo sem ter verificado todas as notificações do seu telemóvel. A rotina matinal toda alterada e havia um qualquer nervo que lhe doía.

— Não estou amuado – tornou a resmungar.

— O que se passa?

— Não se passa nada, Chaz.

— Oh… Eu acho que há aí um melindre qualquer…

— Sou constantemente bombardeado com essa banda de tributo! Volta e meia falam-me nela. Até em entrevistas em que estou a promover o meu trabalho! Existe um tipo no Twitch que de vez em quando me manda sussurros… – Mudou de voz, a imitar supostamente a desse seguidor. – Então, Mike? Já viste os Hybrid Theory de Portugal? E coloca links com os vídeos.

— Que nunca abriste…

— Não. Tenho mais o que fazer.

— E porque é que nunca abriste os vídeos?

— Porque tenho mais o que fazer! – repetiu, irritado.

— Eu já ouvi e gostei muito.

— Ótimo! É uma pena não poderes divulgá-los. Não é, Chester?

— Hum… Estás mesmo amuado. Vá lá, conta lá ao Bennington o que se passa.

Mike hesitou, mas acabou por confessar:

— Dizem que o tipo que canta as tuas partes é igual a ti. Eu não acho.

— Ah! Então, já viste os vídeos deles?

— Uma vez a Anna mostrou-me um vídeo, sim.

— Ah, e não achaste que o cantor é parecido comigo?

Um cansaço avassalador drenava-lhe as energias. Mike levantou-se outra vez da cadeira, encarou o amigo. Chester estava com aquele ar infantil de quando descobria a melhor coisa do mundo, que levava depois a elogiar até à náusea, a gastá-la até ao tutano. Depois, fartava-se e passava para a próxima melhor coisa do mundo.

— Não, Chester. Não acho – respondeu, moderando o mau génio. – Vocês dois têm um timbre muito diferente.

— Temos um timbre diferente, mas existem pontos de contacto. Adoraria cantar com ele… Achas que posso? Não podemos chamá-los para tocarem connosco, quando formos fazer uma próxima apresentação a Portugal? Tenho saudades das nossas digressões. Agora, parece que não saímos de casa…

— Chester… não podemos fazer isso – explicou Mike com tristeza. – Ouve-me… eu prometo que darei mais atenção a essa banda de tributo.

— Aos Hyrbrid Theory. Gosto deles. São também parecidos connosco fisicamente. Aquilo é muito engraçado.

Mike lembrou-se de um detalhe do início da conversa.

— Chaz… Dizes que foi o Joe que te mostrou a banda de tributo?

— Sim, foi o Joe.

— E os outros? Também sabem quem é essa banda?

— Acredito que sim. Tu também conheces a banda, mesmo que tenhas negado no início.

— E achas realmente que o cantor tem uma voz parecida à tua?

— Sim, acho. Como é que ele se chama? Tem um nome caricato. Espera… – Apertou a cana do nariz com dois dedos, levantando os óculos, de olhos fechados, como se se estivesse a concentrar num problema muito difícil. – Ivo! Isso. O cantor chamava-se Ivo. Não é um nome caricato? Dá para gritar o nome… iiiiiiiiiiiiiiiiivooouuuu.

Mike riu-se e sentiu um alívio tépido espalhar-se pelo corpo que se foi descontraindo. Era uma estupidez levar aquela questão da banda de tributo portuguesa a peito. Anunciavam-se como admiradores dos Linkin Park, que prestavam uma homenagem à música que milhões de fãs órfãos desejavam ver ao vivo, mas sentia reservas em relação à visibilidade que estavam a ter pelo mundo fora. Seria inveja? A mesquinhez do sentimento espantava-o, porque ele não tinha necessidade disso.

— Ivo. – Mastigou o nome.

— Sim, Ivo. Os outros não sei o nome. Mas tu podias descobrir. – Chester continuava entusiasmado.

— Para quê?

— Ah… Mike! Vê lá os vídeos da banda e diz qualquer coisa nas tuas redes sociais ou nas redes da banda. Às vezes partilhamos gente tão…

— Não contestes as nossas escolhas de divulgação.

— Está bem. Não vou contestar nada. Mas esses meninos merecem ser divulgados.

— Esses meninos já estão a ser divulgados.

— Aposto que eles querem que tu digas alguma coisa.

— Talvez. Repara no que vai acontecer… Sanciono essa banda e depois vamos ter uma chuva de uma centena de outras bandas, pelo mundo fora, que também querem ter o aval do Mike Shinoda e dos Linkin Park. Compreendes?

— Sim, e tu vais escolher e vais ter a resposta certa para cada uma. Porque tu sabes que os portugueses são os melhores do mundo, terás essa justificação, e que só eles merecem o nosso apoio.

— E se os portugueses não forem os melhores do mundo?

— Mas são e tu sabes que são. Deixa de ser teimoso! – Chester sorriu. – Estou aqui contigo, não estou? Se eu vim para falar deles, é porque eles são mesmo especiais.

Mike estremeceu.

— Chaz, não faças isso…

— Ah, tu sabes que tenho razão. Quando voltar a visitar o Joe, o Brad e o Phoenix, quando encontrar o Rob, também lhes vou pedir que apoiem os Hybrid Theory de Portugal.

— Poupa o susto ao Rob.

— Nem penses! Quero mesmo assustar o Bourdon! – disse Chester a rir-se alto.

Mike também se riu. Voltou-se para o computador.

— Bem… vou trabalhar um pouco… queres trabalhar comigo? Podíamos gravar a tua voz, fazer uma coisa diferente. Saber se posso, efetivamente, gravar a tua voz… O que achas?

Não obteve resposta.

— Chester?

O amigo tinha-se ido embora. Não deixou nenhum rasto. Nem sequer uma marca de pressão no sofá. Mike aproximou-se, passou a mão pelo estofo. Nada. Não havia calor ou perfume ou uma vibração diferente. Voltara a sonhar de olhos abertos.

Sentou-se. Chegou a cadeira giratória à mesa. Agarrou no rato. Abriu o navegador da internet. Crispou-se. Tinha de parar de ser tão picuinhas, tinha de eliminar os seus pruridos e apagar as linhas intransponíveis que traçava em redutos estanques. Ajeitou o boné na cabeça que lhe domava a cabeleireira farta.

Faria a concessão. Estava disposto a experimentar… só para não o acusarem de ser um velho marreta antiquado, que despejava críticas ácidas por pura maldade.

Abriu o YouTube.

— Muito bem. Hybrid Theory de Portugal…

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.