Um concurso. Dulce nunca tinha pensado que um concurso faria que ela ficasse tão confusa. Quer dizer, ela sabia por cima que já tinha participado de concursos antes, mas desta vez a situação era completamente diferente do que ela já tinha vivido. Ouviu o sinal que marcava o final das aulas, enquanto começou a sentir o nervosismo de ter que ser a responsável por decidir sobre um tema importante.

Tudo começou algumas horas antes: as crianças a esperaram na sala, todas com os olhinhos atentos para contar a novidade da semana, com o peito cheio de expectativa. Dulce abriu a porta para recebê-los com o melhor sorriso que podia oferecer, como fazia em todos os encontros.

— Boa tarde, meninos!

— Boa tarde, maestra!

Eles estavam sentados no chão numa grande roda que mesclava várias idades, deixando vago um espaço onde era esperado que ela se sentasse. Toda semana era assim, a diferença era que eles mesmos se organizavam para que ela se sentasse toda semana ao lado de um aluno diferente. Com a pasta das músicas em mãos, pronta para iniciar os aquecimentos, ela se juntou a eles, mas não conseguiu começar a aula imediatamente, como queria. Os alunos tinham uma petição.

— Antes de começarmos a aula, precisamos falar com você, maestra. — Dulce olhou rapidamente para cada um, aguardando alguma dica do tema dessa conversa tão séria. José, que liderava a equipe nesse momento, notou a aprovação dela e então prosseguiu. — Nós encontramos na internet um concurso para grupos de coral e queremos participar.

— Um concurso? — perguntou ela, assustada.

— É. Vimos que foi organizado por uma empresa bem grande e bem famosa que quer homenagear a música dos anos dois mil. — Dulce o escutava com atenção, esperando uma brecha para dizer-lhes que ainda não estava pronta para esse tipo de evento, mas o aluno não deu nenhum sinal de que a deixaria conversar. Sendo assim, ela terminou de ouvir a explicação em silêncio, apenas assentindo. — Nós lemos tudo. Eles querem que os participantes sejam crianças de seis a quatorze anos que possam cantar em grupo músicas que tocavam antigamente e fazer uma performance no palco para as pessoas assistirem. Vai ser lá na Capital. E entre esses que vão estar vendo as apresentações, vão estar também algumas pessoas que vão dar notas e definir um grupo vencedor.

— Tem prêmio? — um dos menores perguntou, instigando a curiosidade de mais alguns do grupo que ainda não sabiam sobre o concurso.

— Tem prêmio, sim. Eles dizem que o grupo vencedor vai ter a oportunidade de gravar com eles um vídeo para o final do ano.

Vendo as expressões confusas dos alunos mais novos e antecipando a agitação que começava a se formar, Dulce tentou explicar de outra forma.

— Eles vão gravar vocês cantando para aparecer na televisão.

Um burburinho se formou enchendo a sala de animação e expectativa. Dulce, por sua vez, não sentia toda essa emoção que as crianças demonstraram, muito pelo contrário. Não queria ter que voltar para o México, não queria desapontar os alunos e não queria reviver tudo o que, com pesar, tinha deixado para trás. Por cima das vozes, pode ouvir um aluno gritando algo parecido com "Quando vai ser? O que vamos cantar?", fazendo com que Dulce retomasse o controle da situação, levantando uma mão para chamar atenção da palavra para si.

— Certo, eu preciso que vocês prestem atenção em mim. — ela pediu, respirando fundo em seguida, aguardando o silêncio se formar. — Imagino que ainda haja alguns meses para o dia do concurso. Mas antes de definirmos qualquer coisa, precisamos que seus pais autorizem e também que a dona Marta esteja de acordo. Depois disso, se todos concordarem, teremos um longo caminho para percorrer, antes de pensar em de fato competir. Precisamos ler as regras certinho, definir repertório, coreografia, aprender as músicas e conseguir que algum professor acompanhe vocês até lá.

— Você acompanha a gente, maestra — afirmou José, convicto.

— Se eu tiver autorização médica, eu acompanho com todo o prazer. Mas não podemos pensar nisso como algo que vai com certeza acontecer. Vamos com calma. Eu posso levar o pedido de vocês para a Dona Marta e vamos vendo como faremos, certo?

As crianças permaneceram em silêncio, balançando a cabeça em sinal positivo, enquanto se acalmavam, ainda envolvidos com a notícia. Lentamente, Dulce conseguiu organizá-los para iniciar os exercícios de respiração e prosseguiu com a aula, sem deixar de sentir um aperto no peito.

***

Diferente de todas as vezes anteriores, Dulce saiu da aula devastada devido à euforia das crianças em relação ao concurso. Eram crianças e, portanto, agitadas. Mas o cansaço era muito mais que isso: ela deveria ser responsável pela apresentação que ocorreria no lugar em que ela mais tinha medo de ir. Não queria voltar à Capital e não podia voltar à Capital. Não depois de tudo que já tinha acontecido.

Ela caminhou até a sala dos professores com a notícia das crianças guardada, porém as poucas lembranças que martelavam sua cabeça e a dor que sentia no quadril não a deixavam pensar direito em como fazer esse pedido à diretora.

— E então, como foi o ensaio de hoje? — perguntou a diretora, que todos os dias esperava os professores na sala de reuniões. Dona Marta olhou na direção de Dulce com expectativa assim que a avistou abrindo a porta.

— Eles praticamente pegaram fogo hoje — ela respondeu, tentando sorrir enquanto mancava até a cadeira mais próxima.

— O que aconteceu? — Marta se preocupou ao ver a expressão da professora de canto.

— As crianças querem participar de um concurso de corais na Capital — respondeu sem rodeios.

— Certo… Precisamos avaliar com calma as condições. O que acha de tudo isso?

Dulce não respondeu prontamente, tentou primeiro organizar seus pensamentos para não parecer egoísta por odiar a ideia.

— Vai ser ótimo para os meninos poder mostrar para profissionais capacitados o que aprenderam — ela respondeu, sem graça.

— Mas…?

— Não tem mas, Margaret. Achei legal mesmo, uma ótima oportunidade para eles.

— Não está com cara de quem achou legal — a diretora retrucou, com as sobrancelhas erguidas.

Dulce suspirou. Margaret a conhecia muito bem para saber quando ela não estava confortável com alguma coisa e não adiantaria esconder nada. Ao mesmo tempo não estava confortável em contar toda a verdade. Teria que falar alguma coisa que a justificasse.

— Eu acho que os médicos não me deixarão acompanhar. Então seria melhor que alguém de vocês fique responsável pelo projeto, se ele realmente acontecer. Eu posso ensaiá-los sem problemas, isso não fugiria das minhas responsabilidades, mas não quero me comprometer a acompanhá-los e depois precisar deixar todos na mão.

Margaret permaneceu em silêncio alguns segundos, o que deu a impressão a Dulce de que ela estaria convencida da explicação. Por um momento, Dulce acreditou que tinha conseguido se justificar para a diretora e, quem sabe, dado a oportunidade de não deixá-los participar sem que Dulce os acompanhasse. Chegou até a respirar de uma maneira um pouco mais leve.

— Não diga bobagens! — Margaret exclamou, deixando Dulce sobressaltada. — Você vai ver que seus exames vão sair ótimos e que você vai poder ver seus meninos se apresentando. — Ela serviu um café a Dulce e sentou-se a seu lado. — Vamos organizar tudo para que eles possam ir, eu posso ir atrás de condução e figurino, se precisar. E também de explicar para os pais para que eles autorizem a viajarem com você. Gostaria até mesmo de ir junto para ter mais um acompanhante.

“Não foi dessa vez”, pensou Dulce. Teria que encontrar forças para essa provação. Era isso, uma provação a mais, depois de tudo que já tinha acontecido. Não era possível que já não teria passado o suficiente! Manteve-se cabisbaixa sentada à mesa, mexendo no cantinho de uma das pastas catálogo, em silêncio, até que Margaret interrompeu seus pensamentos.

— Falando nisso, como está se sentindo? — Margaret colocou a mão em seu braço, em sinal de apoio. — Quando você vai repetir os exames?

— Estou melhor que algumas semanas atrás. Atualmente é assim, sempre um pouco melhor que antes. Saindo daqui, Gabriel vai me acompanhar até a clínica para fazer tudo o que os médicos pediram e acho que vou conseguir voltar para a casa só de noite. Vai ser longo o dia, ainda.

— Gabriel está aqui numa sexta? — a diretora indagou, surpresa. Ela sabia que o namorado de Dulce trabalhava fora durante a semana e que nos finais de semana encontrava tempo para descansar e fazer companhia aos familiares. — Ele voltou mais cedo essa semana?

— Pois é. Ele me disse que, como trabalhou no final de semana passado inteiro. A empresa achou por bem dar mais dias de folga nessa semana, então me disse que dessa vez me acompanharia. — O sinal finalmente tocou, liberando o som de uma multidão de crianças passando. Dulce sentiu o nervosismo voltar. Odiava fazer exames e ter que pensar num concurso ao mesmo tempo. — Bom final de semana, Mar.

— Boa sorte, querida.

***

Gabriel estava sentado em uma poltrona no quarto envolvido pela penumbra, lendo algo no celular, quando ela finalmente acordou. A bateria de exames demorou horas para ser feita e o procedimento sempre terminava com uma Dulce exausta e uma equipe da clínica compadecida em arranjar um lugar tranquilo para que ela pudesse descansar um pouco antes de ir para a casa em condições adequadas. Era o terceiro ano que realizava os mesmos exames com esses mesmos profissionais. Praticamente tinha a clínica como uma segunda casa, e isso de longe era um elogio.

— Como se sente, Dul?

A voz calma de Gabriel surgiu ao seu lado de repente e capturou a atenção de Dulce, que antes tentava não pensar no caos formado por vários assuntos importantes que iam saltando diante de seus olhos, como o concurso, a possibilidade de ida para a capital e como estaria sua casa depois de todo um dia fora.

— Menos cansada, mais confusa — respondeu, recebendo um apertinho na mão em sinal de compreensão. — Gab, você acha que já podemos ir? Alguém falou alguma coisa?

— A doutora deu uma passadinha aqui, disse que quando você acordasse já estaria de alta se estivesse se sentindo bem.

— Ótimo! Por favor, o que estamos esperando? — Perguntou, irônica, arrancando um risinho de seu acompanhante. Dulce só queria ir para a casa.

— Estamos esperando a senhorita se resolver — Gabriel brincou. — Quer ajuda? Sente alguma dor?

— Não precisa, pode deixar. Está tudo bem.

Dulce odiava ser o centro das atenções quando o tema era cuidados com ela própria. Todo o tempo em que esteve na clínica, recebeu uma mordomia, em sua opinião, desnecessária, das pessoas sendo solícitas, mesmo quando ela conseguia completar sozinha as tarefas que precisava. Desta vez percebeu que não seria diferente. Colocou-se de pé, agarrou suas coisas e se retirou, seguida de perto pelo namorado.

Gabriel sabia que em dia de exames Dulce ficava calada, reflexiva. Ela, por sua vez, não queria que ele puxasse assunto, nem ficasse conferindo a todo tempo se ela estava bem, mas sabia que ele não gostava do silêncio, que era incômodo para alguém que passava o dia no meio de ruídos. Fizeram todo o trajeto até a casa de Dulce trocando algumas palavras e, ao chegar, abriram a porta, devagar. A sala estava escura, exceto pela luz emitida pela televisão e um grito comedido vindo do sofá.

— Amiga, já chegou? Vem ver isso!

Dulce olhou divertida para Gabriel e caminhou até lá. Quis guardar aquela cena para, no futuro, poder usá-la para se proteger de chantagens emocionais dos amigos. A cena era: Paola, sua amiga discreta, sentada em um sofá e enrolada num edredom, no qual havia apenas uma fresta por onde era possível enxergar as lentes de seus óculos. Na frente dela, sentado no chão, estava Jorge, igualmente enrolado em um edredom. Não havia nenhuma fresta.

— Eu queria dizer que eu não fui responsável pela escolha horrível de filme — Declarou ele. — Eu queria assistir algum filme do Adam Sandler, qualquer coisa assim, mas não. Ela quis assistir a horrorosa da Dora, aventureira!

Jorge e Paola foram as primeiras pessoas que a receberam na pequena cidade de Paraíso Real, onde alguns anos atrás Dulce encontrou um momento de descanso em meio a tantos afazeres. Descobriu que na cidade não havia nenhum hotel e esse casal poderia alugar um quarto para sua estadia. Bem, descobriu logo que Paola e Jorge eram apenas amigos: Jorge era homossexual; Paola era uma mulher trans, heterossexual. Ela, querendo uma experiência diferente longe dos holofotes, aceitou ficar com eles na casa. Além disso, a cidade tinha uma cultura diferente, bem mais tranquila: as pessoas não viam televisão, estavam longe das notícias do show-business. Era o lugar perfeito. Até tudo acontecer e Paraíso Real se tornar sua casa definitiva. E os amigos, novos irmãos para essa nova versão da vida.

Dulce queria rir, mas não teve tempo. Algo agarrou sua perna com uma rapidez que ela não pode acompanhar devido aos recentes acontecimentos na clínica. Sorrindo, ela pegou o serzinho no colo enquanto Paola se libertou por dois segundos da proteção anti-espírito que era feita de material macio e fofinho.

— Ela não quis jantar.

— Você não comeu nada até agora, senhorita? — Dulce perguntou indignada, olhando a menininha que tentava esconder o rosto para não encarar a bronca. — Pelo menos o banho você tomou?

Sentiu a pequena assentindo em seu ombro.

— Vamos comer algo rapidinho, porque já está passando da sua hora de ir para a cama.

Enquanto Dulce carregava a filha até a cozinha, em meio a reclamações da pequena, ouviu quando Gabriel se sentou com os amigos na sala, sentindo vontade de rir a cada frase escutada.

— Não me deixa aqui sozinha — Paola rogou.

— Eu? — Gabriel respondeu com sarcasmo. — Sinto muito, preciso ir embora. Você está grandinha e pode lidar muito bem com uma mãe que deixou a filha civilizada na sua responsabilidade e voltou se deparando com uma criança selvagem. Qualquer coisa, o Jorge te protege.

— Há! Ele não me protege nem de barata, quem dirá de mães iradas!

— Eu não tenho obrigação! — a voz abafada de Jorge gritou de baixo do edredom. — Dul, por favor, empresta o Gabriel pra ela, ela precisa!

— Eu já estou indo embora, pessoal, só vim trazer a Dulce. E vocês vão deixá-la descansar, em vez de fazer as maluquices de vocês. — Ele se levantou, caminhando até a namorada e despedindo-se.

Dulce sorriu depois da saída de Gabriel, pensando em como provocar os dois amigos.

— Vão se preparando para o castigo de vocês — ela brincou, erguendo a voz na cozinha.

— Ah não, eu não vou fazer parte disso! — Jorge se defendeu, saindo debaixo das cobertas. — Lulu está ótima, brincou, tomou banho e não queria comer sem você. Não deu trabalho nenhum. Ela nunca dá trabalho. É um anjo. Agora você não vinha, não é minha culpa.

— Olha as desculpinhas… — Dulce nunca se sentia entediada em casa. Carregando em um braço, Luísa, e com a outra mão, um pratinho, ela se sentou ao lado de Paola. — Obrigada por cuidarem dela de novo, prometo recompensar. — Vendo as mãos dos amigos abanando para fora das respectivas mantas como quem diz ‘não foi nada!’. — Vamos terminar de dar comida para essa coisinha e já vamos dormir. O dia foi longo.

— Amanhã vai ser aquele almoço com o Gabriel? — Jorge perguntou, ao que Dulce assentiu — Se você não estiver bem, acho que não teria problema em não ir. Você precisa descansar.

— Amanhã já estarei bem, amigo. Pode ficar tranquilo. Vai dar tudo certo, eu acredito.

— Então bom, já que você está bem, todas as minhas meninas estão bem, eu vou sair.

— Vai sair? — questionou Paola, incrédula.

— Tenho um encontro hoje, Paolita. Ou por acaso um homem não pode ter um encontro com outro homem numa sexta à noite?

— Tá certo, vai para o seu encontrinho. Vamos fazer noite do pijama e você não vai ser convidado — Paola retrucou, provocando, enquanto Dulce terminava de alimentar a pequena Luísa e se preparava para se retirar.

— Meninos enquanto vocês se decidem, nós vamos indo dormir. Boa noite! — Anunciou Dulce, pedindo à filha que cumprimentasse os ‘tios’. — Até amanhã.

Diante de Luísa, Dulce tentava fazer o papel de super-mãe, não deixando transparecer cansaço e nem preocupações. Mas quando a filha estava dormindo, ela podia se render e passar um tempo consigo mesma, reorganizando emoções e pensamentos que a perturbavam sobre o futuro. E a dor que antes a incomodava podia ter paz e se expressar livremente.

Com a cabeça trabalhando na voltagem de 220, Dulce não deixava de pensar nos fatos do dia. Seria capaz de voltar à Capital, mesmo que acompanhando a equipe de coral? Ela queria acreditar que sim, mas no fundo sabia que havia muita coisa por trás. Deitada e sentindo as pontadas leves no quadril, ela não teve tempo de chegar a conclusões, dormindo em seguida.