“There is a house built out of stone

Wooden floors, walls and window sills

Tables and chairs worn by all of the dust

This is a place where I don't feel alone

This is a place where I feel at home.

And I built a home

for you

for me

Until it disappeared

from me

from you

And now, it's time to leave and turn to dust........"

("To Build A Home", The Cinematic Orchestra)

A alameda de cedros se agitou com o vento que passou inesperadamente. O céu estava meio nublado, mas dava para perceber que por detrás do amontoado de nuvens se encontrava um sol brilhante.

Com passos miúdos, mas seguros, Megan avançava pela calçada. Apertando com uma mão o casaco preto estruturado que lhe assentava como uma luva, ouvia o ruído dos seus saltos que batiam com força no pavimento e que embalavam ritmicamente os risos infantis que ouvia atrás de si.

Tendo vivido os últimos anos num corrupio entre Paris e o Rio de Janeiro, ela sentia agora falta de um sítio que ela pudesse chamar de home.

Uns anos antes, com a morte da sua grandma Berènice, ela tinha herdado inesperadamente uma boa parcela do grupo editorial Blois e tinha aproveitado a oportunidade para forjar uma nova vida para ela e para a filha, se mudando para Paris.

Afinal de contas, estando a Brazuca bem entregue a Ernesto, os seus interesses na Marra a serem velados por Vicente e já se tendo passado algum tempo sobre o seu divórcio de Arthur, ela tinha ansiado por uma oportunidade para começar de novo. Doía demais continuar no Rio de Janeiro.

O casamento com Arthur tinha sido desde o início um erro rotundo. Ainda que admitindo que ela nunca o havia amado, Megan Lily não era pessoa para desistir e tinha insistido naquela história fracassada. Todavia, mesmo ela tinha compreendido que tinha sido atingido o limite quando viu nos olhos do empresário de cabelos cacheados que ele tinha percebido toda a verdade.

Ela sabia que não lhe podia exigir mais nada. Não depois daquilo que ela tinha feito.

Tinha sido muito bom para ela aquele tempo longe de todos. Ela se tinha dedicado de cabeça ao seu maior tesouro, a sua filha Violet, e quase sem dar conta disso, se tinha tornado também uma empresária de respeito em nome próprio.

A filha problemática de Jonas Marra e a cara da Brazuca tinham ficado para trás e agora ela era Megan Parker-Marra, a única editora de moda capaz de fazer tremer na base Anna Wintour e um verdadeiro ícone capaz de movimentar milhões de dólares dentro da indústria com apenas um aceno de cabeça.

Não só as fashionistas se tinham rendido aos encantos da powerful Miss Marra, como ela se tinha dedicado a várias causas humanitárias com grande sucesso. Ela apenas fazia questão de fugir aos prémios que insistiam em lhe atribuir. Megan apoiava as ONGs porque acreditava nelas e não para impressionar ninguém.

Quando as obrigações profissionais e pessoais tornavam imperativa a sua presença no Brasil ela colocava de novo uma falsa máscara de felicidade imperturbável, mesmo que por dentro o coração sangrasse. Afinal de contas ela não queria privar a filha de ter uma família. Mesmo que doesse em Megan, Violet teria a infância que ela não tinha tido. Pais, avós, tios, primos. Toda uma normalidade e segurança que tinham sido negadas à loira.

A sua amiga Luene às vezes lhe dizia que parecia que ela fugia do Brasil como o diabo foge da cruz. Ledo engano. Megan Lily fugia da vergonha de si própria, de uma fraqueza que ela não tinha como controlar.

A última grande recaída havia sido dez anos antes. Os três sócios da Brazuca tinham sido convidados para uma conferência em Atlanta, mas uma gastrite tinha impedido Ernesto de viajar à última da hora.

Megan e Davi acabaram por improvisar uma apresentação brilhante que foi recebida entusiasticamente e acabaram os dois por festejar com uma garrafa de champanhe no quarto de hotel dela, numa noite chuvosa e fria.

Fosse o álcool a desinibi-lo, ou uma vontade insana latente a tomar conta dele, Davi acabou por tomá-la nos braços e os seus lábios se afogaram nos dela.

Ela se deixou levar, mesmo quando sentiu um arrepio quando ele encostou a mão que envergava a sua aliança de casamento na face dela. Só podia ser loucura o que se apossava deles quando se viam sozinhos e a pele de um se encostava da pele do outro, criando uma trilha que queimava e incendiava um fogo em que eles ardiam voluntariamente.

“Irmãozinhos” uma ova. Se todos os irmãos reagissem à presença um do outro como eles reagiam, a sociedade moderna estaria condenada.

Destruindo completamente a roupa da americana, Davi passou a noite a consumindo com uma fome inesgotável dela. Ele estava capaz de a engolir inteira. Ela não lhe quis resistir, nem tinha como.

Não quando somente ele a conseguia tocar simultaneamente com desvelo, amor e luxúria exacerbadas. Não quando apenas ele era capaz de a levar ao céu e ao inferno ao mesmo tempo só com a forma como ele não tirava os olhos dela.

Contudo, quando na manhã seguinte ela acordou sozinha naquela cama, puxando imediatamente os cobertores para cobrir a sua nudez, Megan não pode deixar de sentir um profundo nojo de si mesma.

Afinal, mesmo que por uma noite, tinha sido “a outra”. Por muito que, anos antes, ela tivesse sido uma wild child, ela nunca tinha perdido o seu peculiar senso de moralidade que, estranhamente, tinha sido sempre mais certeiro do que o de muitas mocinhas ditas guerreiras.

Por muito que ela detestasse Manuela e soubesse que o casamento entre ela e Davi tinha muitos problemas, Megan se sentia culpada pelo que tinha feito. Ela, Megan, não era de proceder assim.

Por outro lado havia Arthur. Mesmo ela reconhecendo que o que sentia por ele era mais uma amizade e um sentido de companheirismo do que propriamente amor, Megan lhe era demasiado grata por ele lhe ter dado valor. Arthur tinha sido o único a querer construir uma vida do lado dela. Tudo teria sido tão mais fácil se Megan pudesse mandar no seu coração.

Agora, Davi estaria com certeza dentro de um avião rumo aos braços da sua preciosa Manu e à bad girl apenas lhe restava se encolher no chuveiro em posição fetal, esperando que a água lavasse dela os vestígios do seu crime, embrulhados nas suas lágrimas.

Algumas semanas depois, a loira recebeu a pena pela sua infracção quando, num almoço de família, Manu anunciou a sua gravidez abraçada a Davi. Enquanto a família expressava as suas felicitações para o casal, o nerd tentou esboçar um sorriso, evitando a todo o custo contato visual com Megan.

Eles nunca mais tinham discutido o que tinha acontecido entre eles em Atlanta e Megan sabia que, depois daquela notícia, nunca mais o fariam.

Sentindo uma leve tontura, Megan se apoiou em Arthur quando foi forçada a dar os parabéns para os futuros pais.

Se existem momentos na vida de uma pessoa que são uma verdadeira epifania, aquele foi num desses momentos para bad girl. Ali ela decidiu que a única forma de conseguir seguir com a sua vida seria enterrar nas profundezas da sua alma tudo quanto se referia a Davi.

Que ele ficasse com a sua fama de bom moço e ela com a fama de pirralha, ela não queria saber. Seria cordial com ele em público e distante em privado. Criaria para ela uma vida boa, preenchida. Por ela e não por despeito a Davi.

Com a tenacidade que a caracterizava, a bad girl conseguiu. Nem sempre tinham sido fáceis aqueles anos, mas tinham valido a pena. Ela tinha crescido como pessoa, como profissional e tinha encontrado a felicidade num local que lhe tinha parecido improvável.

Se alguém perguntasse a Megan Lily qual tinha sido o dia mais feliz da sua vida ela teria respondido sem hesitação o dia em que a filha tinha nascido. Aquela garotinha tinha vindo iluminar os dias da loira e tinha conseguido ensinar para a mãe que amor incondicional existia sim. Porque era isso que Megan sentia quando olhava a filha. Aquele tipo de amor tão imenso que não se consegue colocar em palavras.

Depois disso, mesmo a sensação de perda era minorada pelo seu amor como mãe. Foi o que lhe aconteceu quando Arthur pediu o divórcio e mais tarde quando teve que enterrar a avó. Mesmo que os dias lhe parecessem negros, Megan tinha agora alguém que a amaria sem pedir nada em troca, exatamente como ela era, e que encheria de cor todos os seus dias.

Foi aquela garotinha de olhos apertados e espessos cabelos castanhos que a chamava de mommy quem lhe conseguiu aparar o maior golpe que o destino cruel resolveu aplicar em Megan.

E agora ela estava de volta ao Brasil. O sol espreitou por entre as nuvens quando Megan entrou no cemitério acompanhada pela filha dela e por Rosa, a filha de Davi e Manuela.

As duas garotinhas tinham poucos meses de diferença entre si e, tendo elas agora nove anos, Megan se enternecia vendo como as duas se davam bem, sendo as melhores amigas uma da outra.

Dando um beijo em cada uma, a loira pediu para elas irem brincar para um jardim ali próximo, porque precisava de um pouco de tempo sozinha. Correndo, as crianças seguiram de mãos dadas enquanto Megan seguia na outra direção.

Colocando os óculos escuros para esconder a emoção, Megan depositou um ramo de pequenas rosas e violetas em cima da lápide.

Ela se recordou de um dia, que lhe parecia agora ter ocorrido séculos antes, ainda nos tempos de namoro com Davi. Era o tempo em que eles falavam de tudo e de vários nadas com a mesma facilidade com que se bebe um copo de água.

Deitados na cama dela ouvindo a chuva cair lá fora parecia que os assuntos entre eles nunca se esgotariam quando ela se lembrou de partilhar com ele que queria fazer uma reforma no quarto. Até a escolha da cor da tinta de parede era motivo de riso para os dois.

- Amarelo? Cê tá doida, bad girl? – perguntava ele rindo, com a cabeça apoiada nos seios dela .

- E o que é que você sugere, baby boy? – perguntava ela, afagando com carinho os cabelos dele.

- Violeta.- respondeu Davi sem hesitar.

- Violet? Really? Desenvolta a sua tese. – pediu ela, beijando o topo da cabeça dele.

O nerd fez questão de pigarrear antes de assumir um tom solene de académico:

- Na pintura chinesa, a cor violeta representa a harmonia do Universo porque é a combinação entre o vermelho e o azul, que representam respectivamente o Yin e Yang, dois princípios contrários que se completam.

Ela riu com a explicação e não pode deixar de concordar com ele.

- Violet. Yeah, I like it! – disse Megan, fechando um abraço em volta de Davi.

Mal sabia ela que teria que o deixar ir embora de mais do que de uma maneira.

Após quase dez anos de uma convivência fabricada, tinha sido numa madrugada em Paris em que Megan havia recebido um telefonema a avisando do falecimento de Davi.

Depois de anos de uma existência miserável, tendo a sua energia e alegria de viver sugadas por quem lhe estava próximo, Davi havia acabado por morrer num estúpido acidente de viação.

Para quem realmente o amava, tinha sido apenas o culminar de um processo longo em que todos tinham visto o nerd definhar lentamente, preso a uma vida horrenda, sem que ninguém pudesse fazer nada.

Longe estava o jovem idealista que queria mudar o mundo. Lá mais para o fim só tinha sobrado um homem envelhecido prematuramente, aparentando ter bem mais do que os seus trinta e seis anos, preso uma mulher que o destruiu e que nunca o soube amar por aquilo que ele era.

O acidente apenas veio reclamar um corpo que já estava morto em vida.

Mas não era isso que parecia a Megan, que conseguiu acordar todo o 7ème arrondissement até à torre Eiffel com os seus gritos quando Ernesto ligou a dar a notícia.

E então ela se viu tendo que voltar ao Brasil para um funeral em que ela seria uma figurante de uma tragédia anunciada. Tentando segurar um Jonas quase se desfazendo em cacos pela morte do filho, Megan teve que assistir de primeira fila à interpretação de Manuela de uma viúva chorosa a quem todos vinham prestar os seus pêsames.

Apenas Pamela e Ernesto conseguiram vislumbrar a máscara que a bad girl colocou para aguentar a dor extrema que sentia dentro de si. Ter que dizer adeus daquela maneira, sem conseguir resolver os assuntos que tinha deixado pendentes com Davi lhe parecia cruel demais.

Não fosse a existência de Violet, Megan pediria que a morte também a viesse buscar e que ela pudesse pelo menos partilhar o afterlife com aquele nerdzinho charmoso que tinha virado a vida dela do avesso mais do que uma vez.

No final do enterro, um par de olhos seu conhecido se aproximou dela e a abraçou forte. Era Rosa, a filha de Davi e Manuela que, felizmente, tinha muito mais do pai do que da mãe. Carente, a menina só queria que alguém viesse tomar conta dela e lhe dissesse que tudo ia ficar bem.

Foi exatamente o que Megan fez. Enquanto Manuela dava uma entrevista colectiva a diversos meios de comunicação social, afastada de lentes curiosas Megan embalava Rosa nos braços.

- Everything will be fine, my love. Eu estou aqui com você, minha flor. – dizia a americana, tentando dar segurança para a criança.

As suspeitas da loira de que acabaria sendo ela a criar mais aquela garotinha rapidamente se revelaram verdadeiras.

Manuela não tinha um pingo de instinto materno dentro de si. Do mesmo modo que catorze anos antes ela tinha rapidamente caído nos braços de Arthur, aquando de uma separação que ela esperava ser temporária de Davi, uns meses após a morte do nerd já ela coabitava com um engenheiro da Google. Assim era o amor por Davi que ela dizia ser eterno.

Se mudando para a Califórnia para perseguir novas oportunidades profissionais ao lado no mais recente marido, a programadora não tinha hesitado em deixar ficar para trás a filha.

Protelando a sua volta para Paris para tomar conta da garotinha, Megan percebeu que não só tinha que ficar com ela, como que o queria fazer.

E a vida a tinha recompensado por isso. Ser a mãe de Violet e Rosa foi o que lhe permitiu manter a sanidade mental durante aqueles meses de luto e se durante aquele tempo ela até se tinha permitido a pequenos sorrisos o devia às suas flores, que faziam questão de a animar.

Megan era ainda jovem, mal tinha completado trinta e quatro anos. Ela era linda, loira, muito rica e sabia-o. Se ela quisesse, ela poderia refazer a sua vida ao lado de outra pessoa com um estalar de dedos. E, contudo, ela ainda não sentia vontade de o fazer.

A vida estava assim cheia de pequenas ironias. Mesmo no campo profissional, quase sem fazer muito por isso, Megan sempre tinha prosperado.

Ao mesmo tempo, os projetos de Davi e Manuela ao longo daqueles anos tinham sido um desastre atrás do outro em termos financeiros, apesar de que, agora, a guerreira Maya continuava a tentar manter uma falsa pose com o seu novo cargo nos Estados Unidos.

Se, pelo menos, Davi tivesse ouvido os conselhos de Megan tudo teria sido diferente.

- Você sempre foi tão silly, my love. – dizia Megan num murmúrio em frente à campa de Davi – Nós podíamos ter sido tão felizes…. eu podia ter te feito tão feliz….mas você me magoou tanto. E mesmo sendo você tão errado, eu te queria tanto….

As lágrimas começaram a correr em torrente e a loira não teve outro remédio que não tirar os óculos.

- I still love you. - continuou ela- Eu provavelmente vou te amar para sempre, but chegou a hora de dizer adeus, my love. Não dá para continuar e eu também quero… eu também mereço ser feliz.

Então era assim a sensação de liberdade. Aquele peso nos ombros dela que se dissipava aos poucos, a respiração que se tornava mais leve, a alma ficando mais pura.

Muitos anos antes ela tinha tentado construir um lar para Davi, mas tinha falhado ignobilmente. Ele, sem o saber, viria a construir o lar dela.

As garotas vieram correndo ter com Megan e ela passou um braço em volta dos ombros de cada uma. O sol brilhava sobre elas e a mais velha constatou que, apesar das crianças serem morenas, a luz fazia com que os cabelos de ambas apresentassem reflexos loiros. Eram tão iguais as suas flores.

- Mommy, você esteve chorando? – perguntou a pequena Violet, apertando os seus estreitos olhos.

- No. Not anymore. – respondeu Megan, ensaiando um pequeno sorriso enquanto apertava o nariz da filha.

Megan constatou que Rosa estava tão silenciosa quanto costumava estar o seu pai quando meditava em algo importante acabou perguntando à garota o que se passava.

- Tia, o meu pai pode ouvir a gente? – perguntou a criança.

- Sure, my love.- respondeu a loira, afagando os cabelos dela – Se você quiser pode falar com ele agora.

Abraçando as garotas, o coração de Megan se aqueceu à medida que Rosa falava:

- Papai, eu sinto muito a falta do senhor, mas a tia Rita me explicou que você não está sozinho. Ela disse que o senhor está no céu com o meu avô Jorge, a minha avó Rosa e o Linus.

A pequena Rosa parou e se encaixou no peito de Megan antes de continuar:

- Eu também não estou sozinha. A tia Megan veio tomar conta de mim e eu ganhei uma irmã, a Violet . Às vezes a tia Megan fica zangada quando a gente faz bagunça, mas depois ela vem fazer bagunça com a gente também. Ela joga muito mal futebol, mas ela faz uns cookies de chocolate muito bons e ela vem nos dar um beijo de boa noite antes da gente dormir. O avô Jonas disse que ela era meio maluquinha, mas eu gosto muito dela. E eu também gosto muito de você, papai.

Megan não se conseguiu segurar mais e abraçou as crianças com força. Ali estava a família dela. Atrás delas, um pássaro pendurado num ninho numa frondosa árvore alimentava os seus filhotes e se ouvia chilrear.

Enchendo as crianças de beijos, a bad girl incitou as garotas a se despedirem de Davi até a uma próxima visita.

Levando as garotinhas pela mão até á saída do cemitério, Violet já pedia à sua mommy para passar pelo shopping para comprar mais alguns videogames para a sua extensa colecção. Raça da garota que já era uma nerdzinha em potência.

Megan sorriu, mas já tinha outros planos. Quando confrontada pela filha de sangue e pela filha de coração perguntando para onde é que iam, pela primeira vez em muito tempo, a loira tinha a certeza da felicidade na resposta:

- Home.

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