Prólogo

Amposta, Catalunya

1 de Novembro de 1724

I

— Permissão, Interventora! — disse um homem de armadura vermelha como sangue, batendo continência para uma mulher vestida de camponesa.

— Eu não sou a Interventora ainda, Nacho! — respondeu a camponesa.

— Senhorita Meritxell, com todo o respeito, Enric Miró não vai durar muito e… Nem sequer eu considerei o homem como ser humano um minuto sequer! — respondeu Nacho, um pouco nervoso. Meritxell sorriu.

Nas margens do rio Ebro, Meritxell Puigdemont, uma mulher de cabelos loiros escuros e olhos cinzas, lavava a roupa quando foi interrompida pelo homem de cabelos castanhos e olhos cor de amêndoa. Ignacio González era Interventor de Castela há dez anos e aluno da antiga Interventora, Luna Hernandez. Naquele momento, ele deveria estar em Madrid com seu mestre, Enric Miró, Mas estava com ela nas margens do rio. Alguma coisa deveria ter acontecido.

— Nacho, está tudo bem em Madrid com o Enric?

— O velho quer vê-la… Eu estava trazendo-o…

— Ele já voltou pra Vilanova então…

— Um braço dele caiu e… Acho que o resto do corpo não dura muito…

A loira ficou séria, fitando o horizonte. O mestre padecia de uma doença degenerativa horrenda e incurável. A qualquer momento, ele poderia morrer e Meritxell deveria assumir todas as responsabilidades. Pensou no que fazer e tomou uma decisão rapidamente.

— Eu já vou… — disse Meritxell. Asas transparentes vermelhas apareceram nas costas dela e as roupas de camponesa viraram uma armadura vermelha como sangue de imediato. Bastou bater as asas para dar um salto nos céus.

II

Vilanova i La Geltrú, Catalunya

Mesmo dia.

— Sabia que os comuns chamam o dia de amanhã de dia dos mortos? Não sou um homem morto. Encontrei um jeito de acabar até mesmo com a própria morte… Mas ainda preciso de você, minha querida Txell…

Sentando numa cadeira do lado de uma árvore, falando com uma voz rouca, estava Enric Miró, Interventor da Catalunha e comandante da Ordem do Dragão. Meritxell estava espantada com o que via. O rosto do homem estava roxo, e a pele descascava como cera. A armadura vermelha como sangue estava atrás dele, mas a capa, sinal da autoridade do Interventor, estava em suas mãos.

— Txell, vem aqui…

— Sim, senhor… — A loira se ajoelhou diante dele, e Enric usou suas últimas forças para colocar aquela capa em volta do pescoço dela. As mãos dele estavam tão finas e enrugadas quanto as mãos de um leproso idoso.

— Agora, você é a Interventora da Catalunha no meu lugar, mas isso não acaba aqui… Depois que eu me for, você tem que destravar as esculturas do Quetzalcoatl e do Viracocha em Madrid, aquelas esculturas trazidas da América há muito tempo pelo Lluís Soler… Só você pode fazer isso… O velho Oriol colocou um selo, me impedindo de ter acesso ao poder da Ordem…

— O senhor tem certeza disso?

— Eu vejo a hesitação nos seus olhos, mas não precisa se preocupar… Pois esse é o nosso destino, Txell! Seu pai ficaria orgulhoso disso!

Meritxell ficou em um silêncio tenso diante das palavras dele.

— Imagine poder se vingar de todos aqueles que traíram-no em Girona há dez anos atrás? — disse Enric, com um sorriso plástico no rosto. A mulher se calou.

— E tem mais motivos pra você continuar com o plano: mandei o Jaume, a Sara e o Arnau pro Japão. Nenhum deles voltou e você já sabe o que isso significa…

Meritxell levantou-se de um salto quando recebeu a notícia.

— Você vai ter que procurar novos sub interventores… Quando isso acontecer, a Ordem já vai ter se tornado a Torre Negra e a obra do velho Oriol finalmente vai estar pulverizada! — disse Enric. Ele apertou a mão cadavérica com tanta força que os ossos dos dedos trincaram e se romperam, parando no chão.

— Meu senhor… Essas cartas Clow são uma loucura!

— Elas são nossas, Txell! É a sua missão como Interventora ir atrás delas! — respondeu Enric, soltando uma golfada amarela que nem Meritxell soube dizer se era sangue ou alguma poção que ele havia tomado.

— Meu tempo já acabou… Eu já dei o recado… O corpo morre… Mas o espírito vive!

Do corpo semimorto naquela cadeira, uma aura azulada, parecida com um fogo fátuo, se levantou de lá. De repente, a aura tomou a forma de seu mestre Enric, rejuvenescida dez anos, antes de ele ser afetado por aquela maldição. Ele sorria. Os olhos claros, os cabelos loiro penteados de lado, o ar sedutor. Era um homem muito bonito quando viveu,as que por conta de suas ações morreu naquele estado deplorável. Naquela forma astral, seu mestre falou com ela:

— Eu vou dormir um pouco, Txell. Em breve, nos encontraremos… — disse Enric. A aura azulada queimou o corpo, a cadeira e até mesmo a árvore próxima onde repousava. Naquele fim de tarde de véspera de finados, o azul da chama formava uma imagem sinistra, fundida com o pôr do sol naquele descampado desolado.

III

Girona, Catalunya

3 de novembro de 1724

— Você não vai seguir o que ele disse, não é, Meritxell? Sei que é uma insolência eu me dirigir à senhora dessa forma, minha superior, mas é um absurdo ir atrás das cartas! Unir a Ordem do Dragão com essa Torre Negra que ele criou e…

— Calado, Nacho! Não quero ouvir mais um pio a respeito dessa “Torre Negra!” — disse Meritxell, séria que só.

Estavam em Girona, Norte da Catalunha. Ajoelhada diante de uma lápide dentro de uma espécie de capela, ela rezava. Na tampa da lápide, se lia “Josep Puigdemont — Soldado, Ferreiro e Gironês. Caído por Deus e pela Catalunya (1681-1714)”. Ele era o pai de Meritxell.

— Minha senhora, eu não sabia que seu pai era uma separatista… — disse Nacho. Meritxell olhou feio para ele.

— Desculpe-me, mas eu tenho que falar algo! Eu declaro formalmente guerra contra a senhora se continuar as ideias de Enric Miró! Uma pessoa que não tinha amor nenhum pelos nossos valores, mas sim, pelo poder! Morreu vítima da própria bruxaria dele!

Meritxell não falava nada, apenas fazia uma oração silenciosa para a alma do pai.

— Sabia que seu pai pode se levantar dessa cripta a qualquer momento, bastando só uma ordem da Senhora? Ele me contou tudo! Um homem que brinca com a morte e com os mortos é um homem desprezível!

— Meu pai não vai se levantar mais…

A Interventora abriu os olhos, e uma lágrima vazou dos olhos dela quando tocava o nome do pai, escrito em baixo relevo naquela tampa de mármore.

— Você pensa que eu não sei disso? — disse a Interventora, com a voz embargada. — Só seu eu fosse louca por querer um poder tão sinistro desses pra mim!

— Minha senhora, está dizendo que… — disse Ignácio. O Interventor de Castela ficou tão espantado com o “não” dela que perdeu o equilíbrio e quase caiu.

— Essa busca pelas Cartas Clow acaba agora! Jamais vou dar meus poderes para a Torre Negra!

— Minha senhora… Eu estou mais aliviado! Mas… Eu já aviso que… Pode ter consequências… Os capangas do Enric podem vir atrás da gente… e… — disse Ignácio. Ele estava tão contente com o que ela dizia que se engasgava e misturava as falas.

— Você é um homem ou um rato? Eu tenho uma penca de bananas a minha disposição na Ordem agora é?

O Interventor de Castela calou-se.

— Pois que venham! Eu não seria a Interventora da Ordem se eu ficasse com medo deles!

Nacho González ficou a lança que estava em suas mãos no chão da capela e se ajoelhou diante da mulher.

— Agora eu sei que tu és a verdadeira Interventora da Ordem!

Meritxell olhou para o horizonte e sorriu, com os cabelos loiros escuros voando ao vento.

— Meu pai não teve medo nem da Neus Artells com as cartas Clow e tudo mais, porque eu temeria esses capangas?

Continua…