Capítulo 71

Precisamos da sua ajuda…

I

Salamanca, Espanha

2 de agosto de 2017

O pátio da Universidade respirava história. Aquela construção em estilo gótico do século 12 lembrava muito as obras de Gaudí do século 20 que ela viu em Barcelona. Como se lembrar da cidade condal fez um efeito e tanto nela! Olhava para o celular com uma cara de sonsa que fez a outra pessoa do outro lado da tela chamar a atenção.

— Sakura, você está escutando o que eu tô falando? — disse o professor Imanol.

— Sim, sim, sim, ‘fessor! Pode continuar a falar! — disse Sakura, se recuperando do susto. — É que eu tava me lembrando dos tempos que eu frequentava a facul…

— Entendo… Cadê o Kero?

— Mandei ele pra Madrid… Aconteceu uma coisa feia por lá faz uns dias… Tô preocupada… — disse Sakura. O professor Imanol já sabia do que se tratava e não fez mais perguntas.

— Voltando ao assunto, eu sei que você sente saudades disso tudo, mas por favor, não perca o foco, está bem?

— Tudo certo, ‘Fessor! Vou continuar a leitura dos livros aqui e mais tarde eu passo pro Senhor as respostas do simulado que o senhor mandou por e-mail…

— Ok, continue assim, Sakura, você está indo bem… Não deixe nada perturbar sua paz…

— Faz um ano que eu venho lutando contra isso , acho que já tô acostumado… Até, 'fessor… — disse Sakura, finalizando a videochamada. Tornou a colocar a cara no livro de medicina e começou a fazer algumas anotações.

De repente, Sakura sentiu uma energia estranha atingir a cabeça.

“A gente tá te esperando…”

— Hoe? Quem é? — perguntou a Cardcaptor. Um grupo de estudantes mais jovens, que estava ao lado da mesa de Sakura, olharam para a menina espantados.

“A gente tá te esperando… Aqui…”

Sakura fechou o livro e colocou na mochila. Levantou-se da cadeira e perguntou para a voz:

— Estão esperando onde? Onde é aqui?

“Aqui…”, foi tudo o que a voz disse. Sakura guardou a mochila no armário, deixou-se guiar pela intuição e continuou a caminhar. De repente, enquanto se afastava, duas mãos agarraram-na pelo ombro e ela foi alçada ao ares, como se tivesse sido capturada por um pássaro.

— HOEEEEE!!! — exclamou a cardcaptor.

II

— Me coloca no chão! — dizia Sakura, agoniada. Por mais que perguntasse, por mais que falasse, aquela criatura não respondia uma palavra. Um soldado de armadura vermelha como sangue a segurava no ar. Não dava para ver quem era, pois um capacete cobria toda a cara da pessoa e a armadura estava no corpo todo, além de uma capa enorme com uma cruz dourada num fundo azul nas costas impediam que Sakura pudesse fazer qualquer identificação de quem se tratava. A única coisa que conseguia ver era um longo cabelo castanho cacheado que saía do capacete. Com certeza, era mulher, mas ela também era uma mulher e não tinha os cabelos tão largos assim. Tudo o que restava a fazer era esperar.

Pensou em resistir, pensou em lutar, mas sua intuição dizia para ela ficar tranquila e se deixar guiar por aquelas mãos e por aquela armadura vermelha que tanto odiava.

Enquanto pensava, Sakura se viu diante de um rochedo e uma praia. Conhecia aquele mar, estava na baía de Biscaia. Fazia tanto tempo que não via o mar, em quase um ano perambulando pelo interior da Espanha, que já tinha se esquecido até mesmo do azul dele. Evitou a água por temer ser descoberta, mas agora estava sendo enviada para a boca do lobo que tanto temeu.

Lentamente, foi pousando na areia como se estivesse passeando de asa delta por um longo tempo. Na praia, um outro soldado de armadura vermelha com capacete e capa estava a espera. Assim que pousou, tirou a chave do lacre do pescoço e sacou o báculo da estrela sem hesitar. Os dois soldados de armadura vermelha levantaram as mãos vendo o báculo apontado para eles.

— Quem são vocês? Onde é que eu tô?

— Playa de la Ñora, perto de Gijón, minha casa, Sakura… — disse uma voz de mulher, tirando o capacete. Era a mesma pessoa que carregou Sakura durante a viagem. Sou Jessica Gomez, Interventora das Astúrias.

— Bem que eu estranhei que a gente tava andando em linha reta o tempo todo… — comentou a Cardcaptor.

— Sou Lorenzo Mata, Interventor das Ilhas Canárias. Eu também tô fugindo, Sakura, acusado de tráfico pela dona Beatriz… — disse o outro soldado da Ordem, retirando o capacete. Era um rapaz jovem, barbudo e de cabelos castanhos como a mulher, iguais ao seu cabelo.

— Podemos conversar, Sakura? Você pode ter certeza que somos todos perseguidos… — disse Jéssica, sorrindo para ela.

III

Era meio dia. Os três voaram para o alto de um rochedo próximo, que Sakura tinha visto assim que chegou. Um homem de cabelos castanhos ofereceu para Sakura um sanduíche, mas ela rejeitou, um tanto arisca, olhando desconfiada para os dois Interventores.

— Me desculpa, Sakura, se o jeito que a gente encontrou pra te trazer pra cá foi um tanto busco, mas minha mulher, nosso amigo e eu não encontramos outra forma de conseguir falar com você… — disse o homem que serviu o sanduíche, um homem muito mais jovem que a mulher de cabelos castanhos ondulados chamada Jéssica.

“Esse moleque é mais novo que ela e já chama de ‘minha mulher?’ A Tomoyo tem razão, o mundo mudou muito e eu tô precisando dar uma atualizada”, pensou Sakura, Lembrando-se da diferença de idade entre Gotzone e Syaoran. Lembrou-se também do poder de manipulação da loira quando viu o rapaz pela primeira vez, tão jovem quanto os estudantes universitários de Salamanca.

— Você é…

— Paco López… Sou casado com a Jéssica faz um ano. Mas namoro com ela desde os doze.

— Doze anos! Meu Deus! — disse Sakura, chocada, lembrando-se de Rika e do professor Terada. — Mas você é tão novinho e ela é uma coroa! — disse Sakura. Jessica apareceu e Paco se afastou um pouco.

— Bem… Depois eu falo de mim… O que eu preciso agora é falar de você… E da sua ajuda, Sakura… — disse Jessica, se sentando na frente da Cardcaptor.

— Que ajuda é essa, hein? — começou Sakura.

— Há um ano, a Torre Negra está procurando por você e a chave do lacre. Eles não conseguiram nem um, nem outro, pelo que eu vejo… — disse Lorenzo.

— Bem… Isso não significa que eles não tentaram… Eu tô fugindo um ano na Espanha por causa disso, dessa perseguição toda. Cheguei até a conhecer a França e Portugal! Pode isso? — disse Sakura.

— Sei. Imagino que a Torre não tem fronteiras. Seja aqui na Espanha, ou até o fim do mundo, eles vão atrás de você, correto? — perguntou Lorenzo. De alguma forma, Sakura se sentia segura com ele.

— Sim, não é a toa que eu continuo treinando até agora pra acabar com a raça deles! — disse Sakura, socando os punhos.

— Graças aos seus treinos, a gente conseguiu te encontrar, não é, Jessica? — disse Lorenzo.

— Graças aos meus treinos? — perguntou Sakura, desconfiada.

— Se lembra daquela luta que você teve contra o Victor há um ano atrás, em Bilbao? — perguntou Lorenzo. — Você conseguiu parar o demônio pela primeira vez na vida…

— Sim, mas… Aquilo foi um golpe de sorte… — disse Sakura, envergonhada.

— Se não fosse por aquilo, a gente não teria te encontrado hoje… — disse Jessica.

— Vacilei então… — comentou Sakura.

— Não, não… Aquilo não foi vacilo nenhum… Olha só: A Torre Negra tem muito poder e ela conta com esse poder para tentar te encontrar. A estratégia dela é montar uma “teia de aranha” em toda a Espanha e tentar ver se você toca em algum fio. A partir daí, se um fio for rompido e mais outro também, ela vai começar a fechar o cerco sobre você. Entende? — explicou Lorenzo. Sakura se calou. — Pelo visto, você já deve ter percebido isso, não é? — perguntou Lorenzo. Sakura fez sim com a cabeça. — Então! Quando você tocar os “fios”, os batedores da Torre vão atrás de você e você trata logo de se esquivar deles… Eu já penso um pouco diferente… Sou mais estilo CSI, sabe? Eu medi a frequência da energia mágica que você disparou contra ele e tentei sentir uma presença mágica similar. Quando usamos magia, liberamos um comprimento de onda só nosso que é fácil de reconhecer, se estivermos atentos e treinados, é claro. Passei um ano até sentir aquele comprimento de onda e, há três dias atrás, eu te encontrei em Salamanca.

— Puxa vida! Deve ter sido na hora que eu tava treinando! Vacilei feio!

— Não vacilou não… Você foi muito fria e calculista durante mais de um ano… Você foi muito inteligente escapando deles, escondendo seus poderes enquanto treinava sabia? A gente tem que tirar o chapéu pra você, Sakura… — disse Lorenzo, tocando na mão dela. A jovem médica ficou lisonjeada com o elogio dele, mas fez de tudo para disfarçar — Sabia que você está mais forte que há um ano atrás?

— Pois é, você também fala como um médico, sabia? É o mesmo método que a gente usa nas biópsias… — disse Sakura.

— Eu sou médico de profissão! — explicou Lorenzo, sorridente.

IV

Um homem de armadura negra olhava para o penhasco onde estava Sakura, Lorenzo e Marcela à distância, a partir de outro penhasco. Uma outra figura de armadura negra, mas com o rosto coberto por um capacete, se aproximou do homem.

— Não sabia que já tinham encontrado a Sakura antes de nós… — disse o homem.

— Senhor Victor, eu só soube que o Lorenzo e a Jessica estariam aqui. A Sakura foi uma surpresa até pra mim… — disse a figura de capacete, com voz feminina.

— Ou estão muito desesperados ou são muito tolos de aparecer com ela aqui… Seja como for, não vou sair de mãos abanando aqui hoje… — disse Victor Delgado. Ele deu um salto no vazio e ficou planando.

V

Depois de um tempo, Sakura aceitou o sanduíche que Paco, o companheiro de Jéssica, havia ofertado. Enquanto comia, ela escutava o que a Interventora e Lorenzo tinham a dizer.

— Então, vocês precisam da minha ajuda, certo? — perguntou Sakura, mastigando.

— Sim, e muito. Você não sabe como as nossas vidas estão em perigo, como a Ordem inteira está em perigo. — disse Jessica.

— Já morreram dois Interventores, Sakura, fora o massacre de interventores que aconteceu na Andaluzia há um ano… — explicou Lorenzo. Sakura terminou de comer o sanduíche e limpou as mãos na roupa enquanto engolia a refeição.

— Quando vocês falam de massacre… Eu me lembro da professora Begoña… Eu fui injusta com ela quando eu questionei a ajuda que ela me deu e só depois de um ano, eu paro pra pensar direito… Agora ela não tá aqui mais… Acho que foi meio errado esse negócio de me sequestrar, mas… Eu não quero cometer o mesmo erro duas vezes… Eu topo ajudar vocês! Quero saber… Se eu fiquei forte mesmo depois de um ano treinando… — disse Sakura, estendendo a mão para os dois. Lorenzo cumprimentou-a entusiasmado. Jéssica pulou de alegria.

— Que bom! Que bom mesmo! Né, amor? Amor? — disse Jéssica, chamando o companheiro. Olhou para os lados e viu-o cabisbaixo, segurando com força o bastão vermelho, a arma dos Interventores das Astúrias. Do nada, ele pegou o objeto e arremessou-o para longe no penhasco, com o rosto coberto de raiva.

— Paco! O que é que você fez? — perguntou Jéssica, assustada.

— Não pode ser… — disse Paco.

— Esse cara pode ser um comum, mas vejo que ele aprendeu a sentir a presença dos outros muito bem… — disse Victor, com o bastão grudado no ombro. Ele se erguia vagarosamente do penhasco, contemplando os quatro. O ex-interventor de Castela arrancou o bastão do ombro e arremessou aos pés de Paco. Ele arregalou os olhos, chocado — Eu devia te arrancar a vida depois disso, mas vou te deixar vivo por um tempo, até entender como um comum conseguiu desenvolver a capacidade de sentir presenças… — Continuou o homem de armadura negra. Ele voou velozmente contra Paco e acertou um soco no queixo dele. O rapaz caiu na grama inconsciente.

— Paco! — gritou Jéssica, correndo para acudir o companheiro caído. Ele não reagia mais.

— Você gosta dele? Aproveite, é a última vez que vocês se falam… — disse Victor, sacando a arma que carregava nas costas.

Lorenzo ergueu a mão e um martelo gigante, a arma lendária das Ilhas Canárias, voou para ela.

— Veremos, Victor! Nós não vamos vender derrota fácil! — disse Lorenzo, rangendo os dentes.

Sakura agarrou o báculo firme nas mãos.

“Não posso deixar ele ficar com a Chave do Lacre! Não posso! Kero-chan, onde é que você tá nessa hora que eu preciso de você!”, pensou Sakura.

Continua…