Capítulo 83

Eu sou a próxima!

I

Donostia, Euskadi, Espanha

3 de agosto de 2017

A televisão de sessenta polegadas na frente deles não era uma peça que se encaixa facilmente na decoração daquela sala de mais de quatrocentos anos, mas era o único recurso com que podiam contar para se comunicar com a plena certeza de que não haveria ninguém usando magia para bisbilhotar o que estavam falando.

— Então você enfrentou a Dona Beatriz mesmo? — perguntou Tomoyo, de uma das pequenas telas da televisão. Ao lado dela, estava Felipe e Marcela, advogada do Rei, sósia de Sakura e amiga de Tomoyo. O trio fazia a videochamada desde Madrid — Você não tem medo, Gotzone?

— Medo, eu? Medo nenhum, dela! Até que foi mais fácil do que com a Sakura — respondeu a loira. Era ela quem estava naquela sala. Ao lado dela, estava Zigor e Ester Ramírez, a nova interventora de Aragão. Depois que Gotzone falou, todos fizeram silêncio.

— Goti, perdoe-me discordar de vocês. Eu vi o que aquele homem era de perto. Uma coisa dessas não se esquece com o tempo. O que você fez foi uma imprudência das grandes! Imagina se Dona Beatriz resolve ferrar com você? — perguntou Ester, que estava ao lado dela. O resto do pessoal na videochamada concordou e todos fizeram barulho. Dom Miquel chamou a atenção do povo de volta.

— Pessoal, vamos nos acalmar um pouco. Devemos nos lembrar que eles perderam o Ignacio e o Victor ontem. Eles devem estar sentindo essa perda e acho que não vão agir por um tempo… Vão se reorganizar, isso é certo, mas não acho que Dona Bea esteja com ódio ou rancor. O que ela disse pra você é mais assombroso que qualquer briga de magos! — disse Miquel Tossel, o quadradinho ao lado de Felipe e Tomoyo. O religioso falava direto de Barcelona.

— Isso é verdade! Mesmo não fazendo nada, eu já encaminhei a gravação do que ela falou pra mim pro Conselho Europeu. Eles vão me receber daqui há uma semana — disse Gotzone.

— Eu não apostaria nisso! Eu não vou acreditar nessa trégua que vocês vivem sonhando! — disse Sakura, no quadradinho ao lado de Dom Miquel, em localização desconhecida. Kero estava com ela — É melhor a gente se lembrar que aquela Maitê ainda tá por aí! Ela tem um escudo e fica cortando o pescoço dos outros! Eu que não quero ser a próxima vítima dela!

— Isso é verdade! Em poucos dias, eles mataram cinco Interventores da Ordem e incapacitaram uma! Estavam prontos pro massacre mesmo faz tempo! — disse Felipe.

— Cinco? Mas a Idoia tava viva há pouco… — disse Gotzone, assustada.

— Estava… Ela acabou de morrer na UTI… Faz uma hora… — disse Marcela.

Todos ficaram em silêncio. Gotzone olhou para Zigor com uma pergunta que já estava estampada em seus olhos.

— Sei que você quer saber da armadura… Ela chegou no palácio faz uma hora. Eu só não te contei antes por causa da nossa videoconferência… — explicou-se Zigor.

— Eu te entendo, meu mestre… — disse Gotzone, com a mão na testa, como se sentisse uma dor de cabeça.

— Eu só queria evitar que você tivesse mais preocupações do que as que você já tem. Você acabou de mandar o Santiago pra Cantábria, não queria que você pensasse em uma sucessão às pressas agora… — explicou Zigor.

— Bem… Eu vou ter que pensar nisso de qualquer jeito… Madrid não pode ficar sem Interventor… — disse Gotzone.

— Goti, precisa pensar nisso mesmo? — perguntou Kero. Sakura ficou espantada com a intimidade com que ele dirigia a palavra para ela.

— Preciso sim. Precisamos pensar, todos nós sem exceção, que somos peças descartáveis nessa guerra e que outros vão continuar a luta pela gente. É isso que eu vi nos olhos da Laura antes dela morrer, é isso que eu quero que vocês pensem. Quero que vocês pensem que eu sou a próxima dessa lista! — disse Gotzone, com um olhar profundamente melancólico.

Todos ficaram sérios mais uma vez. O Cardeal e El Rey tentaram dizer alguma coisa mais otimista, mas Sakura foi mais rápida:

— Pra mim, não faz diferença nenhuma isso… Eu não sabia o que era maldade até eu conhecer vocês… Gente tentando roubar minhas cartas Sakura, que tanto trabalho tive pra capturar… E ainda ‘tô tendo… Não sei pra o quê continuar existindo esse negócio de Interventor… Qualquer hora aparece outro maluco na minha vida ou na dos meu filho, querendo as cartas baseado nesse pergaminho de 300 anos! Daí eu me pergunto: pra que continuar defendendo essa Ordem que só me trouxe dor de cabeça? — perguntou-se a Cardcaptor. Todos ficaram chocados.

— Sakura, não seja assim! — repreendeu Kero.

Dom Miquel e Felipe tentaram falar mais uma vez, mas Gotzone tirou a resposta da ponta da língua mais rápida que um raio.

— Eu tô vendo… É a mínima resposta que eu espero de uma pessoa que não tem vontade nenhuma de pegar um livro e estudar, nem sequer conhece meu trabalho, nem nunca se interessou em conhecer a história da Ordem! Só faz alguma coisa se tiver apaixonada pela pessoa, como quando aprendeu a cozinhar! Conta outra! — disse Gotzone. Sakura entendeu a indireta.

— O que é que você falou aí, hein? — questionou Sakura.

— Sakura, mais respeito! — suplicou Tomoyo.

— Sem papo com você! Preciso achar um Interventor pra Madrid já! Vou ver se a Cecília Ibarretxe aceita… Ela sempre quis ir pra Madrid mesmo… — disse Gotzone, dando as costas para a televisão.

— Hey, volta aqui! — disse Sakura. Gotzone não escutou. Já tinha fechado a porta atrás dela.

II

Palácio flutuante da Ordem

Mesma hora…

O livro das Cartas Sakura era um objeto mágico cheio de segredos. A acólita, com capuz e capa preta, na frente daquele trono de pedra e vidro, não conhecia nenhum deles. Muito menos o homem de armadura vermelha da Ordem sentado naquela cadeira. Ele jogou o livro na cara da mulher, humilhando-a. Maitê Ferrer, irmã do Rei, olhava a cena ao lado dele.

Quando bateu na cara dela, o livro se abriu, revelando uma série de cartas transparentes, sem nada impresso nelas, lisas como o vidro do chão do pátio, que ela mesmo havia criado. Para falar a verdade, não havia nenhuma carta mágica mais lá.

— O que você tem a me dizer sobre isso? Entregou as cartas Sakura na mão dela e colocou esse embuste no lugar! Nem magia eu sinto nisso aqui! — disse o homem, sério.

— Meu senhor… Eu mesmo não entendo o que aconteceu! A Sakura deve ter arranjado um jeito de recuperar as Cartas! Ela usou elas quando lutou contra o Victor ontem! Só pode ser! — disse a mulher, escondendo os olhos no capuz.

— Achou um jeito? Mas que merda de jeito é esse? — perguntou o homem, gritando — Eu nunca vi que essas cartas saíam à vontade do livro! Elas ficaram presas por trezentos anos e agora saem livres? Alguém ajudou! — O homem deu um soco em um dos braços do trono e parte do vidro do chão se rompeu. Chapas de vidro, presas nas paredes das torre, desmoronaram, levantando uma poeira brilhante e sufocante no ar.

— Senhor… Ela pode estar certa. As cartas ficaram 300 anos presas no livro até a Sakura abrir o livro. Quando ela capturou as cartas, ela estabeleceu um laço com elas… O mesmo dá pra dizer do Syaoran… Ele consegue usar as cartas tranquilamente… Eu tiro pela nossa luta que a gente teve no País Basco… — explicou Maitê.

— Tá querendo dizer que essas cartas tem personalidade? Como pode uma arma se rebelar assim? — perguntou o homem, inquieto.

— É melhor a gente não ignorar isso. A gente não sabe ainda o alcance dos poderes do Mago Clow… Pelo que as nossas pesquisas indicam, essas Cartas tem personalidade sim… — explicou Maitê. O homem ainda estava furioso.

— Que seja, que seja! Você ainda é importante pra gente! Vou te deixar você continuar secretamente no ministério até você conseguir essas cartas de volta… Mais uma falha e você está perdida! Ouviu bem? — disse o homem, sério.

— Sim, mestre…

— Mas já te digo que vou te apartar da linha de frente dessa batalha… Você vai ficar nos bastidores…

— Entendido… — disse a mulher, se retirando.

— E quanto a mim? Eu ainda posso acabar com a Gotzone se o senhor quiser! Já matei três interventores só essa semana, posso matar mais! O Lorenzo, a Nerea, a Jéssica Dragão… Qualquer um!

— Você vai ficar aqui, Maitê, esperando pelo Felipe…

— Ficar aqui? Você tá louco? A Ordem está se reorganizando agora! Você acredita que até arranjaram alguém pra ficar na Cantábria?

— Eu sei disso, por isso, você vai ficar aqui, treinando, esperando o momento de acertar as contas com o Felipe… Quando a hora chegar, você vai hesitar? — perguntou o Interventor comandante, levantando-se do trono e olhando profundamente nos olhos azuis dela. Maitê baixou a cabeça de vergonha — Pensa que eu não sei o que aconteceu em Madrid? O antigo rei da Espanha aparecendo do nada na sua frente?

— Senhor! O que aconteceu em Madrid foi uma fatalidade! Você sabe como a Sophia é especial! Ela me iludiu com aquela visão do meu pai! Tudo não passou de ilusão!

— Se você quiser ser a Rainha do futuro Império Espanhol, lembre-se de não sentir tanto amor assim pelo seu pai fraco ou ficar caindo em ilusões idiotas de uma garotinha… — disse o homem. Maitê ficou incomodada.

— E se você quisesse que o “plano” dê certo mesmo, tinha que ter que acabado com a Gotzone desde o começo! — respondeu Maitê.

— Eu sei disso… Eu sei disso… Vou tratar de corrigir meu erro agora! — disse o Interventor. Asas transparentes negras apareceram em suas costas e ele voou pelos céus escuros e tempestuosos daquela noite. Maitê ainda o olhou com raiva no olhar.

— Depois eu que sou a incompetente… — comentou a princesa.

Escondida em uma das paredes das torres do pátio, a acólita observava tudo.

— Eu vou atuar nas sombras sim… Vou atuar mesmo… Fica só vendo… Não pensa que eu vou me esquecer dessa humilhação… — disse ela.

Continua…