Acordei estarrecido com o barulho que vinha lá de fora. Bocejei cansado, ainda não adaptado com estes sons.

Aqui no prédio têm estes benditos gatos que pulam pelos telhados, e depois cismam de arrumar abrigo nas telhas da minha casa.

Arrependo-me de ter alugado este espaço. No começo foi um bom negócio, um lugar pequeno, no alto de um prédio e barato. O prédio estava bem conservado, e este espaço era uma casinha lá em cima, sendo assim, não precisaria me preocupar com vizinhos.

Porém, toda noite os animais batiam ponto aqui. Por um lado os entendo, afinal, tem coisa melhor do que observar a noite? A sensação de liberdade, a cidade em silêncio, o ar mais limpo, algumas luzes acessas...

O barulho começou a ficar mais alto. Levantei-me da minha cama e fui assusta-los. Abri a porta devagar, e logo senti o vento gelado da noite. Dei alguns passos pra esquerda, e observei meu telhado, não tinha nenhum gato. Já ia voltar a deitar quando percebi uma sombra.

“Moça, sai da sacada
Você é muito nova pra brincar de morrer
Me diz o que há, o que que a vida aprontou dessa vez”

–EI, o que você está fazendo ai cara? Sai daí, isso é perigoso! – Comecei a me aproximar devagar, falando exasperado.

Havia um homem sentado no parapeito, mexia seus pés para o lado da rua, segurava firme no muro e observava tudo lá em baixo.

Seu corpo era bem magro, seus pulsos finos, e os ombros levemente encurvados. Parecia segurar algo.

–Não se aproxima! – Disse num sussurro baixo.

–Sério, saí dai! O que você está fazendo ai? Como veio parar aqui em cima? – Falei irritado.

–Não é óbvio? Vim me suicidar. – Dizia como se não fosse nada. – Um conhecido mora neste prédio.

–Cara nada é motivo suficiente pra tentar se matar! – Rolei os olhos.

–Então você não conhece a vida! – Debochou.

–A vida é uma lição companheiro, as coisas acontecem para crescermos.

–A vida é uma merda! Se faz realmente algo para crescermos, por que depois não nos dá uma recompensa?

Comecei a pensar no que dizer.

–Você sabe o que é viver? Ou você só existe? Para querer tirar sua vida você primeiro tem que saborear o que é viver! – Tentei usar o discurso que sempre usava com meus amigos egoístas.

“Venha, desce daí
Deixa eu te levar pra um café
Pra conversar, te ouvir e tentar te convencer”

–Eu não estou aqui por que um ídolo morreu, por que meu namorado brigou comigo, ou por que tirei nota baixa! O meu motivo é com certeza maior que isso, eu desisti disso. – Apontou pra tudo a sua volta.

–Por que você não desce daí? Podemos conversar! Eu moro naquela casinha ali, podemos tomar um café. – Perguntei um tanto nervoso, estava seriamente com medo daquele desconhecido pular.

–Não, eu não quero. Vá embora cara, vai dormir! Provavelmente ao amanhecer você terá milhares de compromissos com a sociedade. – Gargalhou amargamente.

Mesmo com a recusa dele fui me aproximando do parapeito.

“Moça, não olha pra baixo
Aí é muito alto pra você se jogar
Vou te ouvir, e tentar te convencer
(Somos programados pra cair)”

–Podemos então conversar? – Estanquei no lugar, esperando sua aprovação.

–Não estamos conversando já? – Perguntou seco.

Fui até o parapeito, parando em pé do seu lado do estranho. Analisei bem a rua, lá embaixo tinha um fluxo pequenos de carro. Tomei coragem e me sentei em cima daquele parapeito também, só que morrendo de medo, por dentro eu sentia-me congelando. O medo de cair, o medo de o cara cair, e as luzes da cidade presenciando tudo silenciosamente, como se nos culpando por estar ali atrapalhando sua beleza.

–Por que vai pular? – Perguntei encarando seu perfil, finalmente vi o que ele segurava, era uma rosa branca. Ele arrancava algumas pétalas e jogava lá embaixo, vendo-as cair no asfalto.

–Por que está aqui? – Rebateu.

Pensei um pouco, eu realmente não deveria me importar com aquele cara. Não era nada meu, minha razão mandava-me entrar em casa e ligar para os bombeiros. Porém, meu coração se enchia de pena, com medo de eu entrar pra ligar, e ele simplesmente cair.

–Eu sou hemofílico... – Engoliu um pouco da saliva.

–Mas, as expectativas de vida de um hemofílico são grandes, não precisa se matar por isso. Um dia eu li que a expectativa de vida de um hemofílico é apenas inferior a 10 anos da dos Brasileiros.

–Vai me deixar terminar? - Disse com amargura. - Eu sou hemofílico, e num dos momentos que precisei de uma transfusão de sangue contrai o vírus HIV.

–Oh... Eu não achei que isso acontecia mais. Parece-me tão raro, hoje em dia eles checam os sangues... - Cocei minha nuca confuso.

–Nem eu acreditei. Eu estava de férias com meu namorado, levei um tombo, e fui pra um pequeno hospital da cidade, e eles estavam em falta de sangue. - Tossiu levemente, provavelmente pra esconder sua voz que já embargava. – Meu namorado era O-, então recebi o sangue dele. – Olhou novamente pra baixo.

–Não olhe para baixo, pode ser muita tentação. Seu namorado tinha Aids? – Não queria ver o menino se jogando.

–É óbvio, não? Nunca havíamos feito sexo sem camisinha, e naquele momento eu confiava tanto nele, nem pensei duas vezes. Eu só queria acabar com tudo aquilo e voltar a ter minha viajem com ele. Ele nem ao menos sabia que era portador do vírus.

–Sinto muito. – Me senti muito pesaroso por ele. Parecia que ele tinha minha idade, e já tinha passado por tanta coisa.

–Não acabou a história. Eu só tinha ele, só ele. – Sussurrou a última parte. - Ele descobriu a doença, e definhou aos poucos. Lembro que antes de morrer ele me disse que o que mais doía era a culpa. Culpa por me deixar infectado neste mundo... – Jogou mais uma pétala.

–Meus pêsames...

“Que a vida é como mãe
Que faz o jantar e obriga os filhos a comer os vegetais
Pois sabe que faz bem
E a morte é como pai
Que bate na mãe e rouba os filhos do prazer
De brincar como se não houvesse amanhã”

–Tem mais... Meus pais nunca me aceitaram por ser gay. Meu pai é um porco machista, que bebia e fazia barbaridades, chegou ao ponto de estuprar minha mãe uma vez. Já minha mãe foi zelosa comigo, sempre com medo de eu me machucar. Mal sabia ela que eu me feria por dentro todas as vezes que os via brigando, sempre que a via abaixar a cabeça pro meu pai.

–Eu... – Nem sabia mais o que falar, mas sentia toda aquela carga negativa e pesada que envolvia aquele moço.

– Então fiquei sozinho no mundo. Você não acha que isso basta para eu me matar não? A única vez que fui feliz foi com meu ex, Fernando sabia me fazer feliz. – Sorriu triste.

–Qual seu nome? – Olhei para ele, e finalmente ele olhou para mim.

–João. – Seus olhos estavam cheios de mágoa, medo, dor, tristeza.

–João, eu me chamo Hugo. E eu realmente quero te ajudar.

“Mas tudo bem, nem sempre estamos na melhor”

–Hugo não tem mais chances! Pode não ser neste prédio, mas vai ser em outro. Eu escolhi este pois é pequeno, a dor que sentirei vai vir rápido, e depois vai rápido.- Sua voz era monótona e distante, na rosa só tinha uma pétala.

–Eu quero te ajudar João, aceita minha ajuda. Vamos descer daqui, por favor. Ouvi seu desabafo, agora você tem que tomar um café comigo.

–Chantagens? Eu não te pedi para me ouvir. – Olhou novamente para baixo. – Sabia que mesmo se eu não morrer pela queda, eu morro por hemorragia? – Disse um pouco sádico.

–Não fale disso, não quero pensar em morte. Vamos, eu cuido de você.

–Ok, vamos!

–Sério mesmo? – Sorri de lado. Ele me observou.

–Você me lembra o Fernando. Está personalidade, a fisionomia... Ou talvez isso seja mais uma alucinação. – Sussurrou a ultima parte.

–Alucinação? – Perguntei confuso.

–Sim. Alucinação de fome.

–Ok, vamos entrar e você come algo.

–Vamos...

Virei-me devagar naquela mureta e aterrissei no chão.

–Todos nós morremos, e está é minha hora. Adeus Hugo, Olá Fernando. – Ouvi sua voz e me virei correndo, porém, já era tarde.


“Moço, ninguém é de ferro
Somos programados pra cair”

João caiu silencioso como um anjo, as luzes da cidade assistiram tudo, a noite o guiava, e meus olhos se perdiam naquela confusão de luzes e... pena. Da rosa sobrou apenas o caule.

Este é o último capítulo disponível... por enquanto! A história ainda não acabou.