Um mundo além do mundo

Um caminho de lâminas


Ismira desatou os cordões de sua camisa de couro e retirou-a livrando-se do desconforto de um dia inteiro. Pôs a veste em cima da cama e retirou as botas... Mais alivio.

A jovem levantou-se e postou-se em frente ao espelho, fazendo poses. Afastou os cabelos escondendo-os atrás das costas. Seus seios estavam maiores... cresceram sem que ela percebesse. Segurava-os em suas mãos, observando o tamanho que ganharam, surpresa.

Despiu-se por completo e foi até a banheira de pedra quente. Seu suspiro e sorriso foram longos quando deitou-se em meio à água que retirava o resto do peso do longo dia. Um longo, tenso e frustrante dia. Elva deixara o treinamento em magia de lado para pegar nas espadas, o que soou como uma boa ideia para a jovem, a princípio.

Depois de consecutivos duelos, suas articulações doíam, o que a fez desviar a atenção das dores nos braços, no tronco e nas pernas, causadas pela espada encantada para não cortar da feiticeira. Elva a fez realizar o encantamento de proteção nas duas espadas, e se houvesse algum erro, a responsável pelo cortes seria ela... por sorte a jovem obtivera êxito, o que a deixou orgulhosa.

Agora as manchas roxas e esverdeadas ganhavam sua atenção. Derramava água sobre elas com o cenho franzido, e os franzia ainda mais quando encontrava outra. Seus duelos nunca antes foram tão intensos.

Com que cara irei jantar hoje? Pensou ela enquanto derramava na pele o óleo de sementes que Sírin lhe dera, como quando criança. Ele passou a lhe dar quando ela, com nove anos, perguntou-lhe por que ele cheirava tão bem. O elfo lhe sorrira com dentes belos e lhe entregou o óleo de sementes. Na época ela não sabia, mas não era só o óleo que o fazia perfumado, e sim encantamentos. Irei jantar com a cara de quem devorará tudo. Ela decidiu, ignorando novamente os hematomas e voltando a relaxar na água.

Suas roupas novas eram variadas, e só agora ela trocava a camisa de couro que roubara em Yazuac... Ela sentia um apreço grande pela aventura que vivera no seu caminho até as montanhas, e não queria desfazer-se do “personagem” tão facilmente.

Escolheu uma camisa de grosso tecido amarelo com mangas compridas e uma saia de tiras de couro que batia em seus joelhos. Antes de deixar o quarto, calçou-se com sandálias de couro de cano curto. Ela decidiu expor as manchas do treino nas panturrilhas e canelas.

Sua espada relutava em sair de sua cintura. Desde que Elva fizera de sua antiga espada mil pedaços de metal apenas com um erguer de mão, ela não queria desfazer-se da nova. Ganhara um apreço estranho pelo objeto. Segurou firme o cabo e seguiu pelos corredores.

Ela procurava cumprimentar todos os anões por quem passava, mesmo os de cara fechada, e lidava bem com a falta de resposta... Ela apenas sentia-se obrigada a ser simpática depois de tanto tempo sem ter alguém para sorrir.

Ela encontrou Sírin e Hope sentados próximos de Orik que comia no salão especial. Não encontrou Elva e Senhor Gorjar. Sentiu-se à vontade para sentar-se com Sírin e Hope. Aproximou-se discretamente, observando o elfo e a Cavaleira conversarem com olhos vidrados um no outro. Sentou-se, tentando não observar, constrangida com a intensidade que conversavam.

Sírin voltou seus brilhantes olhos negros para a ruiva.

— Veja quem encontra-se recomposta. – Ele sorriu discretamente.

Ismira deu de ombros pondo os antebraços sobre a mesa e nada disse. O elfo cerrou levemente os olhos e ergueu o queixo, puxando o ar com o nariz.

— As sementes deveriam lembrar-me Ellesméra. – Disse ele. – Mas, em sua pele, o aroma me lembra Carvahall.

Ela olhou-o disfarçando surpresa com o pronunciamento e sorriu significativamente. Não pode deixar de transbordar emoções em seu olhar. O olhar de alguém afetado pela citação do lar.

— Vamos comer. – Disse Hope com uma voz cantarolante quando os pratos começaram a chegar.

Sírin serviu-se de pão e sopa de batatas que ele mesmo havia preparado. Ismira escolheu seguir a alimentação mais leve do elfo, servindo-se da sopa, com três cubinhos de batata.

Enquanto dissolvia a comida na boca, olhando para o teto, Ismira vagou novamente por Carvahall, pensando no que Sírin dissera. Eu sou o cheiro de Carvahall... O dia de deixar a montanha oca vagou por sua cabeça.

Imaginou-se cortando gargantas em seu lar enquanto provava a sopa da colher ruidosamente. Um sorriso faminto e frio lhe surgiu. Percebeu que Hope olhou-a de soslaio então franziu os cenhos, afastando momentaneamente os pensamentos.

— A sopa está deliciosa, Sírin. – Ela comentou, tentando sair de sua própria cabeça.

— Bem, isto é uma surpresa. – Disse o elfo afastando seu prato vazio. – Realmente nos desconhecemos neste último ano. – Ele levantou-se. – Aproveite a noite, Cavaleira, amanhã avançaremos no treinamento. – Disse ele sério para Hope, e deixou a mesa.

Ismira tentou-se a pegar uma costela de porco, mas controlou o desejo.

— Então... – Ela afastou o prato como fizera Sírin. – Ellesméra, não?

Hope olhou-a por um instante, muito quieta. Levantou-se, rodeando a mesa, e sentou-se do lado da mais nova.

— Apenas para pedir a ajuda dos elfos, Ismira. – Disse de olhos bem abertos, um tanto irritada. – Como irei recuperar Carvahall sem eles? – Ela suspirou. – Entendo que você não quer ficar aqui apenas aguardando, mas não posso leva-la, não posso correr o risco de perde-la novamente.

Ismira franziu os lábios.

— Acredita que é tudo o que eu possa fazer deixando este lugar? Acredita que sou tão fraca assim? – Levantou-se e a passos largos deixou a sala.

Afastava-se tentando não sentir raiva de Hope, tentando colocar-se no lugar dela, mas não era fácil. Seus passos eram apressados e...

— Ismira! Espere. – Hope a alcançou. – Não consigo compreender por que você insiste em seguir pelo caminho mais duro.

Ismira parou imediatamente com o pronunciamento e socou o rosto de Hope com bastante força. Franziu os cenhos balançando a cabeça de um lado para o outro e continuou sua caminhada.

— Quando você escutar melhor o que diz, venha falar comigo.

Ismira seguiu para as enormes escadas em redemoinhos, procurando afastar-se dali.

— Ismira... – Hope corria. – Espere, me desculpe, eu... – Ela segurou seu braço. – Você não pode me culpar por tentar. Não posso ordenar que faça algo, mas eu não podia deixar de tentar.

Ismira virou-se com os olhos pesados.

— Eu entendo Hope. – Ela franziu o cenho. – Tudo o que você perdeu... fez de você egoísta, agarrando-se a tudo o que sobrou.

Hope afastou-se para trás e segurou o cabo da própria espada com um rosto afetado. Seu queixo tremeu, mas ela relaxou e abandonou a espada na bainha. Virou-se e seguiu para longe a passos largos.

Ismira respirou fundo e escondeu o rosto nas mãos. O que eu disse... Ela continuou a subir as escadas em redemoinho, sentindo-se horrível.

Os corredores e os lugares desconhecidos da montanha eram pouco reconfortantes, mas estava servindo. Ela encontrou-se numa área escura de um corredor circular, e sem ninguém.

Ela pensou em como as coisas tinham se intensificado em um instante. E isso a frustrou, a fez lembrar de como tudo ficara terrível momentaneamente em Carvahall. Ela gritou, sentindo os olhos marejados e puxou a espada da bainha.

Seus golpes ao vento eram terríveis, furiosos e cheios do mais profundo ódio. Ela queria vísceras, ossos expostos, crânios abertos, perfurados aos olhos. A espada chocou-se na parede com força, no chão, e quase em sua canela.

Golpes, golpes e mais golpes. O braços tremiam e, em seu ápice, a espada partiu-se e ela caiu. Seu braço caiu por cima do resto da arma, e a dor foi instantânea. Por algum tempo ela apenas chorou sem levantar-se, ainda por cima da espada.

Ela ia levantar-se quando sentiu uma mão afagar seus cabelos. Devagar ela levantou a cabeça, para fitar o rosto da anã esquisita por quem passara quando andava com Hope e Gmäera até a estrela de safira.

A estranha e bela anã sorriu-lhe delicadamente.

— Erga-se... – Ela pediu gentilmente, com uma voz que era o próprio paraíso. – Estava mesmo faltando alguma estupidez para alguém da sua idade... fico feliz em saber que ainda é jovem. – Ela acariciou os ombros da ruiva com delicadeza. – Vamos, erga-se.

­– Quem é você? – Perguntou Ismira com a voz trêmula. – Eu já vi você... você sorriu para mim.

— E que coisa estranha, não é? – Ela gargalhou. – Que estranho é que as pessoas sorriam e sejam gentis.

Ismira olhou para o sulco em seu braço, aberto pela espada.

— Não é isso. – Ela cobriu o sangue com a mão, fazendo uma careta. – É que você é... diferente.

Ela levantou as sobrancelhas grossas e desenhadas.

— Ora, e que característica, não? – Ela afastou a mão de Ismira, que cobria o ferimento, e sussurrou palavras inaudíveis. Mas a jovem sabia quais palavras eram, eram as palavras da cura.

Seu braço coçou e de um jeito engraçado a pele voltou ao seu lugar.

— Você é uma feiticeira! – Ismira disse, compreendendo o estranho jeito da anã.

— Eu lembro de quando você era apenas um bebê. – Ela segurou sua mão e ergueu-a do chão. – Que bela mulher você se tornou.

— Um bebê? – Ismira sorriu, esquecendo momentaneamente sua frustração.

— Sim, querida... Eu era uma dos feiticeiros que ajudaram na construção da cidade de Carvahall. – Ela deu um sorriso de canto de boca. – Nós anões podemos nos gabar o quanto for de nossa maestria nas construções, mas sem a magia isto seria bem menos espetaculoso.

Ismira riu e escondeu os cabelos atrás da orelha.

— Bem, eu agradeço, hã...

— Magrih. – Ela afastou os cabelos do rosto. – Acompanhe-me, Ismira. – A anã usava um vestido verde brilhoso.

Sem questionamentos Ismira a acompanhou. Ela adentrava cada vez mais o escuro do corredor, onde as lanternas anãs eram menos brilhantes. Até que a feiticeira parou em frente a uma entrada discreta e pequena.

Ela adentrou-a, seguida por Ismira que admirou-se logo de início com o local repleto de artefatos desconhecidos. Livros eram montanhas que escondiam objetos comuns, e objetos comuns eram rochas entre vales que escondiam artefatos curiosos. E os artefatos curiosos... bem, eles eram curiosos.

— Eu estive todo esse tempo esperando por alguém como você, querida. – Ela sentou-se a uma mesa grande, num banco que era duas vezes maior que ela, e pôs-se a espanar a superfície de madeira.

— Alguém como eu? – Ismira não podia estar menos duvidosa das palavras de alguém.

— Sim! – Magrih enfatizou a palavra com sobrancelhas bem erguidas. – Alguém jovem, espirituoso, decidido e principalmente... – Ela segurou-se nas bordas da mesa. – Com o interesse voltado para coisas realmente importantes, e que movem outras coisas. O povo anão não carrega isto com evidência.

— E como pode ver tantas coisas em alguém que mal conhece? – Perguntou com um tom agudo de curiosidade.

A anã sorriu virando o rosto para o lado adoravelmente.

— Ler as pessoas não é tão complicado quanto elas acham. – Ela retirou um embrulho de coro de debaixo da mesa, com a cara de quem retira um delicioso bolo do forno. – Não é difícil, Lady Ismira, ler as pessoas e saber aonde elas irão chegar.

Ela calou-se, de mãos juntas, muito calma e sorridente. Ismira não sabia o que dizer ou fazer, até que deitou os olhos no embrulho.

— Eu presumo que você tem algum interesse em me mostrar isto. – Disse ela levando a mão a caminho do embrulho, quando a feiticeira anã deu um pequeno tapa em seus dedos.

— Sim... – Disse ela erguendo-o da mesa, virando-o em todos os ângulos. – Mas antes disso, eu preciso saber algo de você.

— Então pergunte. – Ismira deu de ombros. Sentia-se em uma das reuniões importantes que o pai fazia. Como se ela definitivamente fosse uma adulta.

— Você passará a tomar decisões na sua vida? – Ela ergueu as mãos agitadamente. – Não me entenda mal. Deixe que as pessoas tomem conta de você, deixe que se preocupem, deixe que lhe amem, que lhe protejam, que lhe deem carinho, mas... – Ela fez uma pausa. – A direção da sua vida é você que fará... não deixe que alterem o que seus braços guiam.

Ismira assentiu tão firmemente quanto feliz. Era isso que ela mais queria, mas não tinha coragem de fazê-lo. Perguntou-se como aquela anã sabia de seus impasses até ali, se era apenas coincidência ou se ela era tão misteriosa quanto Elva.

— Eu direcionarei meu próprio caminho... – Prometeu Ismira.

A feiticeira estreitou os olhos.

— Bem, isto me parece verdadeiro. – Disse ela. – Espero que tente. – Desatou as tiras do embrulho de couro e desenrolou-o, revelando o que guardava.

Ismira aproximou a cabeça, forçando as expressões, tentando desvendar o que via. Era uma espécie de arma. Tinha duas lâminas, cada uma em uma extremidade, ligadas a um cabo central. As lâminas eram curvas e aparentavam ser perigosamente mortíferas, num tom dourado reluzente. O cabo central era marrom com pequenas runas douradas. No seu todo, a arma era do tamanho da antiga espada de Ismira.

— O que é isso? – Perguntou a jovem completamente perplexa com a estranheza da arma de lâminas duplas.

— Isto é Elädie. – A anã pronunciou devagar. – Era bastante usada muito tempo atrás pelo povo nômade, em suas tradições. Mas esta... – Ela segurou o cabo fazendo com que sua mão parecesse um pássaro com asas de lâminas douradas. – Elädie não pertence aos nômades. Foi feita por um feiticeiro muito velho, beirando sua morte, quando abrigou-se na montanha oca do anões, na época de criação dos Varden.

Ismira assentiu, querendo que ela prosseguisse.

— Ele achava que uma arma, em seu significado mais afastado do sombrio, era uma companheira, e queria fazer disso algo que valesse. – Ela estreitou os olhos sedutoramente. – Ele queria contribuir para a estranheza desse mundo.

— Continue! ­– Pediu Ismira apoiando os cotovelos na mesma, excitada.

— A arma é um verdadeiro encanto, Jovem. Elädie é seu nome, que significa, nas variações mais antigas da língua antiga, “companheira”. – Ela girou a arma nos dedos. – Ela é testemunha de tudo o que acontece ao seu redor, de todos que a usam, e é companheira daqueles que considera espirituosos e seguidores de um futuro promissor. – Ela pôs a arma delicadamente na mesa. – É como um sábio de olhos atentos ao que acontece, e companheiro e mestre daqueles que lhe são concedidos o uso.

Ismira respirou fundo, ereta.

— A arma tem vida própria? – Questionou.

Magrih franziu os cenhos.

— Não exatamente... – Ela ergueu a arma para que Ismira segurasse o cabo. – É como um livro que guarda lembranças de tudo o que presenciou, que ensina através de acontecimentos passados, e que se identifica com as melhores virtudes humanas... – Ela comprimiu os lábios divertidamente. – O homem que a criou, sabia que estava criando uma grande dádiva... E que dádiva, jovem... que dádiva.

Ismira sorriu nervosamente.

— Que dádiva... – Ela segurava a Elädie com mãos trêmulas. – É como se ela fizesse seu próprio caminho também, seguindo o que é virtuoso... é isto? Entendi bem?

Magrih ergueu um dedo com olhos bem atentos.

— Não faz o próprio caminho, mas alia-se a caminhos bons... – Ela desceu de seu banquinho. – Então, Ismira... Lembre-se, faça seu caminho.

A jovem ergueu-se, sentindo-se recomposta depois de tudo o que aconteceu naquele dia... Seus hematomas doíam ocasionalmente, mas não chegavam a ganhar nenhuma atenção dela.

— E como irei aprender a usá-la? Você precisa treinar-me.

­– Isto você precisa fazer sozinha. – Magrih aproximou-se com um cinto. – Ponha... – Ela pediu entregando à ruiva.

— O que é isto? – Ela perguntou colocando o cinto.

— É onde levará a arma para deixar esta sala e não me ver mais... e seguir seu caminho. – Disse ela séria.

Ismira pôs o cinto, esperando que ela explicasse como se guardava algo como aquela arma. O cinto tinha duas bainhas curvas como as lâminas de Elädie, cada uma presa em uma extremidade de uma corrente presa ao cinto na lateral. Ismira não precisava mais de explicação. Cada lâmina ia em uma bainha, deixando a arma presa à sua cintura.

A arma era mais leve de ser carregada do que imaginava, e pouco incômoda. Ela deu dois tapinhas no cabo para enfatizar que estava segura e olhou para a feiticeira anã.

— Vá, garota, siga seu caminho! O que espera.

— Obrigado por todas as palavras... – Disse ela simplesmente e abaixou-se para dar um abraço demorado nela.

A anã afagou seus cabelos e escorregou para fora dos braços de Ismira.

— Que você consiga o que quer... – Disse virando de costas.

— Por que eu? – Perguntou ela... – De verdade, por que eu?

Magrih deu uma curta gargalhada.

— Está na hora desta arma deixar este lugar. Você é uma dádiva, assim como ela.

Ismira paralisou-se um instante, pensando nas palavras, então deixou o lugar para a escuridão do túnel, pensando se deveria esconder a arma de seus amigos ou não.

Seu quarto era o ponto de chegada. Precisava organizar-se antes de fazer qualquer coisa, e decidir como seriam seus próximos dias. Ela fechou os olhos um instante enquanto caminhava, sentido a arma de laminas duplas balançar suavemente em sua cintura. Tudo dependeria das decisões que tomasse agora.

Seguiu com segurança por entre anões, concentrada demais para distrair-se com o que quer que fosse, com quem quer que a observava curioso.

Fechou a porta de seu quarto com força e retirou Elädie de sua cintura. O seu peso era agradável, e as lâminas transpareciam solidez. Não me responsabilizo pelo caminho que você irá testemunhar, companheira... Disse ela para a lâmina.

A arma era exatamente do tamanho de seu braço, ela chegou a conclusão enquanto a estudava com alguma frustração, tentando saber como conseguiria manuseá-la. Passou alguns minutos rodando-a nos dedos, girando-a pelo ar, imaginando inimigos invisíveis, até sentir-se um pouco ridícula.

Deixou Elädie de lado e sentou-se no chão frio. Pôs os cotovelos sobre as pernas cruzadas e enterrou o rosto nas mãos. Preciso voltar ao Império, pensou, Não posso ficar, nem seguir o mesmo caminho que Hope. Precisamos buscar alcance. Eu posso conseguir alcance se não for apenas um peso seguindo uma Cavaleira de dragão.

Ismira levantou-se decidida. Ela tinha que seguir seu caminho afastada de Hope se quisesse fazer o próprio caminho... Isto parecia tão claro agora, era o que ela precisava fazer a muito tempo.

Escondeu Elädie debaixo da cama e saiu para a noite disfarçada da cidade de dentro da montanha. Iria conversar um pouco, beber algo, fazer amizades... O próximo dia seria longo.

*

— E aquilo jamais saiu de minha cabeça... todas as interferências que me levaram àquele momento. – Orik mantinha o punho bem fechado sobre a mesa. – Eu explicava o que era uma Thardsvergûndzmal para um Cavaleiro de Dragão, e isto era um fruto de situações que nos levaram até ali... Isto é o mundo mostrando que seus acontecimentos são empoderados. – Concluiu ele com firmeza.

Ismira fitava a pedra perfeitamente lisa em cima da mesa, que Orik dizia ser, na verdade, terra.

— Matador de Reis era próximo de você? – Perguntou Hope, que ouvia tudo atentamente.

Orik riu.

— Ah, Eragon... Eragon era uma criatura iluminada, sempre próximo e aberto às pessoas. Era certo que seu caminho fosse grandioso.

Ismira sobressaltou-se, chamando atenção de todos. Elädie gostaria de testemunhar o caminho de Eragon-elda. Pensou lembrando da arma escondida em sua cama.

Hope estava completamente envolvida nas histórias do anão, de mãos juntas ao colo e sobrancelhas arqueadas. Já ela estava divagando por outro lugar.

De repente ergueu-se muito rapidamente.

— Eu preciso ir, não aguentarei mais tempo acordada... – Disse Ismira quase nem olhando para Orik e Hope. – Uma boa noite a todos... – Disse ela sorrindo enquanto afagava o focinho quente de Gmäera. O dragão soprou ar em seus cabelos divertidamente.

Ismira estalava os dedos pensando enquanto caminhava quase na ponta dos dedos, alcançando seu quarto pausadamente, enquanto os pensamentos faziam pressão em sua cabeça.

Quem quer que tenha invadido Carvahall mantem o castelo sob domínio... Pensava ela. Outras cidades do império foram invadidas quase no mesmo instante. Ela franziu a testa. Por que outros ataques surgiriam mais tardiamente? O que pretendem com tudo isto?

Ismira sabia que estava pensando coisas que em cada castelo do Império estavam sendo discutidas avidamente, inclusive e especialmente em Ilírea. Mas ela precisava de um direcionamento ao deixar aquela cidade... precisava saber aonde ir, e o que fazer.

Ela abriu aporta do quarto e fechou-a com um chute de raiva. Ela não podia admitir que era tolice sair pelo Império sozinha e tentar conseguir alguma coisa com isso.

Ela suspirou sentando-se na cama, puxando Elädie de debaixo dela com a ponta do pé. Não queria pedir a ajuda de Elva, não mais... A feiticeira não seria capaz de deixar Ismira seguir seu caminho por conta própria. Era uma ameaça ao seu objetivo.

Senhor Gorjar parecia apenas observar e absorver... Sábio como a própria arma de lâminas duplas, e amoroso. Ela sorriu ao pensar nisso. Era uma pena que estivesse aliado a alguém como Elva. Ela perguntava-se como o urso havia surgido, se Elva tinha feito algo a ele ou... Ela abandonou os pensamentos.

Ismira retirou as bainhas da arma e pôs-se a cortar o ar por todo o quarto, girando a companheira em movimentos rápidos enquanto pensava mais a fundo.

Sentia o tempo passar, mas não sentia cansaço... apenas a inquietude aumentar, e não viu motivos para parar de treinar com a arma até o outro dia. Ou até que a cama a chamasse verdadeiramente.

Uma gota de suor frio caiu em suas mãos. Ali, sentada da cama com a respiração lenta e o coração acelerado, ela temia ter convencido a si mesma que já havia tomado a decisão. Ela retirou a camisa amarela e enxugou o rosto com ela... Precisava de um banho.

Seus cabelos molhados a incomodavam... estava cansada, e agora que os pensamentos se acalmaram um pouco, o sono agarrara suas pálpebras.

Ela pôs a mesma camisa de couro que conseguira em Yazuac, suas calças pesadas e as botas. O cinto com as bainhas presas em correntes foram para a cintura, assim como Elädie.

Ismira sentia-se diferente dos outros dias... Talvez a conversa com Magrih tivesse alterado sua visão sobre as coisas. Talvez fosse exatamente isso que a feiticeira pretendia. Ismira sentia-se estranha, usada... Mas sentia-se mais confiante que antes.

Os corredores eram menos agitados que quando entrara no quarto... Talvez já tivesse amanhecido. Ela andou algum tempo sem direção, mas então parou de enganar-se, voltando-se para o canto escuro onde sabia que encontraria um grande urso e uma feiticeira de olhos violetas.

— Preciso de sua ajuda... – Disse ela parando com firmeza.

Elva estava escondida em sua capa. Um vulto indiscernível entre os pelos de Gorjar. Seu rosto virou-se, embora Ismira só conseguisse ver um queixo, uma boca sorrindo e um nariz.

— A lâmina companheira encontra então mais um seguidor. –Disse Ela sem levantar ou demonstrar alguma surpresa. – Como se sente, Ismira?

Como ela sabia da lâmina? E o que mais sabia sobre ela? Ismira não estava exatamente surpresa por Elva saber disso, mas não deixava de irritar-se mais uma vez com ela.

— Preciso de sua ajuda. Preciso que me ajude a reconquistar Carvahall, que me ajude a reconquistar todas as cidades perdidas do Império. – Ela disse. – Não queria precisar de sua ajuda, mas preciso. – Ela engoliu em seco, frustrada.

Elva pulou a perna de Gorjar como pularia uma cerca.

— Impossível conseguir soar mais ofensiva. – Disse ela retirando o capuz. – Suas palavras parecem dizer que o fato de precisar de minha ajuda, obriga-me a lhe ajudar.

Ismira sentiu-se esmurrada. Seu queixo caiu um pouco.

— Você não precisa me ajudar... Mas achei que queria ganhar esta guerra. – Ela franziu os lábios. – E também achei que se importava comigo.

Elva virou-se e gargalhou.

— Quando eu disse para você seguir o próprio caminho, não quis dizer que todos devam se curvar para que siga este caminho, Jovem.

Ismira pensou por um instante, tentando entender a frase que não fazia sentido. Então, alarmando-se, arregalou os olhos... Não era possível.

— Você nunca me disse isto. – Disse ela tentando não acreditar no que já era quase certo.

Ela olhou-a com peso. E então cobriu-se com a capa de um jeito gracioso. Absurdamente ela contorceu-se erroneamente até transformar-se, na frente de Ismira, na anã que lhe entregara Elädie.

— Então, jovem... – Ela sorriu-lhe com as mãos na cintura. – Chama isto de seguir o próprio caminho? Começou bem seus primeiros passos?

Ismira retirou Elädie de sua bainha e encostou uma das lâminas no pescoço de Magrih, ou Elva.

— Eu odeio você, Visionária! – Gritou ela. – Você é cruel e sua mente é distorcida... – Sua voz estava embargada.

A anã franziu os cenhos e contorceu-se novamente, dando lugar a uma Elva um tanto furiosa.

— Bem, Ismira... Magrih não existe, e nem o mago que forjou Elädie. Estes dois foram eu, assim como fui eu quem lhe disse palavras tão amáveis, assim como fui eu quem lhe tirou desse poço de vulnerabilidade. – Ela deu um tapa forte no rosto da garota, que a fez cair e derrubar a arma de lâminas duplas. – E é incrível que continue sendo tão estúpida... Esperava mais de você.

Ismira pôs-se de joelhos lembrando das palavras de Magrih. “Estava mesmo faltando alguma estupidez para alguém da sua idade... fico feliz em saber que ainda é jovem.” Ismira se perguntou se algo do que Elva lhe disse quando era Magrih era verdadeiro.

— Tudo é apenas um jogo? – Ela estava chocada. – O que há de errado com você?

— Bem, não posso ajudá-la a deixar a montanha oca... se é o que quer saber. – Disse ela muito indiferente.

— Sinto-me grata por não ter que compartilhar sua companhia uma vez mais, neste caso. – Disse ela forçando o maxilar. – Glorioso será o dia em que você abandonar o mundo, Elva, a Visionária. Você obscurece o brilho das coisas.

Elva pôs as costas das mãos na testa teatralmente.

— Como você pode segui-la, Senhor Gorjar... – Dirigiu-se para o urso que era uma pedra deitada. – Isto faz de você tão desprezível como ela? – Perguntou a jovem, libertando-se. – Você é uma fera amaldiçoada ou algo mais que isto? – Ela correu e encostou a ponta de sua arma no focinho do animal. – Eu deveria matá-lo, assim como ela... Não há bondade em vocês... Ou há? – Perguntou-se ela fitando os olhos ferozes do animal, que pareciam devorá-la. – Devo matá-lo agora ou você carrega alguma bondade?

Repentinamente o Urso ergueu-se em duas patas e rugiu, voltando ao chão com um estremecer poderoso.

Não precisa falar baboseiras para convencer-me de segui-la, criança... Não estrague a imagem que eu tenho de você. Disse ele com uma voz irritada. Você precisa de alguém que ponha alguma sensatez nessa sua mente infantil. Disse ele mais calmo. Agora, acalme-se e respire.

Não quero Elva ao meu lado outra vez... Ela disse quase chorando.

Ele pareceu suspirar.

Talvez Elva não seja a melhor pessoa para acompanhá-la no momento. Disse num tom maduro e certo. Mas se quiser que eu acompanhe-a pelo Império, terá de prometer que não voltará a exaltar-se novamente, em qualquer situação.

Ismira olhou nos olhos do enorme Urso gigante e franziu os cenhos. Ela ainda não sabia ao certo com quem estava falando, com o que estava falando.

Eu prometo. Disse agitadamente. Senhor Gorjar, eu preciso partir agora, não posso ficar nem mais um momento aqui. Disse atropeladamente, entregando-se às lagrimas.

O Urso, sem questionamentos ou relutância, abaixou-se para que ela o subisse. Ismira o fez, desejando estar mais recomposta para partir... Não previu que as coisas iriam terminar assim. Senhor Gorjar levantou-se e começou a afastar-se. Ismira olhava para Elva que sorria terrivelmente.

— Espero que não diga nada... Seria realmente chato. – Ela agitou as mãos com pressa. – Bem, Ismira, adeus, e boa viagem, saia logo da minha frente. – Ela disse com palavras doces. – Ah, e mande lembranças para sua amiga Cavaleira, aquela que chamam de Esperança. – Ela levantou um dedo. – Você sabia que ela é igual a mim? – Ela gargalhou. – Nós duas fomos abençoadas pelo grandioso Eragon Matador de Espectros! – Disse ela abrindo os braços insanamente. – É claro que foram presentes distintos, não é? Mas eu não a odeio mais que as outras pessoas por ela ter sido curada ao passo que eu fui amaldiçoada. Vejam só, eu não sou uma pequena filha ciumenta... – Disse ela e gargalhou mais uma vez. – Oh, Ismira, siga seu próprio caminha, vá! Sei que conseguirá, você é espirituosa, e tem os pensamentos voltados para o que realmente importa. – Ela virou-se sensualmente.

Senhor Gorjar grunhiu grave e fracamente.

Espero que encontre alguma paz, Visionária... Sentirei sua falta.

A feiticeira aproximou-se do Urso devagar, agora séria, e tocou-lhe o focinho com a testa, acariciando seus pelos.

— Também sentirei sua falta... Cuide-se. – Disse ela para finalmente afastar-se com um olhar vazio para Ismira. – Adeus, Lady. – Disse e foi embora para os corredores escuros.

Ismira perguntou-se se ela estava indo para o mesmo local onde entregou-lhe Elädie.

Senhor Gorjar caminhava com alguma pressa para a cidade, direcionando olhares mal humorados aos anões que assustavam-se com ele e principalmente com Ismira em seu dorso.

A jovem pensava todo o momento no que tinha acontecido, e se Elva tinha planejado tudo isto. Este não é meu próprio caminho, isto foi a Visionaria que traçou. Ela arrepiou-se, sentindo um pouco de medo.

Mas quando fitou anões incrédulos direcionando olhares incrédulos para ela, este medo passou. Recuperou-se e adquiriu a postura de quem sairia da montanha para um mundo verdadeiro, um mundo que pretendia mudar... e só conseguiria fazer isso se não tivesse medo.

Ismira, filha de Roran Martelo Forte, ergueu a cabeça, olhando sempre para frente, e Senhor Gorjar rugiu ferozmente com uma boca enorme, enfatizando toda a atenção voltada para ela.