Grande era uma palavra que sempre servira para Ismira. A garota nunca gostara de exageros, se algo era grande... era grande, era uma palavra bastante abrangente. No entanto, aquelas proporções nunca antes foram imaginadas por ela, chegava a pôr em dúvida sua importância no mundo.

O trio ainda não estava perto de adentrar as Montanhas Beor, mas elas já eram impossivelmente grandes. Ismira ainda sentia-se no centro do deserto, com areia quente e avermelhada navegando no ar e o calor delirante a acompanha-la...

...Ainda assim aquelas coisas colossais estavam lá.

­– Nós não podemos nos perder lá dentro? – Perguntou Ismira tentando não soar assustada e estúpida, mas ela não podia deixar de perguntar. Ela nem ao menos sabia aonde aquilo poderia terminar.

– Não... – Elva disse deixando balançar-se nas costas do urso gigante. – Achei que você já estivesse acostumada com suas descobertas, é uma pessoa vivida. – A cabeça da feiticeira ia de um lado para o outro ociosamente enquanto as costas ondulavam monótonas.

Ismira não suportava mais as respostas de Elva. Era como se ela estivesse tentando cansá-la ou fizesse parte de um jogo. Havia momentos em que a mulher dos olhos violetas era amigável e confortava bastante a pobre garota perdida, consolando-a, mas até nesses momentos Ismira sentia-se assustada com a mulher.

Ismira calou-se e apertou os pelos grossos do Senhor Gorjar, que não parecia querer falar muito, trocava algumas palavras com ela, mas nunca ou quase nunca dirigia-se a Elva.

O urso caminhava tão lentamente pela areia dourada que parecia sonolento, e Ismira estava impaciente, tinha certeza que se descesse das costas do animal e corresse, chegaria bem mais rápido, mas não arriscaria.

As únicas partes do dia que ela gostava era o entardecer, onde o clima era mais fresco e não tão quente, e quando Elva a ensinava mais sobre magia e controle mental. As coisas que a feiticeira lhe ensinava eram bem mais aprofundadas do que ela aprendera com Sírin. Ela estava maravilhada, vivendo um mundo de magias, desde que começara a aprender com Elva. Sentia que logo conseguiria fazer mais coisas além de tocar a mente dos animais e levantar pedrinhas.

– Você não irá me dizer por que está me levando para a montanha dos anões, não é? – Ismira abaixou a cabeça e quase tapou os ouvidos esperando mais uma das respostas intimidadoras de Elva.

– Eu já lhe disse o motivo, não disse? Nasuada não pode receber você agora, ela já tem preocupações demais.

– Mesmo que não fossemos para Iliera, ainda existem uma infinidade de lugares que poderíamos ir, por que as montanhas? – Ismira engoliu em seco para prosseguir. – E eu não acredito em você... Nasuada me receberia a qualquer hora.

Elva agarrou o braço de Ismira e olhou zangada para ela.

– Você só está viva por que ninguém sabe onde está, ninguém do Império pode saber... se você fosse até Iliera ficaria muito exposta.

Ismira franziu o cenho.

– Por que alguém iria querer me matar? E Iliera é o local mais seguro de todo o Império! – Ela desprendeu o braço das mãos mornas da feiticeira. – Eu não gosto de você, não acredito em você!

Elva pôs a mão na testa como que cansada, mas numa clara imitação irônica.

– O império está vulnerável, Querida. Pessoas muito malvadas estão atacando no escuro das sombras. – Ela fez uma cara triste para a garota. – Nenhum lugar do Império está seguro, qualquer um é uma ameaça. Você estava em Carvahall... acha que em Iliera as coisas são diferentes? – Ela sorriu um sorriso maldoso.

Ismira abaixou a cabeça, Elva não deixava a garota discordar de nada. A feiticeira envolveu seu rosto com uma mão, olhando-a com pena. Beijou-a na maçã do rosto.

– Você é um tesouro, Querida. – Ela penteou os cabelos cobres com os dedos. – Você, seu pai, sua mãe, a Rainha e cada nobre da Alagaësia. São tesouros valiosos, mas é uma pena que só são usados para comprar a morte, a dor, a fome e a guerra... – Ela continuou acariciando os cabelos de Ismira. – Vocês todos juntos são perigosos em tempos como estes. E não temos os nossos grandes guardiões cuspidores de fogo e magníficos rapazes bonitos com espadas coloridas para nos “proteger”. – Ela soltou os cabelos de Ismira e voltou a atenção para frente. – Se nossos Lordes não sabem como ganhar esta guerra, eu o farei.

– Que guerra? ­­– Os olhos de Ismira encheram-se de lágrimas e ela derramou-se em choro. – Ninguém me fala o que está acontecendo...

Elva despenteou os cabelos de Ismira, como se a jovem fosse uma criança.

– Você não precisa saber...

Ismira não insistiu, sabia que não conseguiria arrancar nada dela. Enxugou as lágrimas e voltou a apertar os pelos do Senhor Gorjar.

O sol estava no topo, tão claro quanto irritante, e as montanhas só cresciam. A areia do deserto foi tornando-se aos poucos um solo mais resistente, sem que Ismira percebesse, e de repente estavam na sombra de uma montanha.

Pararam na encosta de uma grande rocha deteriorada, perto de onde as arvores dos largos vales começavam. Senhor Gorjar encostou-se na rocha e deu um longo bocejo, quase que imediatamente apagou. Dormia enquanto a barriga expandia e murchava lentamente.

Ismira observou enquanto Elva tirava algumas sementes de seu vestido, mas o cansaço de Ismira era maior que qualquer fome. Ela deitou-se e enterrou o rosto na barriga macia de Senhor Gorjar, e, igual a ele, apagou.

*

Ismira teve um tenso despertar. Acordou de repente, suada e tonta de tanto dormir. Olhou em volta, desconfortável com a saliva grossa na boca.

O ambiente estava escuro, com apenas um vestígio de luz entre montanhas, o céu do outro lado era azul escuro quase negro. Por um momento Ismira esqueceu-se de onde estava – Como sempre acontecia quando dormia em um lugar que não fosse seu quarto.

Senhor Gorjar não estava mais recostado na pedra, estava levantado ao seu lado, olhando-a como se estivesse observando-a dormir a algum tempo.

Ismira limpou a areia do rosto e das roupas.

­– Onde está Elva? – Perguntou levantando-se cambaleante.

O Urso grunhiu.

Você não deve falar comigo se não o fizer mentalmente.

Ismira retesou-se, despertando com a observação.

Desculpe-me, ainda estou sonolenta...

Ismira só podia dirigir-se para o Senhor Gorjar mentalmente, para treinar expandindo a mente.

Então refaça a pergunta. Ele mostrou as prezas e estreitou os olhos.

Onde Elva foi?

Senhor Gorjar relaxou.

Ela foi observar o caminho à frente, logo estará de volta.

Tudo bem...

Ismira sentou-se perto do urso, de pernas cruzadas, sem nada para fazer ou dizer. O urso era muitas vezes o seu tamanho. Era como uma arvore... uma arvore grossa e peluda.

O que vamos fazer nesse tempo? Vamos só ficar sentados sem fazer nada?

Não... o que você quer fazer?

Como assim? Não tenho o que fazer aqui... Ismira intimidou-se. Você deve dizer o que fazer.

Senhor Gorjar tossiu.

Muito bem, sente-se de frente para mim.

Ismira estava com um pouco de medo, mas mesmo assim fez o que o urso pediu.

E agora? Ismira cruzou as pernas.

Agora defenda-se.

Antes mesmo de o urso terminar de falar, Ismira sentiu uma pressão em sua cabeça, como se algo penetrasse sua mente. Não era uma sensação boa, era algo feroz e explosivo, com uma raiva incalculável.

Ismira sabia tratar-se de Gorjar, e agora sabia o que ele fazia. Mas ela não sabia como agir, a consciência dele a estava assustando.

Pare... pa-

Ismira não conseguiu terminar. A pressão em sua mente só cresceu, e agora ele varria todas as suas lembranças com uma força devastadora. Afinal ela era dele, não estava mais no controle. Só então Senhor Gorjar libertou-a e se retirou para o próprio corpo.

Os braços de Ismira tombaram e ela sentiu-se como se ainda não tivesse dormido.

Vamos de novo... Você tem que se defender, se não, é alguém morto!

Senhor Gorjar rugiu, e ela mal teve tempo de se preparar antes de ele atacar novamente....

*

Ismira recostou-se na rocha, arfando. Estava suada e os cabelos grudavam-se em sua testa. Cobriu o rosto com as mãos e afastou os cabelos.

Olhou em volta, mas estava escuro demais para ver. Estava tão ocupada defendendo-se de Senhor Gorjar que não percebeu quando tudo havia se tornado breu.

Elva precisa voltar, tem de acender uma fogueira.

Não sabemos quando ela voltará, então terá de acender uma você mesma.

Ismira despregou as costas da rocha.

Eu?! Com o quê? Eu nunca fiz uma fogueira na minha vida!

Você nunca antes tinha feito uma pedra flutuar em sua mão... Senhor Gorjar rugiu. Levante-se e procure galhos, não volte até ter o suficiente.

Ismira levantou-se imediatamente e foi, encolhida, à procura dos galhos. Passou pelo urso – Ela o sentiu pela respiração irritada ­– e bateu o nariz em uma arvore. Sentiu os olhos lacrimejarem, segurou o nariz entre os dedos e voltou ao caminho.

Começou tateando o chão, e sem perceber já estava de joelhos, desesperada para encontrar algo que se parecesse com um galho. Depois de algum tempo ela tinha talvez cinco galhos na mão. A garota distraiu-se com a tarefa tediosa, e logo apanhava galhos automaticamente, voando em lembranças.

Ismira só voltou a atenção para o que fazia quando o braço começou a pesar. Ela agarrou bem os galhos que tinha e tentou achar o caminho de volta para Senhor Gorjar.

Senhor Gorjar, Ela chamou, Onde você está? Acho que estou perdida.

Então encontre-se... Ele respondeu.

Ismira inchou-se de raiva, quase largou os galhos ali mesmo, mas em vez disso procurou e procurou, se saber se realmente estava voltando ou entrando cada vez mais na floresta. Olhava para o céu tentando entender se ainda estava embaixo de arvores ou não.

Então a respiração irritada do urso a aliviou. Ismira seguiu tranquila o barulho familiar até ter certeza de que estava de volta.

Aqui estão os galhos. Ela jogou-os no chão.

Ótimo... Ismira percebeu que ele parecia estar se divertindo. Agora diga as palavras.

O que? Que palavras? Não... eu já tentei diversas vezes, você sabe que não consigo.

Das outras vezes o objetivo era fazer uma bola de fogo iluminada, desta vez tudo o que precisa é acender uma fogueira. Agora, obedeça-me, ajeite os galhos e diga as palavras.

Ismira respirou fundo e começou a ajeitar os galhos o melhor que pode na escuridão.

*

Não acha que já é o suficiente? Perguntou o Senhor Gorjar, irritado, de algum lugar.

Você disse-me para esperar o tempo que fosse preciso. Ismira irritou-se com o intrometimento. Me deixe em paz se quer que eu faça isso.

Senhor Gorjar gargalhou ruidosamente.

Ismira ainda estava sentada de frente para os galhos, não sabia ao certo quanto tempo já havia passado, e também se já estava pronta. Ela tornou a fechar os olhos. Deixou-se vagar por um momento.

Lembrou-se da primeira vez que fez a pedrinha levitar em sua mão. Ela havia ficado tão feliz. E lembrou-se que depois disso foi bem mais fácil das outras vezes. É a mesma coisa... Ela disse para si mesma, abrindo os olhos. Eu conseguirei. Voltou a fechar os olhos.

– Brisingr... ­– Ela finalmente disse, fazendo a palavra soar o mais familiar possível. Sabia exatamente o que queria.

Uma pequena chuva de faíscas brotou do centro de onde estavam os galhos, iluminando o mundo escurecido.

Eu consegui, Senhor Gorjar! Disse ela sorrindo, fitando as pequenas e bonitas faíscas.

Agora alimente o fogo se não quiser que ele suma! Alertou o urso.

Ismira assoprou o fogo, com medo que ele apagasse. As pequenas faíscas pulavam e espalhavam-se pela madeira, até que a fogueira estava realmente viva. Levantou-se e olhou para as chamas com orgulho.

Agora era possível ver claramente o ambiente ao redor. Ismira correu para dentro das arvores.

Aonde vai? Senhor Gorjar perguntou. Ele estava deitado perto da fogueira.

Pegar mais galhos! Ela lhe gritou, esquecendo que não precisava fazê-lo mentalmente.

Ismira encheu novamente os braços com galhos, desta vez satisfeita. Os escolheu bem, os melhores, dedicando-se bem àquela tarefa.

Passou os minutos que seguiram alimentando a fogueira com galhos, e Senhor Gorjar apenas observava, achando graça, mas ela não ligava, era a primeira fogueira que fazia, e, se contasse como havia feito, seu pai não acreditaria.

Ismira olhava para a fogueira pensando se já era o suficiente. O fogo estalava ruidosamente e as chamas já tinham quase sua altura. Envolveu o queixo com os dedos, pensando...

...Então ela lembrou-se de algo que Sírin lhe dissera outrora:

“Cada palavra da língua antiga tem seu significado, e ele é, ouça bem, ele é imutável, mas, quando se trata de magia, podemos direcionar uma palavra só para um feitiço mais complexo. Isto envolve parcialmente nossa capacidade mental para realizá-lo, o que é perigoso, mas bastante útil. ”

Ismira enrolou um fio de cabelo nos dedos, pensando bem no que faria. Sírin dissera que era arriscado, mas era um risco que ela já estava correndo desde o princípio.

Olhou para as chamas.

– Brisingr! – Gritou, concentrando-se ao máximo no que queria.

Ismira arrepiou-se de surpresa e realização quando o fogo estalou e as chamas expandiram-se tornando-se maiores que ela.

Ela cambaleou para trás, sentindo-se tonta e fraca de repente. Apoiou as mãos nos joelhos e suspirou.

Senhor Gorjar ainda parecia estar se divertindo.

Você acha que está tudo no seu controle, mas esquece que tudo tem, naturalmente, um preço...

Ismira retirou o suor da testa e sentou-se perto da fogueira. Respirou fundo sem ligar para as palavras do urso.

– Brisingr! – Ela gritou mais uma vez.

Desta vez foi perceptível a ela a energia que fluía de seu corpo. As chamas tremeluziram e cresceram mais uma vez, tornando-se uma parede enorme.

Ismira sorriu e deitou na areia, cansada.

– É um belo trabalho. – Era a voz de Elva. – É uma pena que já tenhamos de partir, a fogueira daria uma boa noite. – Ela gargalhou.

Ismira levantou-se para ver a feiticeira. Ela estava encapuzada e já montada em Gorjar.

É... você apareceu no momento mais oportuno. Pensou Ismira emburrada.

Mas a garota não ligava para as controversas de seus parceiros de viajem. Lembrou-se das palavras que Sírin lhe dissera:

“ Parabéns! Está cada vez mais próxima de se tornar uma feiticeira, humana. ”