Um mundo além do mundo

Balbúrdia, decisões e mudanças demais para uma noite


Serje contorceu-se no dorso de Zoräes estralando as costas. Passara a tarde inteira e a noite até o devido momento, numa viajem sofrida, deixando Gil’ead para trás. Seu objetivo era chegar a Iliera no final daquela semana... E estava decidido a conseguir isso, nem que fosse necessário virar o dia para alcançar o prazo auto-imposto.

O lobo branco corria com a língua pendente salivando ao vento, consciente de o quão importante era o tempo para Serje.

– Só mais um pouco... Rapaz. Logo descansaremos. – Disse entre arfadas.

Serje planejava sua chegada em Iliera, para ocupar a mente e evitar dormir nas costas do animal, mas à medida que pensava, aquela questão foi tornando-se um ponto cada vez mais preocupante, tirando-o o sono.

Como ele conseguiria falar com a Rainha? Como deixariam entrar um rapaz maltrapilho montado em uma criatura amedrontadora dentro do castelo da Rainha?

Não permitiriam minha entrada ao menos na cidade; Pensou; Se me aproximasse os soldados me matariam... e também Zoräes.

Aquilo o intrigou por bastante tempo. E, quanto mais pensava, tornava-se irrefutável o fato de que teria de deixar Zoräes para trás, pelo menos até que entregasse sua mensagem à rainha e conversasse com ela.

Incapaz de continuar viajem sem resolver o assunto, Serje resolveu parar, e Zoräes, como de costume, diminuiu a velocidade procurando um lugar seguro para pararem, como se tivesse lido a mente de Serje.

A lua encontrava-se no topo do céu, naquela noite sem nuvens, ofuscando o brilho das estrelas ao seu redor. O brilho do luar era tão intenso que as arvores pelas colinas projetavam fracas sombras um tom mais escuras que o prateado das colinas descobertas.

O lobo farejou o ar com concentração e rodeou a si mesmo por duas vezes antes de se acomodar entre duas arvores especialmente grandes.

Serje deu uma esfregadela na enorme cabeça branca do lobo e desmontou seu dorso. Acomodou-se recostado na arvore do lado oposto de Zoräes.

Pôs-se a fitar o Lobo por algum tempo antes de resolver a questão de como falar com a Rainha Nasuada.

...Mas antes de pensar em qualquer coisa o olhar do lobo o capturou. Os olhos Vermelho e Dourado estavam especialmente brilhantes aquele dia, como se fossem lanternas dos elfos. E seus pelos estavam diferentes também, os pelos mais abaixo estavam foscos com um tom de prata, o mesmo que o brilho do luar que os cercava, já os pelos mais superficiais estava brilhantes como fios brancos banhados de pó brilhante, feitos especialmente para tecer um tecido brilhoso.

A postura do lobo também estava diferente. Os olhos inteligentes pareciam mais sábios que antes, como se penetrasse os segredos de tudo aquilo que olhava. O pescoço estava arqueado dando ao animal um tom solene.

De maneira geral, o animal havia adquirido uma nova majestade, ainda que algo em sua nova postura incomodasse Serje. Era como se o lobo estivesse entediado e não notasse mais a presença dele.

Tentou afastar o olhar do lobo por um instante, dizendo para si mesmo que aquilo era tudo coisa de sua mente. Fechou os olhos e pôs-se a elaborar seus planos para falar com a rainha.

Pensou em levar uma bandeira branca consigo para avisar sinal de paz, mas ainda assim o lobo gigante não ajudaria. Pensou que poderia fazer como fizera nos vilarejos, e deixar que Zoräes o esperasse até que fosse ao seu encontro, mas se fizesse isso não poderia demorar-se na cidade, pois o lobo não o esperaria mais que um dia, ele acreditava, mesmo que estivesse errado, ele não queria arriscar, e uma hora teria de revelar a existência de Zoräes para Lorde Roran.

Como ele reagiria? Serje esperava que ele não compreendesse tão facilmente. E depois disso?

Os pelos de sua nuca se arrepiaram.

– Será que poderei voltar para casa com você?

Ele descartou aquele pensamento, Irritado consigo mesmo por desviar-se do mais importante, que era falar com a Rainha.

Serje justapôs a Chama do Inverno na grama, aliviando-se do peso da espada, e deixou a cabeça tombar para trás encostando-a no tronco. Fechou os olhos considerando desesperadamente todas as maneiras de falar com a Rainha, mas nenhuma era segura o suficiente para ele.

Frustrado, levantou-se e foi para onde Zoräes estava deitado, mas ao aproximar-se alguns passos, o lobo o fitou com os olhos entediados e emitiu um baixo rosnado ameaçador por entre os lábios arreganhados, revelando as enormes presas brancas.

Serje hesitou sem saber o que fazer.

– O que houve, rapaz?

Antes que ele terminasse, o lobo saltou e mordeu o ar onde estivera Serje, meio segundo antes de ele saltar para trás. Antes que Serje pudesse ter qualquer reação, Zoräes virou-se célere e hábil, e correu entre as arvores, desaparecendo da vista do rapaz.

O desespero e a amargura tomaram conta de Serje, e a única coisa que conseguiu fazer foi correr atrás de seu amigo, tomado pela mágoa... Eles eram tão próximos... Estiveram juntos aquele tempo todo, não tinha uma explicação lógica para o que tinha acontecido, Zoräes nunca o atacaria. Aquilo havia abalado Serje mais do que ele esperava.

Com a incerteza sobre todas as coisas, Serje tropeçava por entre as arvores procurando pela planície, temendo ter perdido o animal para sempre.

– Zoräes! – Gritou para o vento. – Zoräes, maldito, volte!

Caiu de joelhos e socou o chão. Serje estava sentindo-se extremamente vulnerável sem Zoräes por perto, mesmo que já estivera em situações piores sem o lobo, era como se uma parte de si que sempre estivera ali tivesse sido arrancada.

Levantou-se em choque e desembainhou a Chama do Inverno, a lamina brilhava como os olhos de Zoräes tinham brilhado, como se adquirindo um brilho próprio, vermelho e dourado, mas aquilo não chamou atenção de Serje...

...Ele estava em choque, um medo assolador apoderou-se dele e o fez desejar estar enterrado na mais profunda caverna da terra, afastado de todos os seres. Mesmo que soubesse que o que sentia não era natural, não conseguiu conter seus extintos, e saiu agoniado pelas arvores em disparada a procura de seu lobo.

Seu coração ardeu quando uma caverna surgiu em sua frente no topo de um ligeiro monte pedregulhoso. Um sorriso surgiu em seus lábios, tão largos que provocaram ligeiras câimbras nas bochechas, e uma risada áspera e chiada saiu de sua garganta.

Encontrei você... Pensou.

Então saltou ferozmente para o monte e escalou-o sem demora.

– Pare aí mesmo. – Uma voz soou imperante. – Nem mais um passo.

Serje olhou para a crista da caverna. Lá estava sentada com as costas rígidas a mesma velha que o tinha ajudado em Ceunon. Ela trazia consigo seu cajado e algumas bolsas de couro penduradas no ombro e na cintura

Serje rosnou e arreganhou os dentes. Ignorando a velha ele avançou para a caverna, mas antes que ele pudesse adentrá-la, a velha saltou da crista da caverna e aterrissou graciosamente no chão, para sua idade.

– Nem mais um passo, rapaz! – Ela ameaçou batê-lo com o cajado como já havia feito antes, mas deteve-se a poucos centímetros da cabeça de Serje. – Você não vai querer vê-lo... Ele está passando por uma... transformação. – Ela disse a última palavra com todo cuidado, levantando os olhos baixos o máximo que conseguia.

Mas Serje estava tão domado pelo calor daquela insanidade desconhecida que o atingira que não permitiu-se parar ali. Rosnando empurrou a velha para o lado e adentrou a caverna.

– Zoräes! Estou aqui, não tema... – Disse tomado por uma felicidade extrema ao fitar os olhos vermelho e dourado abrirem. – Estou aqui. –Repetiu sorrindo.

Um guincho agudo de um cão que está irritado ecoou pela caverna, então Serje sentiu dentes perfurarem sua pele, mais rápidos do que o ele julgava ser possível.

Serje urrou tentando livrar-se dos dentes, e quando conseguiu saiu da caverna às pressas, olhando para trás, para os olhos brilhantes.

– Eu avisei para não ir! – Ela olhou com desdém para o braço dele. – Que sirva para que você aprenda a me respeitar.

Serje gemeu ao olhar para a manga da túnica, escura e ensopada de sangue. O braço estava ardendo e formigando debaixo da manga esburacada. Imediatamente Serje rasgou a manga, revelando crateras enormes e profundas banhadas de sangue... Tanto sangue. Quando tentava fechar o punho o braço explodia em dor.

Serje lançou um olhar acusador para a escuridão da caverna.

– Venha, deixe-me curar isso... – Resmungou a velha.

Aproximou-se de Serje com dificuldade, e segurou o braço com a mão trêmula e murmurou frases estranhas, com a outra mão passeando por cima dos ferimentos.

Aos poucos a dor cessou junto com a ardência... então seu braço deixou de formigar e a pele estava saudável novamente.

Magia... Pensou ele, olhando para o braço, pasmo.

– O que estava pensando? – Disse a velha depois de um tempo.

– Eu... – Ele desistiu de falar.

Ela suspirou e pôs a mão em seu ombro, e depois de um momento disse:

– Não se preocupe com ele... Ele precisa desse momento. – Ela retirou um cachimbo de algum lugar do seu manto branco, e demorou mais de um minuto para acendê-lo. – É bom que se prepare para esta transformação...

– Não compreendo... Eu... não sei dizer. Senti uma coisa... quando Zoräes fugiu para a caverna.

Ela sugou o máximo de fumaça o possível antes de falar.

– Isso é normal, você está sendo alterado pela magia de Zoräes. Quando se acompanha essas criaturas por um longo tempo, não se espera que você continue... normal. Você criou um laço muito forte com ele, exatamente como eu esperava.

Serje franziu o cenho.

– Me explique melhor... O que são estas criaturas? – Ele guardou todas as outras perguntas para depois, por mais difícil que fosse.

– Ora... São lobos! Achei que já tivesse percebido isso...

Serje rosnou.

– Ele não é um lobo normal, não é? Me diga... o que Zoräes é de verdade.

Ela fincou o cajado na pedra, afundando-o uns bons centímetros na superfície rochosa. E quando ele achava que ela não responderia:

– São animais raros... Não se encontram bandos deles por aí. Normalmente vivem seus séculos em cavernas ou pendurados em arvores no norte inabitado da Alagaësia. – Ela parou para dar uma longa puxada no cachimbo. Então tossindo continuou: – São animais alomorficos e mágicos, mais conhecidos como Fäghros... Na verdade, este é o nome deles na língua dos elfos, você deve saber do que se trata... – Ela disse agitando a mão. – Depois do nascimento, eles passam três luas sob a primeira forma. Quando a terceira lua surge – Ela apontou para o céu sorrindo. –, então ele passa a ter a segunda forma... Zoräes acabou de completar sua terceira lua de vida, a mudança já começou. Nas três luas seguintes eles ficam sob a segunda forma, então quando este prazo termina, ele estão completamente maduros, e podem escolher a forma em que querem ficar a qualquer momento. Normalmente eles passam a maior parte do tempo sob a primeira forma, usando a segunda forma apenas para dormir, e em... outras ocasiões. – Ela franziu o cenho e balançou a cabeça. – Tome... Isto pode ajudar. – Então inexplicavelmente ela tirou um enorme livro de seu manto branco.

Serje segurou o pesado volume nos braços.

– E qual seria esta segunda forma? – Perguntou ele olhando para a caverna escura com curiosidade. – Como ele ficará após a transformação?

O livro que segurava era de couro branco envelhecido e as folhas umas sobre as outras estavam onduladas de tanto usadas, Na capa estava em alto-relevo dois olhos, um mais escuro e outro mais claro.

– Ah... – Disse a velha sobressaltando-se. – E antes que pergunte, todos os Fäghros tem olhos desiguais... Acho que isto tem haver com suas duas formas... mas não é tão importante, de qualquer forma.

– Espere um minuto... – Serje olhou para as planícies enquanto falava. – Como você chegou aqui tão rápido? E... e porque não me acompanhou desde o inicio? E porque não me falou a respeito dos Fäghros antes? E não me deu este livro também? Acho que...

– “E por que... e por que...” – Ela fungou. – Ora... o que você queria que eu fizesse? Simplesmente lhe surgisse à vista e vomitar tudo sobre qualquer que seja uma criatura mágica e depois lhe entregá-la sem nenhuma explicação?

– Foi quase isso que você fez! – Protestou ele.

– Há uma diferença... Eu tinha um motivo para lhe dar... Ou você simplesmente aceitaria que eu lhe desse um animal mágico sem que lhe dissesse o verdadeiro motivo?

– E qual é o verdadeiro motivo?!

Serje pestanejou quando a velha Soltou uma nuvem de fumaça e ficou em silêncio.

– Você só diz coisas incoerentes...

– Você que se viciou em problemas banais...

Antes que Serje pudesse retrucar, um barulho ecoou de dentro da caverna. Serje levou a mão ao cabo de Chama do Inverno e virou-se para ver...

Lentamente os olhos brilhantes surgiram, mais solenes do que qualquer outros olhos. E na barreira entre a sombra e a luz, no chão, garras surgiram, mas estavam diferentes de antes... Só quando o lobo emergiu totalmente é que Serje pode ver claramente.

No lugar em que antes estiveram suas patas dianteiras, agora encontravam-se longas asas dobradas, e, na dobra extrema delas tinham garras com as quais podia apoiar-se no chão, dando as asas a eficácia tanto de voar quanto de locomover-se – Embora o lobo, ou o que quer que fosse aquela criatura, andasse com uma nova postura, com o pescoço mais arqueado para trás que antes e com uma ligeira inclinação devido ao maior tamanho das asas. – O rabo do animal também estava maior e mais fofo de pêlos. As orelhas estavam mais pontudas e maiores. O focinho mais fino e alongado, e os olhos mais angulosos que antes.

Serje não conseguiu sair do lugar... Ele não acreditava no que estava à sua frente, ele nunca, em toda sua vida tinha visto algo parecido.

– O que é isso... – Sussurrou sem conseguir fechar a boca.

– Os Fäghro são por vezes chamados de Lobos Voadores, Lobos Morcegos, ou simplesmente duas formas. – A velha disse, olhando com um certo orgulho para o animal.

Serje hesitou... Sem saber se já podia aproximar-se da criatura, mas antes que tomasse a iniciativa, o fäghro andou desajeitado, acostumando-se com as asas, até Serje.

Para o deleite do rapaz, o lobo tocou sua testa com o focinho e lambeu-lhe o rosto.

– Você está de volta. – Sorriu e abraçou o pescoço do lobo.

O calor dos olhos estava novamente consigo, o delirante calor que o consumia, mas que o deixava mais forte também.

– É realmente uma coisa incrível! – Ela parecia surpresa, embora fosse difícil distinguir suas expressões faciais no rosto derretido pelo tempo.

– O que? – Perguntou o rapaz afrouxando os braços em volta do pescoço do lobo.

– A ligação de vocês está mais forte do que eu esperava... Só alguns minutos longe do Fäghro foram o suficiente para toldar sua mente. – Ela estalou a língua e balançou a cabeça exageradamente de um lado para o outro. – Você tem de lembrar-se de quem é, senão ficará perdido sem sua identidade...

– Eu... Eu sei muito bem quem eu sou... ora. – Ele protestou. – E, caso esteja certa, como farei isso? Não é possível esquecer-se de si mesmo.

– Está enganado... Tem de ter mais intimidade consigo mesmo se deseja passar o resto da vida com um Fäghro, caso contrário ele distorcerá sua mente... – Ela soltou uma nuvem grande de fumaça que subiu até as estrelas. – E a única forma de fazer isso é descobrindo seu verdadeiro nome. – Completou indiferente.

– Meu... Verdadeiro nome. – Serje não tinha muita idéia do que eram os verdadeiros nomes, mas isso soava sempre como uma questão ponderosa que estava além de sua realidade. – Já ouvi falar disso... mas não sei do que se trata.

– Imaginei que não... Por isso vou acompanhá-lo.

– Vai me acompanhar até Iliera? – Uma chama de esperança ascendeu em Serje.

Finalmente ele tinha uma chance de falar com a Rainha... Ele não sabia como, mas sentia que aquela velha poderia conseguir qualquer coisa.

– Iliera? – Ela franziu o cenho. – Não mesmo... Ah... fique sabendo de uma coisa, você está procurando a Rainha errada. Nasuada pouco poderá lhe ajudar... Já a rainha dos elfos por outro lado... – Ela sorriu solenemente. – Imagine o que ela fará quando descobrir que dois dos seus foram assassinados em Carvahall, e que o ovo de dragão está desaparecido? – Ela bateu palmas duas vezes, como que para despertar Serje. – Para Ellesméra rapaz... Ellesméra.

E Bateu com cajado uma... duas... três vezes na cabeça de Serje.